Saint Thomas More . Hans Holbein, o Jovem . 1527

 

“For if you suffer your people to be ill-educated, and their manners to be corrupted from their infancy, and then punish them for those crimes to which their first education disposed them, what else is to be concluded from this, but that you first make thieves and then punish them.”
Thomas More . Utopia

 

A vida de um sábio, a morte de um santo.

Thomas More (1438-1535), filósofo, diplomata, escritor, advogado e, lamentavelmente para ele, Lord Chancellor de Henrique VIII, viveu uma existência intensa, atribulada e, frequentemente, em delicado equilíbrio acrobático no fino fio da navalha que separava as poltronas do poder das cadeiras do cadafalso, na Inglaterra do seu tempo. É geralmente considerado como um dos grandes humanistas do Renascimento, foi canonizado como mártir da Igreja Católica em 1935 e imortalizado pela sua “Utopia”, que publicou em 1516. Homem de carácter e imaculada reputação, jurista célebre, operático soldado da dignidade humana e iconográfico inimigo do despotismo esclarecido, foi um cavaleiro com causas, abençoado por um grupo de excelentes amigos, como, por notável exemplo, Erasmo de Roterdão, e exorcizado por um não menos numeroso exército de antagonistas, entre os quais, todos os anglicanos.

Lamentavelmente apanhado no mesquinho conflito entre Henrique VIII e a igreja romana, conseguiu chegar a Lord Chancellor sem se converter ao anglicanismo (religião que Henrique inventou para se poder divorciar quantas vezes lhe desse na gana). Independentemente de receber o Rei com preocupante frequência na sua casa mítica dos arrabaldes de Londres, para grandes repastos bucólicos e supremas conferências sobre o último destino da humanidade e a soberania civilizacional do povo inglês; afora More considerar o seu monarca como um verdadeiro messias da administração pública, a coexistência entre as duas carismáticas figuras estava condenada a acabar em drama grande e foi assim mesmo em grande drama que acabou.

 

Henrique VIII . Hans Holbein, o Jovem . 1537

 

Em Março de 1534, é editado o Act of Succession pelo qual todos os súbditos de Sua Majestade deveriam jurar reconhecer a descendência de Henrique e Ana como herdeiros legítimos do trono, sem que nenhum estrangeiro (leia-se, pontífice do Vaticano) pudesse alvitrar fosse o que fosse. A 14 de Abril, More é convocado a Lambeth para jurar sobre o edital e, ao recusar tal profissão de fé, levado à custódia do abade de Westminster. Quatro dias depois é preso na Torre e em Novembro culpado de traição.

Na Primavera de 1535, Lord Cromwell (vilão de série b e feroz inimigo de More) oferece-lhe, surpreendentemente, a chance de sobrevivência: caso se manifeste favorável aos novos estatutos que conferem a Henrique o título de Supremo Chefe da Igreja, More escapará à forca. Mas o obstinado e valente personagem afirma-se apenas fiel súbdito do rei e do pontificado católico apostólico romano, rejeitando qualquer devoção ao bispado inventado. A 1 de Julho é julgado por traição em Westminster por uma comissão especial de 20 membros. É condenado à forca, embora Henrique, depois de um tímido e discutível ataque de misericórdia, decrete a sua decapitação na Torre, pena capital executada na manhã de 6 de Julho para grande vergonha dos ingleses, que ainda hoje choram a infâmia.

 

 

Mapa de Utopia . Ambrosius Holbein

 

Na Ilha de Utopia, a república depois de Platão e o marxismo antes de Marx.

Fã incondicional de Platão, Thomas More inspira-se na República para inventar a obra que é a mãe de toda a engenharia social: a Utopia, cujo título original era talvez excessivamente extenso para um eficaz trabalho de marketing: “Um pequeno livro verdadeiramente precioso, não menos benéfico que entretido, do melhor estado de uma república e da nova ilha Utopia.”

Apesar de a obra ter sido escrita em latim, a palavra “Utopia” deriva da justaposição dos termos gregos “ou” (advérbio de negação), “tópos” (lugar) e “ía” (qualidade, estado), referindo-se assim a nomenclatura a um lugar que não existe.

O protagonista, Rafael Hitlodeo, resulta de um cruzamento genético entre Ulisses e Sócrates e fala-nos de uma ilha que encontrou no decurso das suas viagens, onde as gentes vivem felizes numa sociedade perfeitinha da silva, embora a escravatura seja aceite com naturalidade (graças ao velho truque da retórica grega: os escravos não são cidadãos), estranho conceito que Thomas Jefferson veio a recuperar uns séculos mais tarde para justificar o seu idealismo-com-escravos-em-casa.

A Ilha da Utopia é uma espécie de negativo da Ilha dos ingleses e para perceber a obra é preciso perceber a Inglaterra do tempo. Ora a Inglaterra do tempo estava entretida a inventar o capitalismo moderno e Thomas More é capaz de ser o primeiro marxista antes de Marx, o primeiro comunista antes de Proudhon, na história da ideias.

A concepção da ilha de Utopia centra-se assim na limitação dos interesses individuais, na consequente sublimação das necessidades colectivas e na abolição da propriedade privada.

Esta sociedade não se dá às bactérias da burguesia e, por isso, tudo é justo. Através das messiânicas palavras de Rafael Hitlodeo, More inventa o conceito de Reforma Agrária para que a terra (o grande valor capitalista de então) não pertença nem a nobres, nem a padres, nem a mercadores, nem a burocratas – todos parasitas da felicidade comum – e o trabalho, assim como a riqueza, seja distribuído igualmente por toda a gente. E isto não serve apenas para prevenir a prosperidade dos ricos, mas na mesma medida para que não subsistam os preguiçosos!

As monarquias e oligarquias tendem a ser debilitadas pela natureza egoísta dos homens, acabando por se transformar em burocracias sem virtude, que servem apenas os interesses de alguns indivíduos para prejuízo de todos os outros. Por isso é que, na ilha, se contrapõe a república democrática assente na antítese dos ensinamentos de Maquievel: o bom governo tem origem no povo e o poder administrativo e executivo é atribuído democraticamente aos mais velhos, já que estes são, por consequência da provecta experiência de invernos, mais sábios (outro tique platónico).

Em Utopia, as decisões políticas têm por base as células familiares. Cada família é dirigida pelo homem mais velho e um certo número de famílias elege um magistrado regional que as governará. Cada dez destes magistrados obedece a um género de ministro, também eleito, e estes ainda elegem um príncipe. Os magistrados, os ministros e o príncipe reúnem-se no Senado, onde determinam a política da nação, sendo porém invariavelmente sujeitos ao rígido escrutínio da opinião pública. Kadhafi tentou implementar, na Líbia, um modelo desvairado assim parecido com este, durante os seus primeiros anos de poder, mas a experiência não correu lá muito bem e a república participada passou rapidamente a monarquia absoluta.

No meio disto tudo (e causa de tudo isto?) as mulheres, claro está, não têm direitos políticos, mas trabalham como os outros e é-lhes dada a faculdade suprema de ter opinião na polémica escolha dos seus maridos, o que não é de fraca consolação.

Thomas More foi, de certa forma, um percursor do behavorismo: em Utopia toda a gente é condicionada e educada dentro dos mesmos parâmetros culturais e simbólicos, valendo para a eficácia da escolástica a censura, a repetição, o bombardeamento subliminar e demais reputadas técnicas de berbequim, cuja origem injustamente atribuímos a alguns malucos mais tardios como Goebbels, Estaline ou Mao Tsé-Tung, mas que na verdade já tinham sido recomendadas por… Platão, claro.

 

Alfabeto utopiano

 

Porque o axioma igualitário é insustentável perante a ignorância de muitos e a erudição de uns poucos, em Utopia, a educação é gratuita, obrigatória e servida da mesma maneira a toda a gente: bem temperada pelo sal ideológico. Além disso, as leis têm obrigatoriamente que ser redigidas de forma clara e simples, para que que possam ser entendidas e aplicadas por todos, sem recurso a intermediários. Este aspecto do pensamento de Thomas More é muito curioso, já que, exercendo ele próprio a profissão de jurisconsulto, defende em Utopia a virtude de uma sociedade sem advogados.

No que diz respeito à defesa, nesta ilha idílica a guerra é encarada sempre como último recurso, embora todo o cidadão receba treino militar. Thomas More tem aqui um acesso simultâneo de inocência e pragmatismo: como o trabalho colectivo resultaria numa produção muito acima da necessária para a manutenção da sociedade (erro crasso, que viria a ser demonstrado quatro séculos depois), parte dessa riqueza seria reservada para contratar exércitos mercenários que protegessem a ilha fora das suas fronteiras, bem como para subornar os exércitos adversários. Mais a mais, este recurso não pode ser utilizado contra o utopiano comum, já que este não encontra no dinheiro qualquer valor.

A ilha de Utopia é, além de tudo, epicurista. Como na dialéctica entre a liberdade e a igualdade, More opta pelas virtudes da igualdade, a compensação individual surge através de um conceito de prazer e felicidade que é inerente à vivência social e que lhe dá o seu último sentido. Aqui, todo o cidadão tem carta branca para procurar o prazer, desde que as suas delícias não resultem no prejuízo de alguém.

Muito convenientemente, a ética e a religião também são conectadas ao prazer e à felicidade, embora o deus dos utopianos permanecesse – na sua essência – judaico-cristão. Esta inédita combinação entre as convicções pagãs e os evangelhos de Constantino implica a execução de alguns exercícios radicais de ginástica moral que More não enuncia, mas que por certo a sua imaginação prodigiosa conseguiria resolver. Afinal, a criatividade sempre foi a melhor amiga do pensamento utópico. E do distópico também.

 

Thomas More e a utopia retroactiva, na Universidade do Professor Sugrue.

Numa das suas mais brilhantes lições, o Professor Michael Sugrue articula os fundamentos do pensamento utópico de More e defende a tese de que, ao contrário dos equívocos que gerou, a sua obra acabou por não promover um projecto futurista ou progressista, mas sim uma conservadora recomendação de regresso aos valores da escolástica medieval e da antiguidade clássica, sendo por isso insuficiente para influenciar com profundidade os estágios de evolução da ciência política que posteriormente se sucederam na esfera Ocidental.

Uma palestra essencial para o bom entendimento do legado de Thomas More, que o ContraCultura recomenda vivamente.