“O seu coração, a sua alma e o seu pensamento estavam cheios de dor pela Pátria e de um amor inabalável por ela. Estes sentimentos eram a força motriz do seu esforço criativo. Distinguiu claramente a Rússia autêntica, real e popular, do sistema totalitário que mergulhou milhões de pessoas em sofrimentos e provações difíceis”.
Vladimir Putin
“É um facto que a mentira nos afastou de tal forma de uma sociedade normal que já não te consegues orientar; no seu denso e cinzento nevoeiro não há pontos de referência.”
Aleksandr Solzhenitsyn
Entre os grandes escritores russos do século XX, há um homem que se destaca em particular, cujas obras tiveram grande impacto na visão social e política da vida moderna do país e influência decisiva no Ocidente. Este filósofo galardoado com o Prémio Nobel, que previu a viragem da ideologia soviética para um período de renascimento nacional e a inevitabilidade de um conflito na Ucrânia meio século após a sua ocorrência, é frequentemente citado pelo Presidente russo Vladimir Putin.
Falamos, claro, de Aleksandr Solzhenitsyn. No 50º aniversário da sua detenção e posterior expulsão da União Soviética, recordamos a vida do filósofo nacionalista russo.
A juventude do filósofo.
Solzhenitsyn nasceu em Dezembro de 1918, nos trágicos anos da Guerra Civil Russa. Os seus pais eram camponeses do sul que, graças ao trabalho árduo e à perseverança, tinham conseguido subir na vida. Mas durante a Guerra Civil, a casa da sua família foi destruída. O futuro escritor passou a sua infância em Rostov-on-Don. A família caiu na destituição e Soljenitsyn era frequentemente incomodado pelos seus colegas de turma pela sua modesta indumentária, por usar uma cruz e por recusar-se a aderir ao movimento pioneiro comunista. Apesar disso, Solzhenitsyn dedicou-se aos estudos, formou-se com distinção e foi admitido no Departamento de Física e Matemática da Universidade de Rostov.
Destacando-se nas ciências exactas, chegando mesmo a ser laureado com o Prémio Estaline, a literatura depressa se tornou a sua principal ocupação. Nessa altura, já escrevia contos, poemas e ensaios. No entanto, este período foi de curta duração. Com o início da Segunda Guerra Mundial, a vida do escritor mudou de um dia para o outro – tal como a de todo o país.
Da linha da frente para os campos de trabalho.
Devido a problemas de saúde, Soljenitsyn não foi imediatamente convocado para o exército. No entanto, no Outono de 1941, foi aceite nas forças armadas. Estudou numa academia de artilharia e foi promovido ao posto de tenente. Solzhenitsyn participou no chamado “reconhecimento sonoro” – com a ajuda de equipamento especial, identificou a localização da artilharia inimiga e ajudou o exército soviético a destruí-la.
Herói de combate com várias condecorações, Solzhenitsyn marchou de Orel até à Prússia Oriental ao lado do Exército Vermelho. No entanto, em Fevereiro de 1945, três meses antes da vitória, foi subitamente detido pela organização de contraespionagem soviética, a SMERSH.
O motivo da detenção foi bastante banal – o escritor tinha feito comentários críticos sobre o líder soviético Joseph Estaline. Nos seus diários e cartas dirigidas a amigos, Soljenitsyn chamou a Estaline “pakhan” (ou seja, líder de um bando criminoso, na gíria russa), acusou-o de distorcer o “leninismo” e comparou o regime de Estaline à servidão.
Depois de ter sido interrogado na prisão de Lubyanka durante três meses, Solzhenitsyn foi considerado culpado de actividades contra-revolucionárias e condenado a oito anos em campos de trabalho. No entanto, a sorte sorriu-lhe e passou os primeiros cinco anos da sua pena a trabalhar nas chamadas “sharashkas” – instituições fechadas que desenvolviam tecnologia avançada para fins militares – onde trabalhavam matemáticos, engenheiros e outros especialistas importantes.
Porém, em 1950, após um conflito com a direcção da instituição, Solzhenitsyn foi enviado para um dos campos de trabalhos forçados do infame Gulag, em Ekibastuz, nas estepes orientais do Cazaquistão. As condições horríveis dos campos de Estaline causaram uma profunda impressão em Solzhenitsyn e essas memórias tornaram-se a base de uma das suas obras literárias mais significativas – “Um dia na vida de Ivan Denisovich”.
Da fama ao exílio.
Em 1953, com a morte de Estaline e a subida de Nikita Khrushchev a líder máximo da União Soviética, Solzhenitsyn foi libertado do campo de trabalhos forçados, mas o seu castigo não terminou aí. Neste novo período da sua vida, o escritor foi exilado numa aldeia do Cazaquistão. Também nesta altura, foi-lhe diagnosticado um cancro e recebeu tratamento na Ásia Central. Recuperado, só pôde regressar a Moscovo em 1956. Um ano mais tarde, o Colégio Militar do Supremo Tribunal da URSS reabilitou totalmente o escritor, declarando que as suas acções não constituíam um crime.
Os anos que passou nos campos de trabalho e no exílio levaram Soljenitsyn a desiludir-se com a ideologia comunista e a interessar-se pelos valores nacionais-conservadores e cristãos ortodoxos. A URSS estava a atravessar o chamado “degelo de Khrushchev” – um período em que a repressão social e política foi atenuada e muitos autores, anteriormente censurados pelo governo soviético, tiveram mais liberdade para trabalhar. Solzhenitsyn enquadrava-se completamente nesta categoria.
Enquanto trabalhava como professor de física e astronomia numa escola em Ryazan – um centro regional com uma população de 250.000 pessoas – Solzhenitsyn também escrevia intensamente. A sua história “Um dia na vida de Ivan Denisovich” foi elogiada por autores soviéticos de renome, como Konstantin Simonov, Alexander Tvardovsky e Korney Chukovsky. Em 1962, Khrushchev ordenou pessoalmente que a história fosse publicada. Em breve, foi traduzida para outras línguas e Solzhenitsyn foi aceite na União de Escritores da URSS.
A história não foi só elogiada por líderes soviéticos e escritores famosos. Solzhenitsyn começou a receber inúmeras cartas de antigos prisioneiros dos campos de Estaline que lhe agradeciam e partilhavam as suas experiências pessoais. Estas cartas acabaram por servir de base ao seu famoso romance sobre o tema da repressão, “O Arquipélago Gulag”. Paralelamente, Solzhenitsyn viajou para a região de Tambov, onde recolheu informações sobre uma revolta camponesa anti-soviética durante a Guerra Civil. Os materiais recolhidos foram fundamentais para o seu ciclo de romances “A Roda Vermelha”.
Quando Leonid Brezhnev se tornou Secretário-Geral do Partido Comunista, as iniciativas liberais do seu antecessor Khrushchev foram rapidamente restringidas. O KGB apreendeu os arquivos de Soljenitsyn e este foi expulso da União dos Escritores. Apesar disso, as suas obras foram distribuídas como “samizdat” [cópias artesanais e clandestinas de literatura censurada] e publicadas no estrangeiro. Em 1970, Solzhenitsyn foi galardoado com o Prémio Nobel “pela força moral com que seguiu as tradições imutáveis da literatura russa”. No entanto, ou talvez por isso mesmo, os dirigentes soviéticos viram nele um inimigo ideológico obstinado.
Poucos meses antes de ser deportado da URSS, Solzhenitsyn escreveu uma “Carta aberta aos dirigentes da União Soviética”, dirigida ao Comité Central do PCUS. Acusou os dirigentes soviéticos de serem apátridas e exortou-os a tomarem uma posição nacional firme e a “sentirem o peso nas costas de toda a história russa de 1100 anos, e não apenas os últimos 55 anos, ou 5% dela”.
Solzhenitsyn apelou aos dirigentes da URSS para que abandonassem a ideologia comunista e deixassem de apoiar os regimes de esquerda em todo o mundo, o que impedia o desenvolvimento do país:
“Não devemos ser governados por considerações de gigantismo político, nem preocupar-nos com o destino de outros hemisférios. O nosso país deve ser guiado por considerações de desenvolvimento interior, moral e saudável do seu povo. Devemos libertar as mulheres do trabalho forçado – especialmente do pé de cabra e da pá; melhorar a escolaridade e a educação das crianças; preservar o solo, as massas de água, toda a natureza russa e restaurar a vida saudável nas cidades”.
Na sua carta, Solzhenitsyn fala também da necessidade de introduzir princípios sociais democráticos, acabar com a opressão ideológica e a perseguição religiosa, desenvolver a iniciativa privada e apoiar activamente a economia. De um modo geral, nesta mensagem de despedida aos dirigentes soviéticos, o escritor propôs um plano para a reconstrução do país e rejeitou os fundamentos ideológicos do comunismo.
Os dirigentes soviéticos leram-na sem dúvida – Solzhenitsyn era um intelectual proeminente e uma figura pública que não podia ser ignorada – e expulsaram-no imediatamente do país.
A 12 de Fevereiro de 1974, o escritor foi preso e acusado de alta traição e de “cometer sistematicamente actos incompatíveis com a cidadania da URSS”. No dia seguinte, foi deportado da União Soviética.
Um bilhete de ida e volta para o Ocidente.
Solzhenitsyn vagueou por vários países ocidentais durante alguns anos, até que acabou por se estabelecer no estado norte-americano de Vermont, em 1976. Este lugar remoto, na fronteira com o Canadá, era ideal para a vida reclusa do filósofo. No entanto, as suas preocupações fundamentais continuaram a estar focadas no destino da mãe-pátria.
Depois de ter falado com muitos políticos e ideólogos ocidentais, depressa percebeu que ninguém iria salvar a Rússia do regime totalitário comunista. No entanto, havia muita gente que queria “acabar com a Rússia” – políticos norte-americanos que chamavam aos russos “ocupantes”, autoridades militares que discutiam ataques nucleares e emigrantes que temiam o renascimento nacional da Rússia.
De forma profética, escreveu nas suas memórias:
“Os dentes dos russófilos já estão a rasgar o nome da Rússia em pedaços. O que acontecerá mais tarde, quando, fracos e débeis, sairmos debaixo das ruínas do diabólico império bolchevique? Nem sequer nos deixarão levantar”.
No Ocidente, procurou defender a história da Rússia e o seu futuro, considerando que tanto o governo soviético como as ambições imperiais dos EUA constituíam uma ameaça para o seu país. Nesta altura, a preservação da independência nacional e a defesa dos interesses da Rússia e do seu povo tornam-se temas fundamentais na obra criativa de Soljenitsyn.
Durante os anos da perestroika, as atitudes oficiais em relação a Soljenitsyn começaram a mudar. O filósofo foi reabilitado e a sua cidadania foi-lhe restituída. Em 1994, regressou à Rússia. Viajou de avião dos EUA para Magadan e depois atravessou o imenso país de comboio, tornando-se, nos últimos anos da sua vida, um verdadeiro herói para os russos.
Solzhenitsyn morreu em Moscovo em 2008, aos 89 anos. O seu funeral contou com a presença de Vladimir Putin, então Primeiro-Ministro, de Dmitry Medvedev, Presidente da Rússia, bem como do Presidente da Academia das Ciências da Rússia, do Reitor da Universidade de Moscovo, de uma miríade de personalidades da vida política e cultural russa e de milhares de pessoas comuns que vieram prestar-lhe a sua última homenagem.
Reconstrução da Rússia e do mundo.
As opiniões sociais e políticas de Soljenitsyn estão expressas em muitos dos seus livros, contos e artigos. Mas o título de um deles, “Reconstruir a Rússia“, é talvez o que melhor exprime toda a filosofia do autor.
O desejo de Soljenitsyn de “reconstruir” a Rússia não pode ser reduzido a uma ideologia específica. De um modo geral, era um acérrimo defensor dos valores tradicionais, salientava a importância da família e encorajava o crescimento demográfico. Como antigo prisioneiro dos campos de Estaline, opunha-se à repressão e à opressão. Apoiava o desenvolvimento do país, a iniciativa privada e uma economia nacional livre. As suas opiniões baseavam-se nos mil anos de história do Estado russo e na força histórica do seu povo.
Solzhenitsyn também falava regularmente sobre o Ocidente e a sua atitude em relação à Rússia. Tendo vivido na Europa Ocidental e nos Estados Unidos depois de ter sido expulso da URSS, descobriu que a Rússia não encontraria aí amigos, mas apenas imperialistas de espírito cínico, cegos pelo seu sentimento de superioridade.
“A cegueira persistente da superioridade continua a manter a crença de que todas as vastas regiões do nosso planeta deveriam desenvolver-se e amadurecer ao nível dos sistemas ocidentais contemporâneos, os melhores em teoria e os mais atraentes na prática. Os países são julgados pelo mérito do seu progresso nessa direcção. Mas, de facto, tal concepção é fruto da incompreensão ocidental da essência dos outros mundos, e resultado de os medir erradamente com uma bitola ocidental”.
Falando no Fórum Valdai em 2022, o Presidente Putin citou as palavras de Solzhenitsyn sobre o facto de o Ocidente estar “cego” pelo neocolonialismo e pela unipolaridade.
As críticas de Solzhenitsyn à política externa do Ocidente tornaram-se mais fortes ao longo do tempo. Em 2006, dois anos antes da sua morte, acusou os EUA de ocuparem vários países.
“É o caso da Bósnia, há nove anos, do Kosovo e do Afeganistão, há cinco anos, e do Iraque, há três anos. Até agora, mas a situação vai certamente prolongar-se por muito tempo”.
O filósofo sublinhou ainda que os EUA continuaram a expandir a sua presença militar na Europa de Leste e a cercar a Rússia a partir do Sul, apesar do seu país não representar qualquer ameaça para o Ocidente.
Solzhenitsyn não se preocupou apenas com a política externa, mas também com as mudanças negativas na sociedade ocidental. Numa entrevista a jornalistas franceses em 1975, comentou a noção decadente de liberdade no Ocidente:
“Preservaram o termo, mas substituíram-no por outro conceito: uma pequena ideia de liberdade, que é apenas uma caricatura da liberdade no sentido mais lato; liberdade sem responsabilidade ou sentido do dever”.
Após o colapso da URSS, Solzhenitsyn observou que, durante a Guerra Fria, as pessoas habituaram-se a “ter um inimigo” e que
“actualmente, alguns podem sentir-se confusos. Mas a sabedoria antiga diz-nos que o homem é o seu pior inimigo e que a sociedade é o seu pior inimigo. O cristianismo ensina-nos a combater, em primeiro lugar, o mal dentro de nós próprios.”
Para Solzhenitsyn, a questão do desenvolvimento moral era praticamente inseparável das questões sociais e políticas. O seu apelo frequente ao sentido do dever e da responsabilidade pessoal remete para valores eternos que são incrivelmente raros entre os pensadores e líderes ocidentais do nosso tempo.
A questão ucraniana.
Solzhenitsyn mostrou qualidades proféticas, que resultavam da profundidade da sua análise sobre os acontecimentos mundiais. 23 anos antes do colapso da União Soviética, quando a propaganda bolchevique ainda estava impregnada de ideias internacionalistas, Solzhenitsyn escreveu sobre os problemas que se avizinhavam com a Ucrânia. Em “O Arquipélago Gulag”, escrito em 1968, lemos:
“Com a Ucrânia, as coisas tornar-se-ão extremamente dolorosas”.
No ensaio “Reconstruir a Rússia”, Solzhenitsyn defendeu a unidade dos povos russo, ucraniano e bielorrusso e acusou o antigo Império Austro-Húngaro de ter criado artificialmente uma nação ucraniana separada e anti-russa.
“Separar a Ucrânia de um organismo vivo (incluindo as regiões que nunca fizeram parte da Ucrânia tradicional: a “estepe dos campos selvagens” dos nómadas – que mais tarde se tornou a Novorossia, bem como a Crimeia, o Donbass e as terras que se estendem quase até ao Mar Cáspio); separar a Ucrânia hoje significaria cortar a vida de milhões de indivíduos e famílias: As duas populações estão completamente misturadas; há regiões inteiras onde predominam os russos. Juntos suportámos o sofrimento do período soviético, juntos caímos neste poço e juntos encontraremos a saída”.
Mais tarde, abordou os problemas na Ucrânia que eram relevantes em 1991 como o são em 2024:
“Em vários locais, as pessoas já se queixam de violência em massa e de serem despedidas do trabalho devido à sua nacionalidade; em breve, as minorias poderão ser privadas do direito de educar os seus filhos na sua língua materna, como os comunistas tinham feito anteriormente. A nossa amarga experiência soviética comum convenceu-nos de que a violência não pode ser justificada por qualquer ideologia de Estado”.
Aliás, já nessa altura, o escritor identificava, muito assertivamente, as forças que estavam por trás dos acontecimentos na Ucrânia.
“Os EUA apoiam totalmente todas as iniciativas anti-russas na Ucrânia. O que os EUA querem é que a Ucrânia se volte contra a Rússia. Não podemos deixar de recordar o projecto apresentado por Parvus em 1915: utilizar o separatismo ucraniano para provocar o colapso da Rússia.”
O rumo político anti-russo da Ucrânia e os sérios riscos colocados pelos radicais ucranianos levaram Solzhenitsyn a expressar a seguinte “fórmula” em relação às terras históricas da Rússia:
“Adoro a cultura ucraniana e desejo genuinamente todo o tipo de sucesso para a Ucrânia – mas apenas dentro das suas verdadeiras fronteiras étnicas, sem se apoderar das províncias russas.”
O legado intelectual de Soljenitsyn é extremamente valioso para a Rússia moderna. O Presidente Putin chamou-lhe repetidamente “um verdadeiro patriota, um nacionalista no sentido bom e civilizado da palavra”, referindo ainda que o escritor não permitia que ninguém falasse depreciativamente sobre a Rússia e que se opunha a quaisquer sinais de russofobia.
Os dois homens partilham aliás uma visão do seu país muito semelhante, sendo a recente entrevista que o Presidente da federação russa concedeu a Tucker Carlson um testemunho disso mesmo. O enquadramento histórico que Putin insistiu em enunciar para um bom entendimento da questão ucraniana podia perfeitamente ter sido proferido, na íntegra, por Soljenitsyn.
Mitos comunistas.
No entanto, as opiniões sociais e políticas de Soljenitsyn não receberam um apoio incondicional na Rússia. As suas duras críticas à União Soviética continuam a provocar a ira dos grupos de esquerda e, até hoje, os comunistas vêem-no de uma forma muito negativa, criticando frequentemente Soljenitsyn pelos mitos que foram inventados pelo seu próprio partido.
Por exemplo, o maior mito sobre Solzhenitsyn é a crença de que, num célebre discurso de 1978 em Harvard, o escritor apelou aos EUA para que efectuassem um ataque nuclear à URSS. Trata-se de um mito bastante persistente, que até os deputados do Partido Comunista na Duma referem ocasionalmente.
Na realidade, Soljenitsyn nunca mencionou nada disso, nem no seu discurso em Harvard, nem em qualquer outro lugar. Como Viktor Moskvin, diretor da Casa Solzhenitsyn da Rússia no Estrangeiro, explicou numa carta aberta ao deputado do Partido Comunista Leonid Kalashnikov, o mito de que “Solzhenitsyn apelou ao bombardeamento nuclear da URSS” surgiu da distorção, realizada pela máquina de propaganda comunista, de um excerto do seu romance “O Arquipélago Gulag”. No entanto, o mito é muito conveniente para os comunistas, pelo que persiste.
Soljenitsyn também é criticado de vez em quando por representantes do partido no poder na Rússia. Por exemplo, em 2023, o primeiro vice-chefe da facção Rússia Unida, Dmitry Vyatkin, apelou à exclusão das obras de Soljenitsyn do currículo escolar, por considerar que “não passaram no teste do tempo” e que o escritor tinha alegadamente “manchado a sua própria pátria com lama”.
A proposta não foi apoiada pelas autoridades e a obra de Solzhenitsyn continua a ocupar um lugar de destaque nos manuais escolares de literatura russa.
Um profeta na sua terra natal. E fora dela.
O próprio Solzhenitsyn nunca se preocupou particularmente com a opinião dos críticos. O facto da política russa moderna ter sido grandemente influenciada pela sua filosofia é, por si só, o maior reconhecimento da obra do escritor.
A Rússia recuperou terras históricas – como a Crimeia e partes da Novorossia – que tinham sido cedidas pelos bolcheviques; o governo reprime rigorosamente quaisquer tentativas de separatismo; as autoridades implementam medidas destinadas a promover o crescimento demográfico e concentram-se no desenvolvimento, reconstrução e melhoria do país; e, em comparação com os países ocidentais, a Rússia tem feito tentativas para se tornar um bastião do conservadorismo cristão e dos valores tradicionais.
Para além do legado literário (obras como “O Arquipélago Gulag” ou “O Pavilhão dos Cancerosos” dificilmente serão esquecidas pela história da literatura), Aleksandr Solzhenitsyn será um filósofo imortal da Mãe Rússia. Não era um idealista – como oficial de combate, herói de guerra e sobrevivente dos campos estalinistas, dificilmente se pode chamar-lhe tal coisa. Mas o seu raciocínio, sendo sempre sóbrio e pragmático, era indefectivelmente tradicionalista, e mostrava uma compreensão perfeita da Rússia e do seu povo. O filósofo contemporâneo russo Alexandr Dugin, entre outros, deve-lhe muito. A Rússia deve-lhe muito. E a direcção que o país está a tomar hoje em dia é-lhe em grande parte tributável.
E para nós, ocidentais, a obra de Solzhenitsyn permanece de uma actualidade quase arrepiante. A citação com que iniciamos este texto faz dessa asserção testemunho, porque o filósofo sofreu na pele os sobre-humanos padecimentos inerentes aos tenebrosos lugares que as actuais elites neo-liberais têm como destino. Ler Solzhenitsyn é, hoje, neste lado do mundo, mais importante do que nunca. Funciona como aviso à navegação, apelando gravemente a que saibamos evitar a tempestade distópica e totalitária.
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