A Escola de Atenas . Rafael . 1509–1511

I – A filosofia como manual de normas: ensinar a alma e agir em conformidade.

A missão da filosofia helénica centrava-se na perseguição de um modo de vida e de uma forma de ser que oferecesse ao Sapiens um modelo de existência plena e de realização do potencial humano. A filosofia moderna, perdida numa espécie de espiral sobre si própria, esqueceu esta tradição, e o discurso filosófico contemporâneo não demanda por ensinamentos frutuosos que possamos utilizar para melhor enfrentar os desafios e os obstáculos que se nos deparam no decurso da vida. Na Antiguidade Clássica, a filosofia não era apenas uma disciplina intelectual, abstracta e divorciada do mundo real, mas sobretudo um processo de encontrar a melhor maneira de vivermos as nossas vidas e de nos integrarmos harmoniosa e sabiamente no processo social.

Um carpinteiro não nos diz: “Ouve-me falar sobre a arte da carpintaria”. Ao invés, prefere a acção de transformar a madeira em realidades funcionais que servem as necessidades dos seus clientes. Assim, também devemos nós, quando confrontados com a vida, pôr em prática os nossos conhecimentos, mais do que esgrimi-los no abstracto. Aqueles que surpreendem os outros pela sua habilidade na argumentação, mas que, quando se trata das suas próprias vidas, contradizem os seus próprios ensinamentos, poderão até ser excelentes professores, mas terão sempre dificuldades em lidar com a ontologia das coisas concretas e a antologia dos problemas existenciais.

A filosofia é um modo de existir no mundo, que tem de ser praticado em cada instante, e cujo objectivo é transformar toda a vida do indivíduo. A verdadeira sabedoria não nos leva apenas a saber: ela faz-nos “ser” de uma forma diferente.

À falta de melhores palavraa, a filosofia trata de educar a alma. E o bom percurso das nossas vidas depende muito dessa educação e do que fazemos com ela. Todos concordamos que uma vida caracterizada pelo vício ou pela ganância ou pela inveja é indesejável, enquanto que se nos comportarmos de acordo com certas virtudes axiomáticas, como a honestidade, a benevolência, a generosidade ou o altruísmo, as probabilidades de experimentarmos uma existência mais rica, pacífica e realizada aumentam decisivamente.

“Todas as filosofias da antiguidade, mesmo aquelas que estavam mais afastadas do Platonismo, partilhavam o objectivo de estabelecer uma ligação íntima entre o discurso filosófico e o modo de vida”.
Pierre Hadot . What is Ancient Philosophy?

A boa pedagogia da alma é inteiramente uma questão de desenvolver e compreender verdades fundamentais sobre a natureza humana, e como consequência destas, sobre o que é valioso para o homem. Se cumprirmos a nossa natureza, perseguindo uma vida virtuosa, a nossa alma permanece num estado saudável, permitindo-nos viver uma vida significativa – mesmo que experimentemos o sofrimento espiritual, a dor física, a perda de bens, ou o fracasso. De uma maneira geral, porque há excepções, os filósofos gregos defendiam que os bens materiais e as contingências corporais não contribuíam grandemente para a qualidade das nossas vidas, pois estes estão em constante mudança, ou para além do nosso controlo. Contrariedades grandes e pequenas irão sempre acontecer-nos e a inevitabilidade dessas vicissitudes só pode ser colmatada com a virtude, que nos devolve à verdade essencial que reside no cosmos ou no centro mais profundo do nosso ser. Ainda assim, na ausência de referências filosóficas, as pessoas farão tudo, por mais absurdo que seja, para evitar enfrentar as profundidades e as verdades da sua própria alma.

Neste sentido, a filosofia clássica consiste num convite a que cada pessoa se transforme a si própria. Filosofia é conversão, transformação do modo de ser e do modo de viver, e orientação para a busca da sabedoria.

A sabedoria é concebida como um ideal, que é válido mesmo na desesperança de a alcançar. O único estado acessível ao homem é a perseguição do saber, não a sua posse.

Uma diferença fundamental entre a filosofia moderna e a filosofia antiga é que não nos tornamos apenas filósofos porque desenvolvemos um qualquer articulado filosófico, mais ou menos erudito, mais ou menos sedutor. Pelo contrário, os gregos entendiam que qualquer pessoa que vivesse de acordo com um paradigma filosófico não tinha necessidade de escrever ou ensinar, para ser tão filósofo como aqueles que desenvolveram, pesquisaram ou fundaram uma filosofia.

Não deve ter sido por acaso que os 3 filósofos fundamentais da história universal – Sócrates, Confúcio e Cristo – não escreveram uma linha e primaram sempre pelo exemplo das suas acções. O grego tomou a cicuta das suas convicções. O chinês foi fiel à sua impossível ética. O Judeu subiu à cruz dos pecados alheios. Todas elas atitudes recordistas no sistema métrico do altruísmo e de um incondicional sentido ético.

 

 

A Morte de Socrates . Jacques-Louis David . 1787

II – Sócrates: o moscardo da virtude.

Nascido no século V a.C., e considerado  o fundador da filosofia ocidental, Sócrates iniciou uma nova mudança na filosofia como a busca pela sabedoria e a sua aplicação à vida quotidiana. Embora o trabalho dos filósofos naturais ou pre-socráticos fosse essencial para o desenvolvimento da filosofia grega clássica, foi na verdade Sócrates que nos ensinou como devemos viver e por um razão muito simples: foi ele que colocou à consideração da humanidade as mais profundas questões morais.

Sócrates nunca escreveu nada e estava sobretudo interessado em fazer perguntas difíceis. Questionou tudo o que as pessoas comuns tomavam por garantido ou deixavam por inquirir. Andava pelas ruas de Atenas e pedia aos outros que explicassem conceitos aparentemente simples como amizade, justiça, piedade e coragem – apenas para o interlocutor perceber que não sabia defini-los ou explicá-los ou caia rapidamente em contradição. O Oráculo de Delfos afirmou que Sócrates era a pessoa mais sábia de Atenas, talvez por ser o único que reconhecia a sua própria ignorância.

Ao contrário dos sofistas que trocavam sabedoria por dinheiro, e falavam em seu próprio benefício, Sócrates nunca aceitava compensações fiduciárias, e falava em benefício do interlocutor. Ensinava as pessoas a ouvir a sua consciência, a voz interior que nos diz o que está verdadeiramente certo, sem prejuízo de continuarmos a fazer perguntas a nós próprios e aos outros. O processo dialéctico e interior do pensamento filosófico conta tanto como as respostas que conseguimos arrancar à razão das coisas.

A figura enigmática de Sócrates, mestre do diálogo com os outros e do diálogo consigo próprio, amplificava a máxima délfica “conhece-te a ti mesmo” e requeria uma relação com o eu que constitui a base de todo o exercício espiritual. Um exercício de presença autêntica do eu para si próprio e do eu para os outros.

A nossa visão por defeito do eu como isolado, individualista e egocêntrico é uma das principais fontes de vazio, solidão e ansiedade que cada vez mais caracteriza os sapiens contemporâneos. Contudo, este “eu” por defeito não é o nosso “eu” real. Existe um “eu” mais elevado e autêntico, que os antigos gregos chamavam daimon, um eu que está constantemente consciente da sua ligação íntima com outros seres humanos, com a natureza, e com todo o cosmos. Quando o nosso daimon interior está num estado de boa ordem, experimentamos a eudaimonia, um estado de realização, harmonia e plenitude.

Como filósofos, temos de aprender a dialogar. O exercício dialéctico requer persuasão, e para isso é preciso usar a psicagogia, a orientação da alma.

“O diálogo só é possível se o interlocutor tiver um desejo real de diálogo: isto é, se quiser verdadeiramente descobrir a verdade, desejar o Bem do fundo da sua alma, e concordar em submeter-se às exigências racionais do Logos”.
Pierre Hadot . Philosophy as a Way of Life

Em vez de levarmos a cabo uma argumentação racional, temos de obedecer ao Logos e deixar que a palavra viva nos guie, é assim que vamos encontrar a verdade e o diálogo genuíno que liga duas almas. Para distinguir isto da nossa concepção comum de diálogo, podemos utilizar a versão original grega, diálogos.

Logos designa o pensamento racional, o princípio racional que rege a organização do universo e a expressão da racionalidade pela palavra. A racionalidade e a clareza de espírito permitem assim viver em harmonia com o cosmos. Mas os antigos filósofos gregos tinham uma concepção de racionalidade diferente da moderna. Ser racional não significa apenas envolver-se em argumentos razoáveis, exercícios de lógica ou conhecimento proposicional, mas também transformar-nos a nós próprios, aos outros, e ao mundo. É um esforço existencial que muda o nosso modo de ser. Este é um processo de conhecimento participativo. A racionalidade é, substancialmente embora não exclusivamente, a capacidade de analisarmos reflexivamente os nossos erros e ilusões, com vista à auto-correcção. É um processo de contacto com e conhecimento profundo da realidade.

Neste contexto, o diálogos (literalmente: “por intermédio do logos”, e assim “por intermédio da razão e da palavra que a expressa”) pretende formar mais do que informar – formar o interlocutor ou leitor de modo a levá-lo a uma transformação do seu modo de vida. O importante não é a solução para um problema particular, mas o caminho percorrido para chegar a esta solução, transformando o conhecimento em sabedoria.

Esta dimensão essencial impede que o diálogo seja teórico e dogmático e transforma-o num exercício concreto e prático. Não se trata da exposição de uma doutrina, mas sim de orientar um interlocutor para uma certa atitude mental. É necessário provocar a mudança, seja a de um determinado ponto de vista, seja de atitudes ou convicções. Por outras palavras, o diálogos é uma luta, uma luta do indivíduo com os outros ou do indivíduo consigo próprio.

Sócrates foi levado a julgamento por acusações de impiedade e corrupção dos jovens. Foi condenado à morte por ingestão de cicuta. Apesar de lhe ter sido oferecido, alternativamente, o exílio, aceitou o seu destino e tornou-se um mártir do livre arbítrio. Sócrates preferiu morrer a renunciar às exigências da sua consciência, sacrificando assim a sua vida e o seu corpo em nome das suas convicçções morais. No seu julgamento, declarou:

“É o maior bem para uma pessoa discutir a virtude todos os dias e aquelas outras coisas sobre as quais me ouvem falar, e testar-me a mim e testar os outros, pois a vida não examinada não vale a pena ser vivida”.
Platão . A Apologia de Sócrates

Platão, Aristóteles, e todos os outros sábios gregos que sucederam a Sócrates – tiraram mais proveito da moral traduzida nos seus actos do que das suas palavras. A tarefa dos filósofos consiste na acção. Cícero declarou que Sócrates tinha trazido a filosofia do reino dos céus, mas a verdade é que o moscardo de Atenas a utilizou para a inquirição sobre os reinos da Terra.

 

 

Cena do Simpósio de Platão . Anselm Feuerbach . 1873

III – Platão: o conhecimento como alavanca moral.

A morte de Sócrates foi traumática para muitos em Atenas, e um dos seus seguidores, Platão, fez sua a tarefa de imortalizar a figura do filósofo como um homem que procurou, tanto pela sua palavra como pelo seu modo de vida, aproximar-se e fazer com que outros se aproximassem da sabedoria. Platão manteve vivo o espírito socrático na sua maior obra, A República, e mais tarde afastou-se do seu mestre – pois um verdadeiro seguidor de Sócrates é aquele que pensa por si próprio.

Os axiomas platónicos tornaram-se a base da filosofia e até da espiritualidade ocidentais, influenciando o cristianismo e evoluindo mais tarde para o neoplatonismo.

“A caracterização geral mais segura da tradição filosófica europeia é que ela consiste numa série de notas de rodapé a Platão”.
Alfred North Whitehead, Processo e Realidade

O objectivo de Platão ao fundar a Academia de Atenas, a primeira universidade da história, era a criação de uma comunidade intelectual e espiritual cuja missão seria a de formar novos seres humanos. Isto deixaria uma marca definitiva na vida filosófica da antiguidade. A filosofia só poderia ser levada a cabo através de uma comunidade de vida e de diálogo entre mestres e discípulos, no âmbito de uma estrutura de vocação pedagógica que permitia aumentar o poder cognitivo sobre o mundo.

Platão acreditava que virtude e conhecimento são termos equivalentes, porque o verdadeiro conhecimento é aquele que dá acesso ao Bem absoluto. A epistemologia é, assim, uma ética e aqueles que aderiam à Academia passavam pela lenta e difícil educação de carácter, o desenvolvimento harmonioso da sua pessoa, de forma a desenvolverem um modo de vida que assegurasse a salvação da alma. Escreve Platão sobre esse modo de vida filosófico:

“Cada indivíduo deve deixar de lado os outros estudos e dedicar todo o seu cuidado à investigação solitária de si próprio. Talvez assim seja capaz de descobrir e reconhecer em si o homem que lhe irá transmitir a capacidade e o conhecimento para discernir o que é a vida boa, e o que é a vida má, e para escolher a vida boa sempre e em todo o lado, na medida do possível”.

Se não adoptarmos este modo de vida, a existência perde o seu valor ontológico, e é por isso que temos de decidir seguir este caminho. Temos de viver todos os dias de modo a tornarmo-nos senhores de nós próprios.

Acima de tudo, devemos procurar esta tríade de valores: justiça, verdade e beleza. Porque se o conhecimento é uma alavanca moral, a arte é um instrumento ético. Na teoria das Formas ou Ideias de Platão, esta é a ficha tripla que revela ao homem as qualidade essenciais, perfeitas, transcendentes, do cosmos (e da alma humana) e que estão para além do espaço, do tempo e da causalidade.

As formas platónicas servem de base aos nossos juízos sobre as coisas relativas à vida, e são, acima de tudo, valores morais. Esse conhecimento essencial que reside nas profundidades da alma e que é inato, perde-se facilmente, quando somos contaminados pela corrupção do mundo. As formas perfeitas existem independentemente e antes de todas as nossas concepções sobre a realidade. São os arquétipos ou primeiras impressões de que os objectos no mundo quotidiano são cópias imperfeitas. Isto é conhecido como Idealismo. A ideia de que não experimentamos a realidade no mundo concreto, mas apenas a sua sombra, tem marcado profundamente a filosofia desde então. E teve, na impenetrabilidade da física quântica, um reforço epistemológico no século XX. Não foi por acaso que Werner Heisenberg afirmou isto:

“Penso que a Física moderna decidiu definitivamente em favor de Platão. De facto, as mais pequenas unidades da matéria não são objectos físicos, no seu sentido comum, são formas, ideias que só conseguem ser expressas sem ambiguidade na linguagem matemática.”

Platão ilustra o conflito entre o mundo que percepcionamos e o mundo perfeito dos arquétipos na Alegoria da Caverna, que não é apenas uma história, mas um mito de representação dos padrões perceptivos e dos limites cognitivos impostos à condição humana. A parábola resume-se assim:

Um grupo de pessoas foi acorrentada dentro de uma caverna e nessas trevas permaneceu desde a infância. Estes indivíduos são incapazes de se mover e só conseguem olhar para a parede à sua frente. Atrás deles há uma janela para a realidade da vida fora da caverna, iluminada pelo sol, por onde passam pessoas e outros seres vivos que cumprem os seus destinos. Essas imagens – e os sons que delas ecoam – são reflectidas por sombras projectadas na parede da caverna que constitui o único dado visual disponível aos cativos. Estes acreditam assim que a realidade do mundo é essa: as sombras e os sons reflectidos no seu campo de percepção. Só conseguem ver as formas reflexas e confundem-nas com a realidade. Mal sabem eles que as sombras são meras aparências das formas verdadeiras. Quando um deles é libertado, a luz intensa e as formas reais ferem-lhe os sentidos e parecem menos claros que as sombras a que está familiarizado, por isso ele volta atrás. Prefere a sua condição de prisioneiro e mostra-se incapaz de lidar com a verdade do cosmos.

Se esse prisioneiro for arrastado à força para esse patamar das coisas verdadeiras, protestará e manifestará raiva e dor, o que só se agravará à medida que a luz do sol se tornar mais brilhante. Este é o lento e doloroso processo de auto-transformação. Fora da caverna, os olhos do homem ajustam-se lentamente à luz até que ele possa olhar para as pessoas, os animais, a água, as árvores, as estrelas, e eventualmente, para o próprio sol – a fonte de luz que é a vida de todas as coisas.

Este homem regressaria imediatamente à caverna para contar aquilo que viu aos outros prisioneiros, mas tropeçaria e ficaria cego na escuridão, tal como estava cego quando foi exposto ao sol pela primeira vez. Quando finalmente consegue falar das coisas espantosas que viu e experimentou fora da caverna, os seus companheiros pensam que ele é louco, e matariam qualquer pessoa que tentasse arrastá-los para fora da caverna.

Também aqui, a ciência contemporânea corrobora algumas das assumpções de Platão. As neurociências sabem hoje que o cérebro humano tem dificuldade em lidar com paradigmas novos, já que os neurónios procuram estabelecer sinapses historicamente gratificantes, para as quais já estão rotinados, e tendem a evitar inéditas ou raras ligações electromagnéticas. É por isso, por exemplo, que, principalmente a partir da idade adulta, tendemos a ouvir géneros musicais que já conhecemos e músicos de que gostamos em vez de experimentarmos novas ambiências melódicas e criadores que nos sejam desconhecidos.

No cinema, a trilogia “Matrix”, procura capitalizar no argumento este mito profundamente embutido na condição humana. A parábola da caverna é comparada a uma matriz falsa que foi criada sobre a realidade pela inteligência artificial, a fim de distrair os humanos enquanto utilizam os seus corpos como fonte de energia, e as pessoas devem acordar para o “mundo real”. Morpheus apresenta ao personagem principal Neo uma pílula azul para permanecer no seu mundo ilusório, ou uma pílula vermelha que lhe revelará a verdade. Quando Neo deixa a Matrix, pergunta a Morpheus: “Por que me doem os olhos?”, ao que Morpheus responde: “Porque nunca os usaste antes”.

Platão pode ser considerado como o primeiro psicólogo, já que propôs uma estrutura tripartida da psique humana: razão, apetite e o que os antigos gregos chamavam thumos, que não tem equivalente em português, mas pode ser traduzido como espírito no sentido de coragem, vitalidade e a componente transcendente da personalidade individual.

Todos vivemos um conflito interior, que é a luta entre a razão e o apetite. A razão refere-se à verdade ou à falsidade, e o apetite, caracterizado pela dor ou pelo prazer, é uma hidra, cuja cabeça, quando cortada, resultaria na regeneração de mais cabeças, tornando-se num inimigo ainda mais perigoso. Um exemplo da hidra em acção é o uso frequente dos prazeres de curto prazo para colmatar o sofrimento de longo prazo, que promove a queda num ciclo vicioso do qual é difícil escapar. O thumos, é representado pelo leão – reflectindo honra e significado cultural partilhado na sociedade. É a região intermédia entre a razão e o apetite. Esta divisão platónica da psique pode ser comparada ao ego, super-ego e id de Freud, embora tenham diferenças consideráveis.

A tarefa do auto-conhecimento socrático para reduzir o conflito interior começa com o ensino do homem (razão), que pode treinar o leão (thumos), e juntos, domar o monstro (apetite).

Ao procurarmos o auto-conhecimento para diminuir o conflito interior, melhoramos as nossas capacidades, e estamos mais em contacto com a realidade. A auto-transformação e o contacto com o mundo estão interligados. Mudamos para ver melhor o mundo, e o mundo muda ao revelar-se de uma nova forma.

Os antigos filósofos greco-romanos deram grande ênfase ao aprender a viver, bem como ao aprender a morrer. Platão alude ao exercício da morte no “Phaedo”, cujo tema é a morte de Sócrates e a imortalidade da alma. O filósofo não teme a morte, uma vez que a filosofia nada mais é do que um exercício para enfrentar esse fim do invólucro material. O filósofo passa o seu tempo a tentar alinhar-se com a sua alma e a separar-se do seu corpo. A alma, à qual a elevação do pensamento e a contemplação da totalidade do tempo e do ser pertencem, não considera a vida humana como importante. Uma tal pessoa não verá, portanto, a morte como algo terrível.

Neste exercício espiritual, morremos para a nossa individualidade e as paixões espúrias, a fim de nos elevarmos à objectividade da perspectiva universal. Uma lúcida antecipação da morte mostra a autenticidade da existência, e cabe a cada um de nós escolher entre a lucidez e o desvio. Para isso, temos de morrer todos os dias. Aquele que aprendeu a morrer, será sempre dono do seu destino, nunca será servo de paixões nem escravo de outros seres humanos.

Fomos colocados na terra para contemplar a criação divina, e não devemos morrer antes de termos testemunhado plenamente as suas maravilhas e vivido em harmonia com a natureza. Aqueles que praticam a sabedoria são excelentes contempladores da natureza. Eles examinam o mar, o céu, a terra e todos os seus habitantes, fornecem as suas almas com asas, para que possam caminhar sobre o éter e contemplar os poderes que aqui vivem.

“Não observa o bom homem todos os dias um festival? E um muito esplêndido, se formos virtuosos. Pois o mundo é o mais sagrado e divino dos templos, e o mais adequado para os deuses. O homem é nele introduzido pelo nascimento para ser espectador: não de estátuas artificiais e imóveis, mas das essências inteligíveis como o sol, a lua, as estrelas, os rios cuja água flui sempre de novo, e a terra, que oferece alimento tanto para as plantas como para os animais. A vida é revelação perfeita, e a iniciação a estes mistérios deve ser preenchida com tranquilidade e alegria”.
Plutarco . Sobre a Paz de Espírito