“Viver é sofrer”
Arthur Schopenhauer
Nascido em 1788 em Danzig, Arthur Schopenhauer ficará para a história como o filósofo do pessimismo e um dos primeiros pensadores a trazer ideias orientais para a filosofia ocidental. O pai de Schopenhauer era um comerciante rico e a sua mãe era uma escritora popular, entre as primeiras mulheres alemãs a publicar livros sem pseudónimo. Quando jovem, Schopenhauer estava destinado a seguir os passos do seu pai como mercador. Contudo, Heinrich Floris Schopenhauer caiu num período de depressão e acabou por se suicidar, tendo sido encontrado afogado num canal, em 1805. Arthur reconheceu ter herdado a melancolia do seu pai, que deveras estimava, mas tinha uma relação horrível com a mãe, admitindo que os anos mais felizes da sua infância foram os que passou longe dela.
Schopenhauer desenvolveu uma desconfiança em relação às pessoas em geral, uma visão deprimida do mundo, uma incapacidade de manter relações próximas e uma constante sensação de insegurança pessoal, que se manifestava sob a forma de ataques de ansiedade, fobias e hipocondrias.
A morte do seu pai, porém, libertou-o da vida mundana dos negócios, e Schopenhauer atirou-se quase ferozmente para o estudo, frequentando aulas particulares e palestras sobre Medicina, Filosofia, Matemática, História, Física e Astronomia, entre outras. Tratou todas as disciplinas com a máxima profundidade, considerando a sua idade. Arthur era também um estudioso de línguas, dominando o alemão, o inglês, o francês, o italiano, o espanhol, o latim e o grego clássico. O seu progresso foi tão notável que os tutores estavam confiantes que teria um futuro brilhante à sua frente.
Em 1813, Schopenhauer isolou-se para trabalhar na sua tese de doutoramento, a célebre “Sobre a Raiz Quádrupla do Princípio da Razão Suficiente”, onde estipula o princípio de que nada acontece sem uma razão primeira e enquadra a percepção do mundo como representação, um tema central para o seu trabalho posterior.
O pensador alemão mostrava-se entretanto cada vez mais desiludido com os filósofos académicos, devido à sua ênfase em abstracções e generalizações, em detrimento de plataformas empíricas. Os filósofos académicos adquirem conceptualmente os seus problemas filosóficos, enquanto os verdadeiros filósofos os adquirem existencialmente, através de uma reflexão involuntária sobre a sua própria existência e experiência. O trabalho da vida de Schopenhauer devia ser distinguido pela experiência vivida. Acima de tudo o filósofo é um homem, que experimenta sofrimento e prazer, triunfos e contrariedades: o seu pensamento deriva da sua existência e não deve fugir dela com conceptualizações abstractas, de utilidade meramente académica.
A escrita de Schopenhauer está longe do alemão estéril e académico da época, a sua prosa é clara, coloquial, orientada para o concreto e repleta de metáforas e anedotas.
Por esta altura, Schopenhauer começou a estudar o hinduísmo e o budismo. Apaixonou-se pela tradução latina dos Upanishads e durante grande parte da sua permaneceu um leitor dedicado dos textos védicos. A este propósito, escreveu:
“É a leitura mais gratificante e elevadora (com excepção do texto original) em todo o mundo; tem sido o consolo da minha vida e será o consolo da minha morte”.
Arthur Schopenhauer . Parerga e Paralipomena
Em 1821, Schopenhauer teve um incidente com uma vizinha. Diz-se que a mulher sabia que ele era rico e fingia cair das escadas de forma a acusar o filósofo de ser o causador da queda e conseguir assim uma indemnização financeira. Ela processou-o de facto e ganhou o caso. Schopenhauer teve de lhe pagar uma pensão durante os restantes 20 anos da sua vida. Quando ela morreu, o filósofo escreveu nos seus diários:
“A velha morre, o fardo é levantado”.
A sua obra-prima, “O Mundo como Vontade e Representação”, foi publicada no final de 1818, quando tinha 30 anos de idade. A segunda edição foi publicada em 1844, que consistiu numa versão editada da primeira edição e integrava comentários adicionais sobre as suas ideias. Esta edição voltou a ser revista um ano antes da sua morte, em 1859. Grande parte dos seus escritos posteriores são uma reflexão sobre ou um enriquecimento da obra escrita na flor da idade, da qual nunca desertou. O trabalho tem um carácter unificador, e deve ser entendida como um todo único e orgânico que cruza epistemologia, metafísica, estética e ética.
Schopenhauer estava convencido de que a sua obra-prima tinha finalmente resolvido os problemas fundamentais da filosofia. No entanto, o seu trabalho vendeu mal e não foi lido nem revisto pelos seus pares. Esta negligência continuou até à sua velhice, e foi uma das características dominantes da sua experiência de vida. Juntamente com a rejeição materna e a morte precoce do pai, a não aceitação da sua obra tem que ser necessariamente integrada nas razões que motivavam o seu profundo pessimismo.
Concomitantemente, Hegel, um contemporâneo de Schopenhauer, estava no auge da sua celebridade e atraia multidões à Universidade de Berlim. Para Hegel, o mundo é accionado por um espírito que avança sobre o tempo. Em cada momento da história, existem contradições internas ao zeitgeist (espírito da época), que devem ser ultrapassadas através de um diálogo entre ideias opostas, avançando para uma perfeição final que é a plena realização do espírito na História.
Schopenhauer, contudo, acreditava que Hegel era um charlatão. A terminologia pesada e o obscurantismo conceptual funcionavam como uma cortina de fumo para uma linha de pensamento bastante inócua. Ele discordava que pudéssemos alcançar o conhecimento do absoluto pela razão e que caminhamos para a perfeição à medida que o tempo passa.
Arthur tentou ensinar na Universidade de Berlim, de forma a propagar as suas ideias, ao mesmo tempo que Hegel dava as suas palestras. O resultado foi desastroso. Quase ninguém frequentava as suas aulas. Frustrado deixou a sua posição de professor universitário pouco tempo depois.
Em 1851, Schopenhauer publicou “Parerga e Paralipomena” em dois volumes (grego para “apêndices e omissões”), ensaios complementares à sua obra principal, que considerou como o culminar da sua missão no mundo. Os estranhos títulos dos livros de Schopenhauer devem certamente ter desempenhado um papel na deprimente recepção popular e académica. No entanto, este foi o seu primeiro livro bem sucedido e amplamente lido, em parte devido ao trabalho dos seus discípulos, que escreveram louvores vários ao trabalho do mestre. Embora tenha começado a ganhar popularidade, o filósofo preferiu viver na solidão. Acordava cedo, lia até ao meio-dia, tocava flauta, almoçava no mesmo lugar de sempre e fazia longas caminhadas com os seus cães, que adorava. Terminava o dia lendo algumas linhas dos Upanishads antes de dormir. A sua vida pode ser descrita como uma existência de trevas, triste, longa e solitária.
A 21 de Setembro de 1860, aos 72 anos de idade, Schopenhauer tomou o pequeno-almoço e estava aparentemente bem. Pouco tempo depois, foi encontrado morto enquanto ainda sentado à mesa.
O Mundo como Vontade e Representação
“O mundo é a minha ideia: esta é uma verdade que vale para tudo o que vive, embora só o homem a possa trazer para a consciência reflexiva e abstracta”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
É assim que Schopenhauer inicia a sua obra central. Ele queria compreender o mundo em que se encontrava, e o seu papel como agente no mundo e tentou formar uma interpretação coerente e unificada da experiência humana através da identificação das forças inerentes à realidade. Chamou-lhe a Vontade, que é a essência da existência.
Schopenhauer foi influenciado por Kant, Descartes e, em certo sentido, por Platão, já que acreditava que o mundo à nossa volta, com todos os seus objectos, é apenas constituído por representações: qualquer realidade que percebemos foi lá colocada pelas nossas próprias mentes, que formam ideias. Este era o conceito central do Idealismo de Kant: só podemos pensar no que reside nas nossas mentes. A percepção sensorial que temos do mundo não é o mundo, não temos acesso ao mundo, porque somos cativos dos arquétipos que vivem na nossa própria cabeça. “Penso, logo existo”, a conclusão dialéctica de Descartes seria assim, invariavelmente, um bom ponto de partida.
No entanto, Schopenhauer estava convicto de que deve haver algo mais do que apenas pensamento puro, algo mais do que apenas um cérebro dentro de um frasco. De facto, existe apenas um aspecto do mundo que não nos é dado meramente como representação, um “objecto” que encarnamos no espaço e no tempo, e com o qual temos uma relação directa: o nosso corpo. Assim, o nosso modo de cognição da fenomenologia externa das coisas é condicionada pela dimensionalidade física e fisiológica de cada indivíduo, da sua posição no mundo e da sua “singularidade”. Para Schopenhauer, aqueles que não conseguem perceber que vivem como os cativos da caverna de Platão, iludidos pelas sombras e incapazes, num primeiro momento, de discernir o que está para além delas, não têm vocação para a filosofia.
A partir desta visão, Schopenhauer conclui que a força subjacente de cada representação e também do mundo como um todo, é a Vontade. Mas a Vontade em Schopenhauer não se limita apenas à ligação entre uma personalidade e um certo objectivo. Não é apenas a nossa vontade individual, integra também as dinâmicas de todos os seres animados e inanimados do cosmos. A Vontade de Schopenhauer pode ser vista como uma força ou energia, é a coisa-em-si, imutável. Enquanto Kant ensinava que a coisa-em-si era um mundo fora do alcance humano, Schopenhauer acreditava que estava no âmago da existência.
A Vontade não é racional, consciente ou intencional, mas sim um desejo irracional e cego que se esforça incansavelmente por entrar em acção. Esta é a grande visão de Schopenhauer, que se afasta de todos os seus predecessores. A Vontade é o tornado que gira dentro de nós e nos atira de um lugar para o outro, é a fonte do nosso apetite insaciável que resulta em contendas e miséria.
“Do desejo apresso-me à satisfação; da satisfação salto para o desejo”.
Goethe . Fausto
A existência é tipificada pela agitação e pela insaciabilidade. A Vontade conduz a uma guerra de todos contra todos, num cenário proto-Darwinista.
Muito antes da psicanálise de Freud, Schopenhauer argumentou que a maior parte da nossa vida interior é desconhecida para nós, as nossas acções, decisões e discurso são, na sua maioria, inconscientemente motivados pelos nossos impulsos, de modo que nem sequer conhecemos o nosso eu interior em toda a sua completude.
Em resumo, para Schopenhauer o mundo tem dois aspectos relacionados um com o outro como dois lados da mesma moeda: um mundo de Representação, que é constituído pela nossa mente, e uma Vontade, essa força cega e irracional, que está no cerne da existência e é indiferenciada para além do espaço, do tempo e da causalidade.
Assim sendo, é impossível descobrir o segredo da realidade examinando primeiro a matéria, para depois examinar o pensamento: devemos começar com aquilo que conhecemos directa e intimamente – nós próprios.
“Assim vemos já que nunca poderemos chegar à verdadeira natureza das coisas externas. Por muito que investiguemos, nunca podemos chegar a nada a não ser imagens e nomes. Somos como um homem que contorna um castelo procurando em vão uma entrada. E no entanto este é o método que tem sido seguido por todos os filósofos que me precederam”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
A vida comum passa por cumprir tarefas como estudar, arranjar um emprego, casar, ter filhos e… viver feliz para sempre. Só que ninguém vive feliz para sempre. Na melhor das hipóteses, um desejo é satisfeito para logo após surgir outro desejo, não há um ponto final de satisfação, este é um esforço infindo. Vivemos como bolas de uma máquina de flippers, atiradas aleatoriamente pela vontade às tabelas elásticas dos nossos desejos. As nossas vidas correm como folhas num rio em fúria. Pensamos que somos guiados pelo que vemos, quando na verdade somos guiados pelo que sentimos, pela nossa vontade inconsciente. Para descrever esta desgraçada inquietude, Schopenhauer evoca o mito grego de Ixion, que se revoltou contra os Deuses e por isso foi amarrado a uma roda de fogo em perpétuo movimento por toda a eternidade.
Neste contexto, se quisermos compreender a realidade, devemos ir além do homem como um animal racional, além do intelecto, até à vontade inconsciente, que é:
“O homem forte e cego que carrega nos ombros o homem coxo que pode ver”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
A Vontade é superior ao intelecto. Um elefante que tinha sido conduzido através da Europa, e atravessado centenas de pontes, recusou-se a avançar sobre uma ponte fraca, embora tivesse visto muitos cavalos e homens a cruzá-la. Este é o impulso instintivo. A Vontade é uma vontade de viver, e uma vontade de maximizar a vida; o seu pior inimigo é a morte. Mas poderá derrotá-la?
Escravos da sobrevivência: a Vontade de Reproduzir
Para Schopenhauer, a forma mais poderosa da vontade de viver é a vontade de reproduzir. Schopenhauer não acredita que casamos e temos filhos para ser felizes, mas sim que a vontade de viver nos move inconscientemente para cumprir a nossa vontade de reprodução, em prol da propagação da espécie. A paixão é uma manipulação inconsciente pela vontade que procura criar “filhos equilibrados”. Escreve ele:
“Cada um procura um companheiro que neutralize os seus defeitos, para que não sejam herdados… Um homem fisicamente fraco procurará uma mulher forte…. Cada um considerará como belas, noutro indivíduo, as perfeições que lhe faltam, não, mesmo as imperfeições que são o oposto das suas”.
Arthur Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação
O impulso sexual é a matriz da espécie sobre a qual a vida do indivíduo se desenvolve. Schopenhauer escreveu sobre isto muito antes da teoria da sexualidade de Freud. E Freud terá ficado certamente surpreendido ao descobrir os seus escritos.
Para Schopenhauer, a procriação é o ponto mais alto da vida humana; e depois de atingir este ponto, o indivíduo afunda-se lentamente, enquanto uma nova vida assegura à natureza a sobrevivência da espécie, e repete a mesma fenomenologia.
“A morte e a reprodução é a pulsação da espécie… a morte é para a espécie o que o sono é para o indivíduo… esta é a grande doutrina da imortalidade da natureza”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
Dante e as tartarugas: o Mundo como o Mal.
Mas se o mundo é conduzido pelas tensões entre a representação e a vontade, deve ser um mundo de sofrimento. Para cada desejo satisfeito, restam dez que são negados. O desejo é infinito, a realização é limitada. Cada indivíduo traz dentro de si uma contradição perturbadora; o desejo realizado desenvolve um novo desejo, e assim por diante. Para Schopenhauer, a vida é má porque a dor é o seu estímulo básico e a sua realidade. O prazer é apenas uma cessação negativa da dor.
“Toda a satisfação, ou aquilo a que habitualmente se chama felicidade, é, na realidade e na essência, apenas negativa. Não estamos devidamente conscientes das bênçãos e vantagens que realmente possuímos, nem as premiamos, mas pensamos nelas apenas como uma questão natural, pois elas só nos gratificam negativamente, limitando o sofrimento”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
Assim que o sofrimento cessa, somos vencidos pelo tédio, por outras palavras, por mais sofrimento. O tédio nada mais é do que a sensação do vazio da existência. O sofrimento não é o grito do indivíduo. Isso é uma ilusão. O sofrimento é o grito da própria existência.
“A vida balança como um pêndulo para trás e para a frente entre dor e tédio… Depois de o homem ter transformado todas as dores e tormentos numa concepção do inferno, não restou nada para o céu, excepto o tédio”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
A maior parte do nosso sofrimento reside em retrospectiva ou antecipação; a própria dor é breve. Quanto mais sofrimento é causado pelo pensamento da morte do que pela própria morte! Finalmente, em toda a parte na natureza vemos luta, competição, conflito, uma sucessão suicida de vitórias e derrotas.
“Uma planície estende-se pelo horizonte totalmente coberta de esqueletos. São, contudo, meros esqueletos de grandes tartarugas que saem do mar para pôr os seus ovos, e são depois atacadas por cães selvagens, que, com a força da matilha os viram de costas, tiram-lhes a casca do estômago e devoram-nos vivos. Mas então é frequente que um tigre ataque os cães… Toda esta miséria repete-se milhares e milhares de vezes, ano após ano. É para isto, então, que estas tartarugas nascem”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
Para Schopenhauer, este carácter predatório fundamental permanece inalterado na raça humana. Descobrimos que o homem é o lobo do homem. O quadro total da vida é quase demasiado doloroso para a contemplação; a vida depende do facto de não a conhecermos demasiado bem.
“Pois de onde é que Dante retirou a matéria do seu inferno, senão do nosso mundo real? E no entanto, ele fez um inferno muito próprio. Mas quando, por outro lado, quis descrever o céu e as suas delícias, teve perante ele uma dificuldade insuperável, pois o nosso mundo não oferece qualquer matéria para isso… Cada poema épico e dramático só pode representar uma luta, um esforço, uma luta pela felicidade; nunca a própria felicidade duradoura e completa. Conduz os seus heróis através de mil perigos e dificuldades até ao objectivo: assim que este é alcançado apressa-se a deixar cair a cortina; por agora nada mais restará senão mostrar que o objectivo brilhante em que o herói esperava encontrar a felicidade só o tinha desapontado, e que após a sua realização ele não estava melhor do que antes”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
Schopenhauer descreve como os porcos-espinhos, que se agrupam para se aquecerem no Inverno, ficam desconfortáveis quando demasiado apertados e no entanto miseráveis quando mantidos separados enquanto gelam de frio. A vida de cada indivíduo, se a observarmos como um todo, é realmente uma tragédia; mas, se a observarmos em pormenor, ela tem o carácter de comédia. O optimismo é uma sátira sobre o sofrimento humano.
“Um homem encontra-se, para seu grande espanto, de repente existente, após milhares e milhares de anos de inexistência: vive durante algum tempo; e depois, novamente, um período igualmente longo em que já não existe. Depois de morreres vais ser aquilo que foste antes de nasceres. O coração rebela-se contra isto, e sente que não pode ser verdade”.
Arthur Schopenhauer . Parerga e Paralipomena
Para Schopenhauer, a morte é o espelho da imagem do abismo anterior. A vida sorri da morte, e ri-se do suicídio; por cada morte deliberada há milhares de nascimentos inadvertidos. Como regra, descobriremos que assim que os terrores da vida superam os terrores da morte, um homem porá um fim à sua existência.
Schopenhauer viu a vida como um pesadelo do qual não podemos acordar. E que o suicídio deveria ser encarado com compaixão:
“Quem não teve conhecidos, amigos, parentes que partiram voluntariamente deste mundo? E todos devem pensar neles com repulsa, como criminosos? Eu digo não e não outra vez”!
Arthur Schopenhauer . Parerga e Paralipomena
Contudo, ele próprio não aprovava o suicídio, uma vez que o acto nega as dores da vida, diferentes da renúncia do asceta, que nega os prazeres da vida. A única forma de autodestruição que considerava aceitável é a morte do asceta pela fome, onde a vontade individual de viver é dominada.
“O suicídio, a destruição intencional da existência única, é um acto vaidoso e tolo, pois a coisa em si não é afectada por ele.”
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
A filosofia de Schopenhauer é de facto muito sombria, mas, paradoxalmente, objectivava oferecer tranquilidade e paz de espírito, através da negação da vontade pela ascese, ou através da sabedoria, pela estética e pela ética.
Nada vezes nada: a Negação da Vontade.
Schopenhauer cita o escritor francês Chamfort, que afirma,
“É difícil encontrar a felicidade dentro de nós próprios, mas é impossível encontrá-la em qualquer outro lugar”.
O auto-conhecimento é um processo perene, onde se descobrirá não só a própria essência, mas também a do universo.
Na sua juventude, Schopenhauer desprezava os teólogos e chamava à religião a metafísica das massas, criticando a forma como a igreja doutrinava as mentes das crianças. Mas em anos posteriores começou a aperceber-se do significado profundo de certas práticas religiosas, considerando o cristianismo como uma abordagem profunda à filosofia pessimista:
“A doutrina do pecado original (afirmação da vontade) e da salvação (negação da vontade) é a grande verdade que constitui a essência do cristianismo”.
Arthur Schopenhauer . O Mundo como Vontade e Representação
Ainda assim, o gigante de Danzig acreditava que o budismo e o hinduísmo seriam mais profundos do que o cristianismo. Os budistas fazem da destruição da vontade a totalidade da religião, e do nada a essência da natureza humana. Os hindus constataram que o ego era uma ilusão, a marca da auto-ignorância. Para que o ego seja transcendido, dá-se lugar ao Ātman, o verdadeiro eu, cujo objectivo é fundir-se com Brahman (a realidade última da existência). Esta seria a fonte do mais profundo auto-conhecimento.
Schopenhauer, que desenvolveu a sua filosofia argumentando contra os seus antecessores e contemporâneos da filosofia ocidental, acabou por descobrir, para seu espanto, que tinha chegado a uma conclusão semelhante à dos budistas e dos hindus.
Uma das formas de escapar ao sofrimento é travar uma guerra interior contra a vontade de viver e de desejar. Porém, a negação da Vontade acaba por levar à morte, não há salvação ou esclarecimento, mas simplesmente nada. Mas Schopenhauer sabia como é difícil assumir uma vida ascética, uma vez que muito poucos seres humanos são capazes de a suportar. E embora a propriedade de bens materiais ou emocionais nunca satisfaça plenamente o desejo dos indivíduos e das sociedades, a sabedoria será capaz de o fazer.
Filosofia: sabedoria para a vida.
A filosofia tem de ser entendida como experiência, tem de ser mais sensual e menos intelectual. A vida vem antes dos livros e devemos pensar com a nossa própria cabeça, mais do que pela cabeça dos outros.
“Quando lemos, outra pessoa pensa por nós; limitamo-nos a repetir o seu processo mental… Então acontece que se alguém passa quase todo o dia a ler, perde gradualmente a capacidade de pensar. Tal é o caso de muitos estudiosos; que leram até à estupidez. A experiência do mundo pode ser vista como uma espécie de texto, ao qual a reflexão e o conhecimento oferecem o comentário. Quando há muita reflexão e conhecimento intelectual, e muito pouca experiência, o resultado é um daqueles livros que têm em cada página duas linhas de texto a quarenta linhas de comentário”.
Arthur Schopenhauer . Parerga e Paralipomena
Uma das formas de sair da luta sem fim contra a Vontade é a contemplação inteligente da vida através da filosofia. Schopenhauer diz-nos que o génio está em abandonar o interesse próprio, desistir de desejos e objectivos completamente. O segredo reside na percepção clara e imparcial do objectivo, do que é essencial, e do que é universal. Embora o intelecto exista apenas para servir a Vontade, em certos casos a razão pode libertar-se dela e agir independentemente, embora apenas a espaços. Esta actividade independente da Vontade é a contemplação estética ou o acto de criação, que Schopenhauer acredita ser a marca da genialidade.
No entanto, o génio não pode socializar com outros que pensam no temporário, no específico e no imediato.
“As pessoas são sociáveis na medida em que são intelectualmente pobres e geralmente vulgares”.
Arthur Schopenhauer, Parerga e Paralipomena
O que torna as pessoas sociáveis é a sua pobreza interior. Os seres humanos são incapazes de suportar a solidão porque o vazio interior os impele para a sociedade. O génio é forçado ao isolamento, e por vezes à loucura. Quanto mais inteligente é, mais dor se sente. A pessoa que é dotada de génio sofre acima de todos os outros.
Estética, Ética e a serena música das esferas.
Na estética encontramos duas categoriais empíricas: a experiência subjectiva é a percepção do mundo independente da vontade, enquanto a vertente objectiva da experiência estética é a expressão de ideias platónicas, que representam as formas essenciais de perfeição e beleza. Elas revelam alguma qualidade fundamental ou universal do homem e do mundo e são experimentadas quando a nossa atenção se concentra inteiramente nos fenómenos. Estas ideias são “objectos abstractos” que não fazem parte da nossa criação, e estão para além do espaço, do tempo e da causalidade.
Artes como a escultura, a pintura, a poesia e o teatro, aliviam o sofrimento e os males da vida mostrando-nos o eterno e o universal, permitindo-nos participar na eternidade. Transportamos o nosso olhar para longe dos objectos particulares de desejo do indivíduo e sentimo-nos como parte de algo universal. A arte permite-nos o esquecimento de nós próprios e a independência sobre a vontade.
A experiência mais poderosa da arte é a sensação do sublime. Para Schopenhauer, isto está presente em obras que reduzem a nossa existência neste planeta à irrelevância, mantendo na verdade uma relação hostil com a esfera humana. No entanto, podemos conscientemente afastar-nos do nosso mundo, e através da perda do ego e da libertação da vontade, experimentamos um “estado de elevação”.
No entendimento de Arthur Schopenhauer, o poder das artes para nos elevar acima da luta de vontades é característico sobretudo da música, que se encontra num reino completamente diferente de todas as outras artes e que expressa essências platónicas como mais nenhuma delas. É por isso que proporciona um prazer profundo, penetrando nos recantos da nossa natureza para acalmar as tempestades interiores. Arthur concordaria sem dúvida com Nietzsche quando este proclamou que “sem música, a vida seria um erro”.
A atitude não orientada para o ego que se obtém da estética, conduz finalmente à ética de Schopenhauer, que deriva da consciência do sofrimento das pessoas que são vítimas da Vontade. A nossa unicidade última é a base da moralidade, da compaixão e da empatia. Seguindo ensinamentos antigos de Epicteto e Marco Aurélio, o sábio alemão alertava para o facto do prejuízo dos outros resultar no nosso próprio prejuízo, e que será moralmente imperativo tratá-los como nos tratamos a nós próprios, de forma a reduzir o sofrimento no mundo.
Neste tipo de amor desinteressado, experimentamos a vida dos outros de uma forma quase mágica. Nesta experiência íntima do sofrimento colectivo, ligamo-nos a nós próprios, aos outros e à natureza em comunhão profunda, que conduzirá inevitavelmente à serenidade máxima.
É a essa serenidade máxima que conduz o pessimismo de Schopenhauer. Nesse sentido, e apesar de tudo, a filosofia sempre permite o vislumbre de uma luz, no fim do túnel que é este mundo.
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