“O temor de Deus propriamente dito já há muito que sofreu um abalo. (…) Mas aquilo que foi tirado a Deus foi dado ao homem, e o poder do humanitarismo aumentou na proporção em que a devoção perdeu terreno: o Homem é o Deus de hoje, e, em vez do velho temor a Deus, temos aí o temor do Homem. Os nossos ateus são pessoas devotas.“
Max Stirner . O único e a Sua Propriedade
Mais conhecido pelas críticas que Karl Marx e Friedrich Engels lhe dirigiram do que pelo seu próprio e original pensamento, Johann Kaspar Schmidt (Bayreuth, 25 de outubro de 1806 – Berlim, 26 de junho de 1856), para a posteridade Max Stirner, é um dos filósofos alemães mais obscuros e menos estudados do Século XIX, apesar de ser uma dos precursores do niilismo, do existencialismo, da teoria psicanalítica, do pós-modernismo e do anarquismo, especialmente do anarquismo individualista. Em certo sentido, podemos até arriscar que Max Stirner é o fundador do egoísmo, no sentido em que a palavra – e o seu significado moral – é utilizada nos nossos dias.
Quando Stirner completou 20 anos, começou a frequentar a Universidade de Berlim, onde estudou Filologia, Filosofia e Teologia e foi atento aluno de Hegel. Depois transitou para a universidade de Erlangen, onde assistiu às aulas de Feuerbach.
Stirner regressou a Berlim e obteve um certificado de ensino, mas não conseguiu obter do governo prussiano um posto de professor a tempo inteiro. Em 1841, participou, se bem que discretamente, nos debates do grupo de jovens filósofos “Die Freien” (“Os Livres”), que os historiadores posteriormente classificaram como os “jovens hegelianos”. Alguns dos nomes mais conhecidos na literatura e filosofia do século XIX estiveram envolvidos neste grupo, incluindo Karl Marx, Friedrich Engels, Bruno Bauer e Arnold Ruge.
Os debates aconteciam num bar de vinhos na Friedrichstraße, com a participação, entre outros, de Marx e Engels, que eram ambos adeptos de Feuerbach na época. Stirner encontrou-se com Engels muitas vezes, e este afirmou que eles eram “grandes amigos”, tendo sido o co-redactor do “Manifesto do Partido Comunista” que desenhou a caricatura que é a icónica representação gráfica do seu amigo. Não é claro se Marx e Stirner se encontraram nesta altura ou alguma vez na vida.
Stirner financiou (com o dinheiro da sua segunda mulher, Marie Dähnhardt) e geriu uma leitaria que operava sob princípios cooperativos. Esse empreendimento fracassou em parte porque os fornecedores de leite desconfiavam dos intelectuais bem vestidos de Berlim. Mas também porque a loja foi tão bem decorada que a maioria dos potenciais clientes se sentia excessivamente mal vestida para ir lá comprar leite. Neste aspecto, Stirner não era muito diferente de Marx ou Hengels, que apesar da sua retórica nunca conseguiram disfarçar o apreço pelo estilo de vida burguês.
Stirner trabalhava como professor numa escola da Madame Gropius quando escreveu a sua obra fundamental, “O Único e Sua Propriedade”, que em parte é uma polémica contra Feuerbach e Bauer, mas também contra comunistas como Wilhelm Weitling e o anarquista Pierre-Joseph Proudhon. Percebendo que o seu pensamento, uma vez publicado, lhe ia trazer complicações, demitiu-se de sua posição profissional.
Tinha razão. porque quando “O Único e a Sua Propriedade” foi publicado, em Outubro de 1844, deixou a sociedade bem pensante da Europa de queixo caído, num primeiro momento de espanto, para que logo depois mostrasse os dentes da censura, quando percebe que Stirner coloca em causa tudo o que de sagrado tinham escrito e dito até ali as mais brilhantes mentes liberais e socialistas, humanitaristas e revolucionárias, idealistas e conservadoras. Se Marx colocou Hegel de cabeça para baixo, Stirner dá-lhe, 20 anos antes, um pontapé no traseiro.
“Temos assim, no liberalismo, apenas a continuação do velho desprezo pelo eu, pelo João de carne e osso. Em vez de me aceitar como eu sou, olha apenas para a minha propriedade. E faz comigo um pacto de honra apenas por amor… da minha propriedade: é como se casasse com o que eu tenho, e não com o que eu sou. O cristão agarra-se ao meu espírito, o liberal à minha humanidade.“
Encostando os liberais triunfadores e vanguardistas às cordas da reacção, também desqualifica Proudhon, que chamava roubo ao exercício da propriedade, obliterando-lhe qualquer tipo de pertinácia filosófica. Na altura em que o Estado de Direito dá os seus primeiros passos, o bravo Bávaro devolve-o ao útero da inutilidade ou à campa da imoralidade, o leitor decide. Com a morte de Deus ainda fresca, acabada de enunciar por Feuerbach, Stirner acusa os iluministas de devoção mística. Quando o niilismo era coisa de romancistas russos, já este valente da grande filosofia desacreditava valores morais, sociais e políticos a torto e a direito.
“O Único e a Sua Propriedade” é um dos grandes manuais de filosofia do século XIX, porque, fazendo tábua rasa do património intelectual, sensorial e empírico da Europa, num tom sardónico, rude e verdadeiramente inspirado, recentra a questão ontológica neste ponto: em última análise só poderei ser realmente proprietário do meu corpo, derradeira tangibilidade psicossomática e único valor a proteger. Assim, faz todo o sentido respeitar as prioridades que são as do meu sistema físico-químico e as da minha unicidade: rotinar o egotismo é viver com sensatez. Não reconhecer causas que transcendam a inevitabilidade de quem eu sou, é assim uma obrigação moral, no sentido em que a moral é um instrumento de sobrevivência.
“A revolução francesa não foi dirigida contra a ordem estabelecida, mas contra esta ordem estabelecida, contra um determinado estado de coisas. Acabou com este soberano, mas não com os soberanos. Matou os velhos viciosos, mas quis garantir aos novos virtuosos uma existência segura, ou seja, limitou-se a colocar a virtude no lugar do vício; limitou-se a ser reformista.”
Conceitos como a Religião, o Estado e a Nação são fraudes fiscais, no tribunal de contas da mãe natureza. Eu só posso ser soberano sobre mim e só de mim sou súbdito. E o único imperativo categórico digno de ser respeitado é o que decorre das necessidades da minha fisiologia. A individualidade, a singularidade, a consciência identitária de que só estou ao serviço de mim, esse sim, é o caminho para a redenção.
O livro foi, obviamente, proibido e escondido e esquecido e amaldiçoado e ridicularizado e queimado nas fogueiras dos salões onde se reunia a gorda elite intelectual do velho continente. Gente ilustre que o leu, como James Joyce, Ezra Pound ou Henry Miller, não falam dele nunca. Freud, que muito lhe deve, renega-o; Nietzsche, que lhe deve quase tudo, esquece-se dele. Marx e Engels precisaram de 300 páginas de intenso fluxo invectivo para combater semelhante rebeldia. Darwinistas sociais e deterministas de toda a espécie fingiram que não sabiam da sua existência. Todos enfim se esforçaram por aniquilar a obra, e com tanto afinco o fizeram, que acabaram por imortalizá-la.
“O Único e a Sua Propriedade” é um tratado escrito e pensado em nome da liberdade do indivíduo. E foi por isso que incomodou toda a gente. É também por isso que permanece contemporâneo. Que permanece dissidente, hoje mais do que nunca.
Relacionados
16 Mar 25
Contestando a interpretação sociológica de Max Weber.
Max Weber forneceu algumas contribuições valiosas para a compreensão da sociedade moderna, mas o seu pensamento deve ser questionado por uma abordagem conservadora, que valoriza a tradição e os fundamentos morais da ordem social. Um ensaio de Walter Biancardine.
11 Mar 25
Analisando Schopenhauer: Entre a inteligência e o sofrimento.
A visão de Schopenhauer sobre a relação entre inteligência e o sofrimento é excessivamente pessimista. O sofrimento existe, mas pode ser ordenado e atenuado pela razão, mas também pela tradição, pela religião, e pela ética. Um ensaio de Walter Biancardine.
9 Mar 25
O bom, o belo e o verdadeiro.
Valores transcendentais e imutáveis, o bom, o belo e o verdadeiro não devem ser dissociados, mas restaurados e preservados como um legado precioso para as gerações futuras. Um ensaio de Walter Biancardine.
18 Fev 25
‘Yo soy yo y mis circunstáncias.’
Ortega y Gasset fornece uma visão que o conservador deve interpretar como um apelo a que se mantenha viva a tradição, compreendendo o passado e agindo no presente, para garantir a continuidade da civilização. Uma crónica de Walter Biancardine.
14 Fev 25
A Ilíada, Canto XVII: De cavalos imortais e humanos perecíveis.
No Canto XVII, Homero lembra-nos da nossa mortalidade e lamenta esse destino fatídico, em contraste com os dois cavalos eternos de Aquiles. Mas sem essa consciência da morte, sem a coragem e a liberdade moral de a enfrentar, que heróis haveria para cantar na Ilíada?
1 Fev 25
Cícero e a liberdade através da virtude ou como encontrar o eterno entre o caos pós-moderno.
Cícero ensinou-nos a verdade daquilo que é imutável na condição humana. Por isso foi morto. O homem moderno, iludido por falsas virtudes e pela volatibilidade da tecnologia, tem muito a aprender com a sua prosa.