No seguimento de um artigo já publicado no ContraCultura sobre a alucinante e perigosa experiência de guiar automóveis de competição nos anos 50 do século XX, evocamos as 500 milhas de Indianapolis de 1955, a propósito de um breve documentário que está disponível no Youtube e cujo footage, a cores, tem uma qualidade assombrosa, considerando que se trata de um registo com quase 70 anos.
Nesta prova morreram dois pilotos. Manny Ayulo numa das sessões de qualificação e Bill Vukovich, envolvido num aparatoso acidente, sensivelmente a meio da distância a percorrer. Este último era uma estrela do seu tempo e o favorito à vitória (seria a terceira consecutiva). Mas é como se nada fosse: depois de uma breve pausa de 27 minutos em modo bandeiras amarelas, a corrida recomeça. No final, há sorrisos e festejos e o sabor da glória. Ninguém nas imagens parece afectado por se terem entretanto perdido duas vidas. Toda a gente sabia que o risco fazia parte da profissão. Toda a gente sabia que as 500 milhas de Indianapolis, feitas a uma média de 200 kms por hora em caixões sobre rodas, eram um desafio alucinante e extremamente perigoso, cumprido no gume da navalha que se estende entre a vida e a morte.
Estas imagens obrigam à reflexão sobre a forma muito diferente como equacionamos a vida, o risco, a segurança e a recompensa, no hiato de apenas 7 décadas.
E por muito que possa chocar a estimada audiência, o redactor destas linhas tem dúvidas de que nessa década do século XX, sem dúvida fatídica para os desportos motorizados, a equação fosse resolvida pior do que é agora. Na altura, uma sociedade orientada para a espectacularidade, o virtuosismo, a coragem e o progresso técnico sobredimensionava a variável do risco. Hoje, uma sociedade orientada para a segurança, a manutenção do status quo tecnológico e social e a crítica do heroísmo reduz a variável da recompensa.
Ora, considerando que ao diminuirmos substancialmente o perigo nas corridas de automóveis, obliteramos em directa proporção a sua glória, e que sem glória o percurso humano perde o seu carácter épico e transcendente; considerando que, ao defendermos a vida pela vida, acima de qualquer outro valor, estamos na verdade a desvalorizá-la; considerando que quanto mais uma sociedade investe na variável securitária, mais desinveste na sua componente libertária; considerando ainda que uma existência sem a experiência do risco, que dá prioridade à longevidade em detrimento da intensidade, que evita o conflito e privilegia o casulo, será, por definição, deficitária; talvez não fosse escandaloso rever os parâmetros dessa equação.
Não é tarefa para os líderes que temos hoje, claro. Mas será, talvez, um desafio de carácter ontológico a ser resolvido pelas gerações vindouras.
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