Revisitando uma edição tripartida da revista Colóquio Letras – de 2004, números 163 a 165 – que traz à estampa o trabalho de tradução que David Mourão-Ferreira desenvolveu sobre a poesia europeia.

 

Petrarca e as queimaduras do amor.

Francesco Petrarca (1304 – 1374) é, com Dante, um dos fundadores da literatura como a lemos hoje. Poeta, filólogo, latinista, tradutor, embaixador e jurisconsulto, foi primeiro em muitas coisas, inclusivamente: o primeiro a escrever sonetos em italiano, o primeiro a chamar à Idade Média a “Idade das Trevas” (erradamente, mas adiante), o primeiro poeta desde a antiguidade clássica a ser coroado “laurea poetas” (daí a coroa de louros que usa na generalidade dos seus retratos) e o primeiro… Alpinista, tendo escalado ao topo do Monte Ventoux (1 909 m), nos Alpes. Também é unanimemente considerado o primeiro humanista e um dos pioneiros do Renascimento italiano, que conheceu o seu apogeu um século mais tarde.

Apesar de um percurso existencial dedicado ao serviço da erudição literária e da Igreja romana, Petrarca, como todo o poeta que se preze, encontrou espaço e tempo para o seu amor de perdição: Laura, a musa que ele canta em “Rerum vulgarium fragmenta”, uma colecção de sonetos escritos em italiano, mais conhecidos pelo nome de Il Canzoniere.

Reza a lenda que, na sexta-feira Santa de 1327, Petrarca tem uma visão de uma mulher chamada Laura na Igreja de Santa Clara de Avinhão, que lhe despertou uma abstracta e duradoura paixão. Porém, a musa é capaz de ter sido uma mulher bem concreta: Laura de Noves, esposa de Hugues de Sade (da família que havia de gerar o célebre Marquês de Sade), que, não correspondendo aos desejos de Petrarca, manteve o caso a um nível platónico e contribuiu assim para uma quantidade de lindíssimos e sofridos sonetos, como este incendiário lamento, que David Mourão Ferreira em boa hora traduziu.

 

Onde colheu Amor o ouro, e de que veio,
para tecer tais tranças assim louras?
E de que espinho as rosas? E as ondas
de que praia as tirou pra suas veias?

Onde pérolas tais em que vicejam
doces palavras, puras, peregrinas?
Onde tanta beleza, e tão divina,
Dessa fronte que ao céu provoca inveja?

De que arcanjos provém, e de que esfera,
seu celeste cantar que me consome
o que, não consumido, já é pouco?

E de que sol nasceu a luz eterna
dos olhos seus, que paz e guerra movem,
calcinando-me o peito em gelo e fogo?

 

Deschamps: da balada de mal dizer à velhice maldita.

Eustache Deschamps (1346 – 1406) foi o inventor da balada, tendo escrito 1175 delas. Quase todas são de carácter satírico e muitas dedicam-se a insultar os ingleses, que o poeta francês considerava saqueadores de seu país, e a maldizer os ricos, opressores dos pobres. Algumas das sua sátiras foram dirigidas a funcionários públicos e clérigos corruptos, facto que lhe  custou a sua posição como governador de Senlis, um departamento administrativo do Norte de França.

Destituído de poder e prestígio, Deschamps cai na depressão e os seus últimos anos são os de um homem rabugento, amargurado e revoltado e daí, esta balada fúnebre e visceral, repleta de queixas e comiserações, mas ainda assim pungente e, como todas as composições de Deschamps, que eram escritas para serem cantadas, de métrica irrepreensível e extremamente melódica, mesmo quando a lemos em silêncio e em Português, porque David Mourão Ferreira faz aqui um trabalho de tradução absolutamente exemplar.

 

BALADA DOS SINAIS DA MORTE

Torno-me curvo, corcovado;
sinto-me surdo; o mais declina…
Já dentro em pouco estarei calvo;
e o pingo cai-me das narinas.
Meu Coração? Uma ruína…
Tudo começa a vacilar
Não sei falar sem me irritar;
e é o desdém o que me morde…
Mal me atrevo até a andar…
São já sinais da minha morte.

Ávido, azedo, amargurado,
é só desgraças que adivinha
meu coração… E mais me agrada
o que lá vai do que a doutrina
que o tempo de hoje nos ensina.
Custa-me ver, rir ou brincar;
prazer só tenho em resmungar,
pois o passado me remorde…
Gosto de os jovens censurar…
São já sinais da minha morte.

Meus dentes caem de tão fracos,
e cheiram mal como as sentinas.
Tudo em meu corpo está gelado,
e seco, e magro… A medicina
mais me sustém do que a cozinha.
Tão pouco já posso tragar
que só jejuns me hão-de alegrar!
E a cada passo o corpo dorme…
E é só beber, ou só cheirar…
São já sinais da minha morte.

Que mais, senhor, acrescentar?
Eis-me no fim e a confirmar
desta velhice a triste sorte,
até quem mais me deve amar
só me quer ver noutro lugar…
são já sinais da minha morte.

 

Runius ou a exaustão dos versos.


Johan Runius (1679 – 1713) foi um notável poeta sueco a quem os seus contemporâneos chamavam a “fénix da poesia” e “a joia entre os bardos da Suécia”.

Desde muito cedo dado à expressão lírica, escreveu o seu discurso de graduação na forma de um poema que era um elogio de Gotemburgo, que é curiosamente uma das primeiras descrições da cidade que chegaram aos tempos modernos. Poeta proficiente em diversidade formal e extremamente produtivo, compunha versos a propósito de todos os temas e das mais diversas solicitações. Sem preocupações de coligir a sua obra lírica ou publicá-la sob um eixo editorial coerente, Runius escrevia poemas soltos e canções avulsas com a descontração de um amador, mas com o virtuosismo de um profissional.

A sua obra foi publicada, em 3 volumes, apenas após a sua morte, mas, apesar disso, a sua reputação enquanto máquina de rimas precedia-o em vida. Ao que parece, pelo curioso poema que Mourão Ferreira verteu para português, essa fama de versejador imparável tinha os seus inconvenientes, exaurindo o poeta e aniquilando as suas fontes de inspiração. Enfermo ou exausto, em jejum ou a fazer a digestão, de noite ou de dia, sem compensação material pelo seu esforço nem reconhecimento da crítica, Runius queixa-se de ser, contra a sua vontade e sem a contribuição das musas, constantemente assediado e impelido à composição lírica.

Às vezes, o talento é um incómodo grande. Mas sendo o poeta fiel à sua veia, e na ausência de outras forças inspiradoras, até com o incómodo se faz o poema.

 

RONDA DAS RIMAS EM JEJUM

O quê? Doente e a rir, inda vertendo versos?
Dia a dia a escrever para enterros e festas,
dando cabo do casco  a rimar e a tossir?
E a cabeça e o peito a estalarem sem fim!
Me nutrir e morrer: minha pena, meu poema.
Dançar por vezes, sim; mas cansa, se for sempre.
Com os versos é o mesmo: atinge-se a exaustão.
Ah! não é bom, não é, gastar a inspiração,
nem a seiva esgotar ou esbanjá-la sem siso.
(…)
Adeus, versos, adeus! Saúde é que é preciso.
Mas quem faz o que quer, quando se tem amigos?
Ei-los pois de repente a romper aqui dentro
e a dizerem-me em coro: “Então? Perdeste o senso?
A teus amigos vais acaso recusar
o talento que tens de escrever e rimar?
Agarra no papel e na pena e na tinta:
‘spreme e escreve depressa o que tenhas na pinha!
Engole o insulto, vá, do modo como um cão
ingurgita o rancor que tem no coração!
Às más-línguas não dês sequer os teus ouvidos:
um dia vão acabar todos esses latido…”
Ah! ele é isso? Então, pois toca a trabalhar!
Ou julgavas talvez poder abandonar
a tarefa pesada e as censuras injustas,
tendo migalhas só para comer à justa?
Aplica-te, rapaz! E não digas que não.
Ei-lo aqui rimado o trabalho em questão.

 

William Blake e as simetrias de Deus.


Uma das mais eminentes figuras do romântico, poeta, tipógrafo, ilustrador e autodidata, William Blake (1757 – 1827) é uma figura sem paralelo na cultura britânica e ocidental.

Místico e libertário, Blake tinha uma visão ecuménica da religião e labiríntica da existência. As suas ilustrações, fantasistas e psicadélicas, estabelecem pontos de convergência com os poemas enigmáticos e de profundidade filosófica abismal que escrevia. Desde muito jovem acusava a ocorrência de visões. A primeira delas, quando tinha nove anos, consistiu numa cena em que anjos penduravam lantejoulas nos galhos de uma árvore. Mais tarde, num dia em que observava o trabalho de agricultores, Blake viu figuras angelicais caminhando entre eles.

Feliz no  casamento com Catherine Boucher, que o acompanhou até à morte e o assistiu nas suas várias profissões e afazeres artísticos, William Blake não teve reconhecimento do público e da crítica enquanto viveu, morrendo sem dívidas, mas na pobreza. Isto apesar de ter ilustrado e impresso dezenas de obras. Para além das suas próprias criações literárias, o artista editou o Livro de Job, a Divina Comédia e grandes autores britânicos de sua época. O carácter fantasista da sua arte estava porém para além do entendimento e do gosto da época em que viveu.

Testemunhando as desigualdades criadas pela Revolução Industrial, muitos de seus trabalhos foram marcados por convicções políticas e sociais, principalmente nos poemas de “Songs of Innocence and of Experience”, onde acusou a igreja, a aristocracia e a alta burguesia de exploração das massas. Em 1790, publicou o seu mais conhecido trabalho em prosa, “The Marriage of Heaven and Hell”, escrito com o tom de uma profecia bíblica, em que formula uma posição religiosa e política que era revolucionária na época: “a negação da realidade da matéria, da punição eterna e da autoridade.”

David Mourão Ferreira traduz, aquele que é, talvez, o mais célebre poema do autor londrino, síntese literária do seu multidimensional e fragmentado génio e espécie de perseguição lírica sobre a identidade do Criador.

 

O TIGRE

Tigre, tigre, claro incêndio,
Nas selvas da noite ardendo,
Que mão, que olhar traçaria
Tão tremenda simetria?

De que abismos, de que céus
Ferem fogo os olhos teus?
Sobre que asas ousa erguer-se?
Em que brasas reacender-se?

Qual o ombro de onde vibra
No teu peito cada fibra?
E quando a bater começa,
que mão, que pé que o impeça?

Que martelo, que corrente,
Fez teu cérebro incandescente?
Que bigorna, ou rude garra,
Teu mortal terror agarra?

Quando dos astros os dardos
Humedecem o céu pardo,
Será que ao ver-te sorri
Quem fez o cordeiro e a ti?

Tigre, tigre, claro incêndio,
Nas selvas da noite ardendo,
Que mão, que olhar traçaria
Tão tremenda simetria?