Em 1888, o filósofo Friedrich Nietzsche escreveu:

“O que eu relato é a história dos próximos dois séculos. Descrevo o que está para vir, o que já não pode vir de outra forma: o advento do niilismo”.
Nietzsche . A Vontade de Poder

O niilismo é a convicção de que não há sentido para a vida, que o mundo é inóspito para as nossas mais altas esperanças e valores, e que não há deuses ou propósitos superiores para justificar o nosso sofrimento. Ser niilista é namoriscar com o desespero e o sentimento de que a vida não vale a pena ser vivida, e assim, a posição niilista é antitética à vida.

“Colocar a questão de que não ser é melhor do que ser é  um sinal de declínio… O movimento niilista é a expressão da decadência fisiológica”.

Embora o niilismo tenha existido em todos os tempos e lugares, ele é especialmente prevalecente no Ocidente moderno. Para compreender porquê, vamos recorrer aos ensinamentos expressos por Friedrich Nietzsche em “A Vontade de Poder”, uma colectânea de ensaios coligidos e publicados pela sua irmã, depois da sua morte. Especificamente, vamos examinar por que razão o filósofo alemão pensava que todas as visões de mundo dominantes do Ocidente tinham partido de avaliações pessimistas da vida e, portanto, precursoras do niilismo moderno.

Em 1885, Nietzsche viu o espectro do niilismo a surgir no horizonte da civilização ocidental, e como ele escreveu:

“Porque é que o advento do niilismo se tornou inevitável? Porque os valores que temos tido até agora desenham essa consequência final; porque o niilismo representa a conclusão lógica e última dos grandes valores e ideais da Europa.”

O Ocidente está há muito tempo sob o feitiço de ideias baseadas na existência daquilo a que Nietzsche chamou “o mundo verdadeiro”. Tais visões de mundo postulam que, juntamente com esta realidade terrena imperfeita, existe uma outra realidade mais perfeita – um mundo verdadeiro. Esse mundo verdadeiro é um destino que, para ser alcançado, implica a entrada num estado de felicidade eterna, o céu, o paraíso ou uma utopia. Daí as filosofias do verdadeiro mundo procurarem dar um sentido à vida, representando-a como uma viagem rumo à redenção, que compensará o stress e o desconforto da jornada; um relato do verdadeiro mundo como curso correcto das nossas vidas é uma espécie de história, uma narrativa.

Uma das primeiras e mais influentes filosofias do mundo verdadeiro na história ocidental foi forjada na mente de Platão. Segundo Platão, a realidade terrena que percebemos com os nossos sentidos é um engano e afirmou que por trás dela existe o mundo imutável do Ser, um mundo verdadeiro, que é o reino das formas essenciais. Para Platão, o sentido da vida está no afastamento dos nossos sentidos, na moderação das nossas emoções, e através do desenvolvimento do intelecto captar a perfeição primordial que existe no mundo do Ser. Este é o caminho para a verdade, para a iluminação e para a eliminação do sofrimento.

A forma de Platão dar sentido à vida dominou praticamente toda a história do pensamento e do sentimento ocidental. Em primeira instância sob o domínio do cristianismo – embora, como veremos, o Platonismo tenha continuado, muitas vezes sob formas difusas e subliminares, a dominar o pensamento ocidental, mesmo na atmosfera materialista da era pós-cristã.

Nietzsche escreveu que “o Cristianismo é o Platonismo das massas”, querendo dizer que a cosmovisão cristã é uma versão ligeiramente modificada do Platonismo, desenhada para o consumo de todas as camadas sociais. Isto porque, tal como o Platonismo, a cosmovisão cristã é uma teoria do “mundo verdadeiro”. Segundo ela, este é um mundo moralmente degradado, ou “caído”, e nele sofremos pelos pecados que nós e os nossos antepassados cometemos contra Deus. No entanto, para além desta dimensão amaldiçoada, existe o reino dos céus – o mundo verdadeiro – onde as almas dos justos encontram salvação, redenção, vida eterna e felicidade, após a morte da sua carne corrupta.

Não existe, evidentemente, uma identidade completa entre o Platonismo e o Cristianismo. Não existe, por exemplo, um Deus criador omnipotente em Platão. Porém, tanto a narrativa platónica como a cristã são construídas à volta da mesma divisão metafísica entre o mundo natural e o sobrenatural, entre a terra e o céu, sendo este último retratado como o lar e o primeiro como um lugar de exílio.

É bem sabido que Nietzsche anunciou a morte de deus, o que significava que no Ocidente a crença num deus monoteísta estava em declínio. No entanto, o que é menos conhecido é que ele também previu que, após a morte de deus, as teorias do verdadeiro mundo continuariam a florescer. Contudo, em vez de postularem um paraíso transcendental e redentor na vida após a morte, estas filosofias pós-cristãs do verdadeiro mundo estruturaram-se em torno da possibilidade de redenção nesta vida, um céu na terra que é forjado pelos homens. Nietzsche referiu-se a estas teorias pós-cristãs do verdadeiro mundo como “sombras de deus”, e como ele escreveu:

“Deus está morto; mas dado o caminho dos homens, durante milhares de anos existirão cavernas em que a sua sombra será mostrada”.

As ideologias políticas totalitárias que assolaram o século XX são sombras de deus. Nietzsche chamou ao socialismo “cristianismo latente”, enquanto Carl Jung, 75 anos após Nietzsche, tomou nota da correlação na Europa entre o declínio da crença religiosa e o aumento do fanatismo político.

“O Estado toma o lugar de Deus… As ditaduras socialistas são religiões”.
Carl Jung . The Undiscovered Self

Os praticantes destas teorias políticas do verdadeiro mundo queriam engendrar socialmente um Homem Novo que fosse redimido dos defeitos e pecados do passado, e prometeram aos seus seguidores que, se lhes fosse dado poder e controlo suficientes, o Estado construiria um mundo verdadeiro, um céu na terra. A ideologia nazi, por exemplo, prometeu a vinda de uma utopia ariana, enquanto Karl Marx declarou que a chegada de uma utopia comunista marcaria o que ele chamou “o fim da história”.

O comunismo é assim o avatar de todas as escatologias religiosas: a vinda do Messias, a segunda vinda de Cristo, o nirvana. Não é uma perspectiva histórica, mas uma mitologia contemporânea. No século XX, o escritor checo Milan Kundera fez eco deste sentimento:

“O totalitarismo não é apenas o inferno, mas também o sonho do paraíso – o sonho antigo de um mundo onde todos vivem em harmonia, unidos por uma única vontade e fé comum. Se o totalitarismo não explorasse estes arquétipos, que estão profundamente enraizados em todos nós e em todas as religiões, nunca poderia atrair tantas pessoas.”
Milan Kundera . O Livro do Riso e do Esquecimento

Na nossa época, ainda existem outras sombras de deus. Alguns dos movimentos ambientalistas mais radicais procuram aproveitar o poder do Estado para diminuir radicalmente o impacto da humanidade na natureza e criar uma utopia ambiental, onde os seres humanos se redimam do que são vistos como pecados contra a Mãe Natureza. Alguns acreditam que se respeitarmos os dogmas da ciência e aproveitarmos o poder da tecnologia e da inteligência artificial, seremos capazes de construir uma sociedade utópica tecnocrática, ou cientificamente gerida. O movimento trans-humanista baseia-se na crença de que, fundindo o homem com a máquina, seremos capazes de transcender as fragilidades humanas e, em algum momento no futuro, ascender à condição de deuses. Muitos movimentos espirituais vêm o mundo como invariavelmente caminhando para uma utopia caracterizada pelo amor universal, pela liberdade e pela harmonia.

Enquanto todas estas sombras de deus possuem rebanhos de discípulos, a teoria do mundo verdadeiro destinada ao consumo e alienação das massas continua a ser um mito de chegada. Aqueles que subscrevem este mito acreditam que um dia chegarão a um ponto de viragem na vida e na História; todas as suas frustrações e problemas desaparecerão, e finalmente serão felizes. Por outras palavras, acreditam que no futuro entrarão na sua própria utopia pessoal, ou no seu verdadeiro mundo.

Incorporado no mito da chegada está a mensagem de que haverá um dia em que as nossas lutas e sofrimento estarão terminados. A depressão, a ansiedade, a raiva, e todo o tipo de doenças acabarão finalmente. Acordaremos uma manhã e reconheceremos claramente que “chegámos”. Seremos saudáveis e felizes. Estaremos no trabalho, no lar, e na relação que sempre quisemos, financeiramente confortáveis e fundamentalmente em paz connosco próprios.

O que o Platonismo, o Cristianismo, e as sombras políticas e seculares pós-cristãs têm em comum é que, na sua essência, são profundamente pessimistas. Pondo de lado a questão de saber se um mundo verdadeiro existe ou alguma vez existirá, todas estas visões de mundo estão baseadas numa rejeição desta realidade terrena e numa condenação do momento presente, ou como Nietzsche explica:

“O conceito do verdadeiro mundo insinua que este mundo é inverídico, enganoso, desonesto, inautêntico e subsidiário, e consequentemente, inadaptado às nossas necessidades.”

O que é que leva as pessoas a rejeitar esta realidade terrena, que é a única realidade que sabemos de certeza que existe, e a postular a existência de um mundo verdadeiro? Segundo Nietzsche, trata-se de uma necessidade psicológica. Aqueles que subscrevem estas visões de mundo tendem a ser moral e espiritualmente fracos e incapazes de lidar com a condição humana sem uma muleta psicológica. Tais pessoas, portanto, precisam de acreditar na existência de um mundo verdadeiro onde encontrarão paz e salvação duradouras, caso contrário, ficariam aleijadas pelo sofrimento e incapazes de suportar a vida.

“É o desgaste da vida que cria o “outro mundo”. Imaginar outro mundo, mais valioso, é uma expressão de ódio pelo mundo que nos faz sofrer… Não criará o homem eternamente um mundo fictício para si próprio porque anseia por um mundo melhor do que a realidade?”

Como as filosofias do mundo verdadeiro são avaliações pessimistas da nossa sorte na terra, são precursoras do niilismo, pois como Nietzsche escreveu: “O pessimismo é uma forma preliminar de niilismo”. Tudo o que é necessário para um crente no mundo verdadeiro passar a um niilista completo é uma simples crise de fé. Pois se, ou quando, a dúvida oblitera a crença num mundo verdadeiro, então somos forçados a confrontar a possibilidade de que esta realidade terrena e o aqui e agora – que já se julgou ser irreparavelmente falho e insuficiente – é tudo o que existe.

“Quando finalmente descobrimos como o mundo verdadeiro é fabricado unicamente a partir de necessidades psicológicas só nos resta o “mundo repudiado”, e acrescenta-se esta suprema desilusão às razões pelas quais merece ser repudiado. Neste ponto, o niilismo é alcançado: concede-se a realidade como a única realidade. Que é insuportável.”

Como as teorias do mundo verdadeiro são pessimistas e situam-se a um mero passo do niilismo, Nietzsche acreditava que o homem moderno precisa de uma visão não dependente desse mito platónico. Precisamos de um modelo que, em vez de repudiar esta existência terrena, justifique, afirme e até abrace o sofrimento que lhe é indispensável. Precisamos de uma filosofia que nos ajude a cultivar o sentido do momento presente, e a única vida que sabemos de certeza que temos. Precisamos, em suma, de uma visão do mundo que promova o florescimento humano, permanecendo fiéis ao aqui e ao agora e a esta terra.

Nietzsche formulou uma mundivisão que propunha resolver esta lacuna, que o Contracultura irá articular mais à frente. Importa por agora notar que, livre dos ditames das religiões cristãs, o homem ocidental não deixou de depender da perniciosa recorrência a mundos verdadeiros, que a história inapelavelmente revelou como distópicos. Continuamos a cometer, na actualidade, esse erro fundamental e profundamente niilista, acreditando na existência de fórmulas e receitas e engenharias que erradiquem o sofrimento da existência e que a realidade que nos é dada é corrupta e não nos serve.

Em nome desse bestial equívoco e dessa doentia negação, sacrificamos no Ocidente muito das nossas vidas, inclusivamente a liberdade, que é talvez uma dos valores que fazem deste mundo um lugar único e fascinante.