A edição de 2023 do Giro de Itália poderia ter sido atípica, e foi de facto incaracterística durante uma boa parte do seu decorrer. Poderia ter sido apática, e aborrecida se exibiu por excessivas centenas de quilómetros. Mas acabou por ser afinal como quase sempre: dura, disputada e incerta.

Acesa durante a primeira semana, apagada durante a segunda e de novo relançada no seu último terço, a prova sofreu muito no seu índice competitivo por ter perdido em poucos dias uma boa parte dos corredores alinhados à partida (ao todo não chegaram a Roma 51 dos 170 concorrentes), entre os quais o primeiro candidato à vitória – Remco Evenepoel – logo no primeiro dia de descanso, e Tao Geoghegan Hart o vencedor da edição de 2020 e que parecia destinado a discutir com o belga e com Roglic o primeiro lugar da classificação geral.

Perante estes abandonos, as equipas de topo ficaram, às páginas tantas, estratégica e tacticamente desorientadas. A Soudal QuickStep chegou este domingo a Roma com dois atletas apenas. A Ineos Granadiers com cinco (embora com três no top 10). A UAE nunca pensou que teria que comandar o pelotão. E a Jumbo Visma, que tinha partido para a prova com cinco atletas recrutados à última hora e parecia condenada a um giro difícil e discreto, apostando tudo no génio de Primoz Roglic e na capacidade de sacrifício de Sepp Kuss, acabou por levar o título para casa, numa tensa e emocionante reviravolta que compensou os fãs da modalidade por alguns momentos menos felizes ou bastante aborrecidos que aconteceram entretanto.

Mas vamos por partes.

 

Remco entra a matar.

Remco Evenepoel rebentou com a concorrência logo na primeira etapa do Giro, um contra-relógio relativamente curto, mas que criou diferenças muito significativas entre o belga e aqueles que tinham grandes ou pequenas esperanças de um lugar no pódio. Evenepoel deu 29 segundos a um excelente José Almeida, que foi terceiro atrás do especialista Ganna, e para cima de 40 segundos a Roglic. Foi uma verdadeira razia. Atletas importantes para a classificação geral como Alexandr Vlasov e Geraint Thomes ficaram logo a 55 segundos da liderança.

Era importante para João Almeida começar bem e, sobretudo, reforçar à partida a posição de líder na UAE, equipa que contava com Jay Vine (sétimo no contra-relógio de hoje a 16 segundos do ciclista português) e Brandon Mcnulty, que foi oitavo, a 18 segundos de Almeida e 48″ do vencedor da etapa. Estes são ciclistas de elite que têm ambições ao top 10 da geral e João Almeida, se queria contar com a sua preciosa ajuda no doloroso decorrer da prova, tinha que confirmar méritos de liderança já nesta primeira semana.

Esta edição do Giro apresentava-se muito complicada, mais complicada que o costume, o que não é dizer pouco. Iria ter ainda mais dois contra-relógios e etapas insanas em quilometragem e altitude acumulada, com subidas muito inclinadas e, ainda na primeira semana, muito longas também (os últimos 50 quilómetros da sétima etapa eram quase sempre a subir, só com um pequeno plano no meio). Nada estava decidido, obviamente, mas Renco tinha impressionado toda a gente, logo ao momento primeiro.

Era necessário esperar pela montanha para perceber melhor se alguém tinha pedalada para incomodar Evenepoel, ou se o destino tinha um guião diferente, e se Almeida mantinha a forma que mostrou nesse dia.

 

No fim da primeira semana, tudo em aberto.

No fecho da primeira semana do Giro de Itália, a única surpresa era que Remco Evenepoel, depois de dois contra-relógios, não tinha ganho mais de um minuto e pouco aos seus directos concorrentes para o triunfo na prova. Apesar de ter entrado em grande logo nos primeiros quilómetros da competição, o belga não conseguiu impor-se como desejaria no esforço individual da nona etapa e partia assim para os vários desafios de alta montanha das semanas seguintes com uma estreita almofadinha que não excedia os 50 segundos para Geraint Thomas, Primoz Roglic e Tao Geoghegan Hart, e um minuto e sete segundos para João Almeida.

Na única etapa de alta montanha deste primeiro terço da corrida, a sétima, os ciclistas castigaram a organização e recusaram-se a competir, limitando-se a passear pela paisagem lunar dos Apeninos e entregando a vitória a uma fuga protagonizada por atletas de segundo escalão. Este tipo de ‘greves’ é característica dos tempos securitários que vivemos, muito desagradável para os espectadores e perigosíssima para a saúde da modalidade, mas também devemos reconhecer que uma etapa de 220 quilómetros não deve terminar com quarenta quilómetros a subir, corrida no ambiente rarefeito de oxigénio do Gran Sasso, uma montanha que se eleva aos 3000 metros de altitude.

Assim, nem deu bem para perceber como é que Remco e a sua equipa se iam defender nas escaladas mais exigentes. O que foi possível verificar na etapa 8, que tinha uma chegada com subidas duras embora não comparáveis à inclinação e altitude que falta cumprir, é que Roglic pareceu melhor do que o campeão do mundo em título. E que os homens da Ineos, equipa que neste momento tinha 5 corredores no top 14 da classificação geral (e dois no top 5) iria ter com certeza uma palavra a dizer no desenrolar da prova.

Uma menção honrosa cabe ao vencedor desta animada etapa 8, o Irlandês Ben Healy, que era um desconhecido em Janeiro deste ano e que depois de excelentes resultados nas clássicas da Primavera, fez no sábado uma corrida absolutamente extraterrestre, protagonizando e liderando a fuga principal e depois, a quarenta quilómetros do fim e ainda com subidas bem difíceis por cumprir, meteu uma a baixo e nunca mais ninguém o agarrou. Este corredor tem apenas 22 anos, um potencial incrível, e sendo fraco no contra-relógio (é baixo e muito levezinho), pode tornar-se um voltista a ter em conta para a camisola da montanha e um muito sério competidor de clássicas de um dia.

Quanto a João Almeida, que era quinto neste momento, tinha a prova em aberto. Mas não fez o melhor dos contra-relógios, terminando em nono e perdendo algum tempo para todos os seus rivais, embora se esperasse que pudesse perder ainda mais em relação a Evenepoel do que acabou por acontecer. Este Giro era fundamental para a carreira do português, que, pelo que se tinha visto até aqui, contava com o apoio total e focado da sua equipa, ao contrário do que tem acontecido em anos anteriores. Mas se não conseguisse um lugar no pódio, poderia nunca mais usufruir dessa solidariedade da UAE em provas de primeira grandeza, porque o que não faltam na sua equipa são excelentes ciclistas.

Seja como for, o Giro estava tão longe de estar decidido como da linha de meta em Roma. Com pouco mais de um minuto a separar os cinco primeiros e muitas etapas que podiam fazer grandes diferenças entre os atletas, qualquer apostador sensato seria no mínimo cauteloso.

 

A meio da corrida, a debandada.

Quedas. Exaustão. Mau tempo. Covid 19. O Giro ia agora na sua metade e, ainda com as principais etapas de montanha por cumprir, tinham abandonado já a prova inúmeros ciclistas de topo. Remco Evenpoel, que liderava a classificação geral e era o seu primeiro favorito, foi corrido pela própria equipa depois de ter acusado gripe chinesa no dia de descanso de segunda-feira. Apesar de até os radicais da Organização Mundial de Saúde já terem dado a pandemia como terminada, deu a sensação que os belgas da Soudal não queriam ganhar a volta à Itália e correram com a sua estrela, assintomática ainda por cima e contra a vontade do atleta, sem sequer notificarem a direcção da prova. Como o surto alastrou a outros corredores da equipa, a Soudal estava agora em competição com 3 atletas apenas. Surrealista.

A seguir foi Aleksandr Vlasov, um dos líderes da Bora, que abandonou a prova. A Ineos, que já tinha perdido Filippo Ganna na primeira semana, perdia também, por queda, o segundo classificado da geral, Tao Geoghegan Hart. A meio da prova, 36 atletas já a tinham abandonado.

João Almeida era agora terceiro, atrás do líder Geraint Thomas e de Primoz Roglic. Dificilmente se repetiria uma oportunidade como esta para que o Português fizesse uma classificação histórica. Tudo o que fosse abaixo dos lugares do pódio seria um fracasso de que dificilmente poderia recuperar, em termos de estatuto na equipa UAE, que milagrosamente permanecia com todos os seus ciclistas na corrida.

Nesta altura, projectava-se que iriam chegar a Roma um punhado de desgraçados e que o vencedor seria o último a cair. Mas os prognósticos têm um problema, como todos sabemos: são prévios aos acontecimentos.

 

O Giro à procura do suicídio.

A etapa 13 seria a jornada rainha da Volta à Itália. Em teoria. Acontece que os ciclistas decidiram que em vez do que estava programado, só deviam correr os últimos 78 quilómetros da etapa. Porque parece que estava frio. E a direcção aceitou, prejudicando o perfil competitivo da prova e o seu potencial de criar espectáculo; desrespeitando os públicos que estavam acampados nas subidas anteriores e atirando para o lixo o seu próprio critério sobre o índice qualitativo da prova que organizam.

 

 

Para cúmulo do ridículo, quando toda a gente pensava que, depois de transformada numa crono-escalada em grupo, a etapa 13 seria atacada de princípio ao fim, num sprint alucinante… Ninguém atacou. Quer dizer, para além do francês em final de carreira Thibaut Pinot (que fez um ecelente Giro), e dois sul americanos que aproveitaram a cobardia e desvergonha de toda a gente para darem nas vistas.

Mais: desses três personagens, acabou por triunfar Rubio, o equatoriano da Movistar que se limitou a ir no elástico da fuga para conseguir talvez a vitória mais cínica e manhosa da história da competição.

Se isto continuasse assim, com quilómetros encurtados, dificuldades retiradas, ataques inexistentes, emoção de nível zero, espectáculo nenhum e desistências em massa por gripes e cansaços e quedas e alergias às condições climatéricas, esta edição de 2023 do Giro ficaria para sempre como a corrida dos sobreviventes.

E João Almeida, que se portou neste dia como quem só queria mesmo fazer o mínimo necessário para terminar no último lugar no pódio, quando podia perfeitamente, por uma vez na vida, atacar; também não ficou muito bem na fotografia.

O ContraCultura será sempre um defensor dos ciclistas quando são sujeitos à desumanidade de etapas sádicas e depois são criticados quando recorrem a transfusões de sangue ou a outras “batotas” e, na óptica do redactor deste texto, Lance Armstrong continua a ser um dos mais bravos e bem sucedidos ciclistas da história da modalidade, apesar de lhe terem roubado os títulos por causa do doping, numa altura em que toda a gente no pelotão de elite do ciclismo profissional se drogava loucamente.

Mas se os ciclistas não gostam de sofrer, deviam ter escolhido uma carreira no futebol ou no badminton ou no snooker ou naquela modalidade de atirar setas a um alvo que se pendura nas paredes dos bares.

 

Finalmente, o João decide partir a porcelana.

Depois de mais algumas etapas sem história e perante o aborrecimento monumental com que a segunda semana do Giro tinha presenteado a audiência, João Almeida decidiu ser o primeiro a atacar e fê-lo na 16ª etapa, por várias vezes e em grande estilo. Frente a Geraint Thomas e depois de deixar para trás Primoz Roglic, que teve um dia menos bom, suplantou o britânico para fazer história e vencer a sua primeira etapa em grandes voltas. E a única até àquele momento que foi digna dos pergaminhos da competição italiana, ainda por cima.

João Almeida era agora segundo, a 18 segundos de Thomas e com 11 de vantagem sobre Roglic. Com duas etapas de alta montanha e uma crono-escalada ainda por disputar, a corrida não podia estar mais aberta entre estes três.

Seja como for, e mesmo considerando as desistências de Remko Evenepoel e Tao Geoghegan Hart, o ciclista das Caldas da Rainha provou nesse dia que é um voltista de topo. E entrava naturalmente na luta pelo primeiro lugar da classificação geral.

 

A competição ressuscita das cinzas.

Na última etapa “a doer”, a 20ª, uma duríssima crono-escalada de mais de 40 quilómetros, Primoz Roglic conseguiu roubar a camisola rosa a Geraint Thomas, depois de um esforço monumental que se traduziu num ganho de  quarenta segundos ao britânico, e mesmo depois de ter que parar para colocar a corrente na transmissão da sua bicicleta, que se soltou num momento em que uma irregularidade do asfalto não compaginou com o binário hercúleo que o esloveno estava a meter na estrada.

Este foi aliás o momento chave das três semanas. Toda a gente que gosta de ciclismo se lembrou do contra-relógio final do Tour de França de há três anos atrás, quando Roglic perdeu a prova para Pogacar, também a subir montanha acima. Desta vez e contra o relógio tanto como contra o azar, Roglic triunfou. E merecidamente, demonstrando que para vencer o Giro é preciso mais do que sobreviver às dificuldades e adversidades da prova. É preciso entrega de corpo e alma. E capacidade de transcendência.

Depois de, na décima sexta etapa, João Almeida e Geraint Thomas se terem aliado para fazer o esloveno sofrer a bom sofrer, nas duas etapas de montanha que restavam antes da crono-escalada Roglic mostrou que continuava a bom nível, e, desta feita invertendo a aliança, juntou-se a Thomas para deixar Almeida condenado ao último lugar do pódio. Quando chegou à crono-escalada, o ciclista da Jumbo tinha vinte e poucos segundo de atraso para o inglês da Ineos. A oportunidade de ganhar uma grande volta para além da espanhola, onde já triunfou por três vezes, estava lá. E o esloveno não a desperdiçou, comprovando, se preciso fosse, num esforço épico e inesquecível, toda a sua classe e fibra de grande campeão.

Ao fazer terceiro na classificação geral, João Almeida fez história, juntando-se a Joaquim Agostinho no restrito clube dos ciclistas profissionais portugueses que conquistaram um lugar no pódio das 3 grandes voltas do circuito mundial, ganhando ainda o prémio da juventude e uma etapa. Está de parabéns. Mas está também ainda algo distante de convencer como candidato a uma vitória, seja no Giro, seja no Tour, seja na Vuelta. Na decisiva crono-escalada de Sábado, Almeida ficou a 50 segundos de Roglic, apesar até de ter feito terceiro na etapa.

Ainda assim, os adeptos de ciclismo em Portugal não se podem queixar. Têm um ciclista capaz de brilhar nos palcos mais exigentes, com regularidade e espírito combativo. E seria certamente interessante ver o João fazer um Tour de France, que é uma prova mais alinhada com as suas características atléticas e mentais. Isto embora a participação do ciclista de A-dos-Francos na prova francesa implicará sempre o serviço ao atleta maior da sua equipa (e maior de todos, na opinião do Contra): Tadej Pogacar.

Mas como constantemente nos é ensinado pelos deuses do ciclismo, e como foi bem evidente nesta edição do Giro, estamos sempre longe de fazer uma mínima ideia do que é que pode acontecer numa prova de 3 semanas, disputada por atletas da elite mundial.