Revisitando uma edição tripartida da revista Colóquio Letras – de 2004, números 163 a 165 – que traz à estampa o trabalho de tradução que David Mourão-Ferreira desenvolveu sobre a poesia europeia.

 

Apollinaire e o Cristo moderno.

Filho de aristocratas polacos, nascido em Roma e naturalizado francês, Wilhelm Albert Włodzimierz Apolinary de Wąż-Kostrowicki, mais conhecido por Guillaume Apollinaire (1880-1918) foi, talvez, o mais importante activista cultural das vanguardas do início do século XX. Modernista pioneiro, fundador do surrealismo (foi ele que inventou a palavra), anunciador do cubismo (foi ele que redigiu o seu manifesto), editor, crítico e poeta de rupturas, o homem viajou pela vida muito à frente do seu tempo. Foi um dos membros mais populares do bairro artístico parisiense de Montparnasse, travando amizades lendárias com Pablo Picasso, Jean Cocteau, Erik Satie, Max Jacob e Marcel Duchamp. Sobreviveu às trincherias da primeira guerra mundial, onde foi gravemente ferido, mas acabou por morrer jovem, levado pela gripe espanhola. Enquanto viveu, porém, deu-se ao trabalho de um legado poético e crítico de eleição.

A história de Appolinaire seria até bastante linear, não fossem as suas convicções religiosas. Católico de criação e cristão por convicção humanista, o poeta fez grandes malabarismos para equilibrar a sua religiosidade com as manobras filosóficas dos modernismos todos de que foi ícone.

Em “Zona” essas contradições entre o necessário ateísmo da vanguarda do princípio do Século XX e a vivência da espiritualidade cristã são evidentes. Apollinaire chega ao ponto de separar Cristo de tudo o que é antigo, para que o messias seja poupado ao vendaval revolucionário e niilista do modernismo. A certa altura confessa até que os seus amigos sentem vergonha por ele da sua interior religiosidade. O poema é lindíssimo e parece que foi escrito para ser segredado, porque só aparentemente os seus versos são livres. Há um lânguido ritmo ao longo das estrofes que é um verdadeiro elevador da glória e David Mourão-Ferreira, que sabia o que estava a fazer, verte muito bem essa cadência para o português, perdendo-se pouco, nesse aspecto, do poder do texto original.

 

ZONA
Fragmentos

Tu no fundo estás farto é deste mundo antigo

Pastora ó Torre Eiffel o rebanho das pontes lança esta manhã o seu longo balido

Estás farto de viver na antiguidade grega e latina

Aqui até os automóveis têm o ar de coisas antigas
Só a religião permaneceu novinha em folha só a religião
Ficou simples como só hangares de Porto-Aviação

Só tu na Europa ó Cristianismo é que antigo não és
O Europeu mais moderno sois vós Papa Pio X
E tu tu que te sentes observado pelas janelas tens vergonha
De entrar numa igreja e de te confessares esta manhã
Lês os prospectos os catálogos os cartazes em voz alta cantados
Eis a poesia desta manhã e para a prosa tens os jornais
Há edições a 25 cêntimos cheias de aventuras policiais
Retratos dos grandes homens e mil títulos variados

Agora caminhas em Paris completamente só por entre a multidão
Rebanhos de autocarros rolam mugindo junto de ti
A angústia do amor dá-te na garganta um nó cerrado
Como se nunca mais devesses ser amado
Se vivesses noutro tempo entrarias para um convento
Vocês têm vergonha ao surpreenderem-me a rezar
Fazes troça de ti e como o fogo do Inferno o teu riso crepita no ar
As faúlhas desse riso douram o fundo da tua vida
É um quadro suspenso num museu deserto
E vais de vez em quando contemplá-lo de perto

(…)

Agora estás à beira do Mediterrâneo
Sob os limoeiros em flor durante todo o ano

Estás no jardim de uma pousada nos arredores de Praga
Sentes-te feliz    Há uma rosa em cima da toalha
E observas em vez de escrever o teu conto em prosa
A cetónia que dorme no coração da rosa

Eis-te em Marselha no meio de melancias

Eis-te em Coblença no hotel do Gigante

Eis-te em Roma sentado sob uma nespereira do Japão

Eis-te em Amsterdão com uma rapariga que te parece bela e que afinal é feia

Estás em Paris no gabinete do juiz de instrução
Como se fosses um criminoso metem-te na prisão

Fizeste dolorosas e alegres viagens
Antes de perceberes que ias envelhecendo
Sofreste por amor aos vinte e aos trinta anos
Vivi foi como um louco e perdi o meu tempo

(…)

Vais a caminho de Auteuil queres ir para casa a pé
Dormir por entre os teus manipanços da Oceania e da Guiné
São Cristos de outra forma e de outra crença
São os Cristos inferiores das obscuras esperanças

Adeus    Adeus

Sol    Pescoço cortado

 

Guillaume Apollinaire (esquerda) e André Rouveyre . 1914

 

 

Larbaud ou o gémeo de Álvaro de Campos.

Valery Larbaud (1881-1957) foi um dandy modernista da geração do Pessoa, mas em francês. Como Pessoa, era filho de fidalgos. Como pessoa, ficou orfão de pai muito cedo. Como Pessoa, era poligolota. Como Pessoa, tinha pancada por Whitman (não lhe chamou mestre querido mas ainda hoje os franceses lêem o seu Walt pela tradução dele). Mais a mais também tinha um heterónimo, chamado Bartlebooth (cruzamento onomástico entre o Bartleby de Melville e o Barnabooth de Perec em “La Vie mode d’emploi”).

E agora reparem bem, geografia à parte, se não podia ter sido o Álvaro de Campos, ele mesmo, a escrever isto que esse tal de Bartlebooth escreveu:

 

ODE

Empresta-me o teu grande ruído, o teu doce andamento,
O teu nocturno deslizar através da Europa iluminada,
Ó comboio de luxo! e a música tão angustiante
Que sussurra ao longo dos teus corredores de couro dourado,
Enquanto por detrás das portas lacadas, com loquetes de cobre maciço,
Dormem os milionários.
Cantarolando percorro os teus corredores
E sigo a tua corrida até Viena e Budapeste,
Misturando a minha voz às tuas cem mil vozes,
Ó Harmonika-Zug!

Senti pela primeira vez toda a doçura de viver,
Numa cabina do Norte-Expresso, entre Wirballen e Pskow,
Deslizava-se através das pradarias, onde pastores,
Ao pé de grupos de grandes árvores semelhantes a colinas,
Estavam vestidos de sujas e cruas peles de carneiro…
(Oito horas da manhã no Outono, e a belíssima cantora
De olhos violeta cantava na cabina ao lado.)
E vós, grandes espaços através dos quais vi passar a Sibéria e os montes do Sâmnio,
A áspera Castela sem flores, e o mar de Mármara sob uma chuva tépida!

Emprestai-me, ó Oriente-Expresso, Sud-Brenner-Bahn, emprestai-me
Os vossos miraculosos ruídos surdos e
As vossas vibrantes vozes de corda de viola;
Emprestai-me a respiração ligeira e fácil
Das altas e delgadas locomotivas, com movimentos
Tão desembaraçados, as locomotivas dos rápidos
Precedendo sem esforço quatro vagões amarelos com letras de ouro
Nas solidões montanhosas da Sérvia,
E, mais longe, através da Bulgária cheia de rosas…

Ah! é preciso que esses ruídos e esse momento
Entrem no meu poema e digam
Para mim a minha vida indizível, a minha vida
De criança que não quer saber nada, a não ser
Continuar eternamente à espera de coisas vagas.

 

 

Joyce chama por Morfeu.

Não é missão desta série de artigos umbilicalmente ligados às traduções que David mourão-Ferreira publicou na Colóquio e Letras biografar extensivamente os autores traduzidos, e James Joyce (1882-1941), que é só um dos mais importantes e influentes escritores do Século XX, não deve ser ofendido com rápidos resumos da sua obra e da sua existência. David Mourão-Ferreira traduz apenas um poema deste gigante irlandês, que sendo mais conhecido pelos seus romances, publicou em vida 49 textos líricos, em dois volumes.

A pérola de sabor isabelino em causa provém do primeiro volume, “Música de Câmara”, e é de um encanto minimal e repetitivo que é difícil de explicar. Joyce usa apenas cinco rimas na obra original e o tradutor respeita essa escrupulosa regra. A canção de ninar embala até o leitor mais granítico e, de tão singela e económica, bate o recorde dos mais rápidos soporíferos alguma vez receitados na história da composição lírica.

 

Dorme, agora, oh! dorme agora
Ó inquieto coração
Uma voz que chora “Dorme agora”
Ouve-se no meu coração.

Também agora a voz do inverno
Se faz ouvir junto da porta
Oh! dorme porque está o Inverno
A gritar-te “Acorda, acorda!”

O meu beijo irá dar-te agora
Sossego e paz ao coração.
Dorme, dorme, em paz, agora
Ó inquieto coração!

 

 

Cocteau sob o efeito dos ácidos.

Mais um gigante da cultura europeia, Jean Maurice Eugène Clément Cocteau (1889-1963) foi um dos mais ecléticos artistas do modernismo. Poeta, romancista, escultor, cineasta, designer, dramaturgo, ator, encenador e cenógrafo, este surrealista dos sete ofícios foi um dos personagens centrais da vanguarda de Montparnasse, já referida a propósito de Apollinaire. Uma das características que distingue Cocteau dos seus camaradas parisienses é a sua muito específica proposta de combinar elementos clássicos com a linguagem disruptiva dos modernismos, numa aparente contradição em termos que conseguiu resolver com elegância e prodigalidade.

O poema que DMF traduz é um autêntico manifesto surrealista, produto de uma excepcionalmente aprazível trip de ácidos. O autor vê o que é invisível, dá forma ao que é imaterial, oferece movimento ao que é imóvel, faz correr tinta sobre os fantasmas e cria incómodos à existência dos anjos, numa batota involuntária e aleatória a que se resumem as regras do jogo. Neste delicioso teatro onírico, a metamorfose é um recurso estilístico, como em Ovídio, mas em transe de buzinas.

Aproveitei-me, confesso, de certos acidentes
Do mistério e de erros de cálculos celestes
Aí está toda a minha poesia: eu decalco
O invisível (o que para nós é invisível)
Ao crime disfarçado em traje desumano,
“Mãos ao ar!”, gritei eu, “É inútil reagir”;
A encantos informes tratei de dar contorno;
Das astúcias da morte a traição informou-se;
Com tinta azul fiz aparecer, de súbito,
Fantasmas transformados em árvores azuis.

Será louco dizer que é simples ou sem perigo
Empresa semelhante. Incomodar os anjos!
Descobrir o acaso em flagrante delito
De batota, e as estátuas a tentarem andar!
Por cima das cidades que pareciam desertas,
Nos mirantes aonde somente chega a voz
Dos galos, das escolas, buzinas de automóveis
(Os únicos ruídos que das cidades sobe),
Surpreendi, provindos dos subúrbios do céu
Assombrosos rumores, gritos de outra Marselha.