Numa entrevista que durou para cima de duas horas, Vladimir Putin pareceu preocupado em explicar ao Ocidente as razões históricas, geoestratégicas, ideológicas e políticas pelas quais se viu compelido a desencadear a operação militar na Ucrânia.
Atribuindo a responsabilidade pela invasão do país vizinho ao comportamento do Ocidente, e a forças internas na Ucrânia que se situam ideologicamente na tradição nazi alemã, o Presidente Russo escalpelizou todas as nuances do conflito, as suas origens remotas e recentes, bem como a actualidade política e económica mundial, procurando sempre parecer um líder sensato, moderado, disponível para a negociação da paz, mas intransigente no que se refere aos interesses da nação a que preside.
Eis a entrevista no seu formato integral:
Tucker inicia a conversa com a pergunta óbvia: Por que é que a Rússia invadiu a Ucrânia e por que é que Putin vê a NATO e os Estados Unidos como uma ameaça existencial. Mas o residente do Kremlin não estava interessado numa entrevista de formato convencional, com perguntas e respostas directas e breves, e começa por dissertar sobre contextos históricos, recuando ao remoto ano de 862, quando o povo Rus convidou o Príncipe Rurik, para todos os efeitos, um viking, a reinar sob o principado de Kiev, momento que os russos consideram como a génese da sua nação e do correspondente estado centralizado.
Na altura, o povo Rus tinha como capital Kiev, e habitava vastas áreas que se estendiam entre as actuais repúblicas do Báltico e o Mar Negro. Em 988, o bisneto de Rurik adoptou a religião ortodoxa e reforçou os poderes do estado. Poucas décadas depois, porém, o estado foi fragmentado por questões dinásticas e foi por isso que a Ucrânia começou a gravitar para os centros de poder a Ocidente, como a Polónia e a Lituânia. No século XIII, a Polónia “inventou” uma nação separada da Rússia – a Ucrânia – apesar dos seus habitantes serem de etnia russa, falarem russo e serem ortodoxos. Putin explica que o próprio termo “Ucrânia” tem origem etimológica na designação em língua russa de uma área fronteiriça ou marginal (aquilo que em português chamamos “raia”). É nesta altura que a sede do estado russo transita para norte, para Moscovo, porque estes territórios resistiram à desagregação e à influência das potências ocidentais.
Putin salta depois para o século XVII, quando o povo ucraniano pede para ser governado por Moscovo (o Presidente apresenta a Carlson um maço de documentos dessa solicitação comprovativos). Em resposta, o reino de Moscovo anexou parte desses territórios ucranianos, envolvendo-se a esse propósito numa guerra com a Polónia. Com a ascensão ao poder de Catarina, a Grande, e a rectificação de um tratado de paz com os polacos, todos esses territórios foram ocupados pela Rússia.
Na Primeira Guerra Mundial, o império austro-húngaro recuperou o conceito de que a Ucrânia era uma nação independente da Rússia, porque essa ideia lha dava evidentes vantagens geo-estratégicas e militares. Mas com a revolução bolchevique, a Rússia tomou de novo a totalidade da Ucrânia, entrando em conflito outra vez com a Polónia e de novo assinando um tratado de paz que dava aos polacos os territórios a oeste do Dniepre e aos russos os território a este desse rio, que corre no sentido norte-sul, ao longo da Rússia e da Bielorrússia e na direcção da Ucrânia, para desaguar no Mar Negro.
Saltando para a Segunda Guerra Mundial Putin acusa os polacos de terem entregue a Checoslováquia e o corredor de Danzig aos nazis e de se terem recusado a permitir que as tropas russas atravessassem o seu território para proteger a Checoslováquia da agressão alemã, que permitiu às forças de Hitler o rápido acesso à Ucrânia. Depois da vitória dos aliados, todo o território ucraniano foi de novo devolvido à Rússia enquanto a Polónia recebeu como compensação territórios alemães a sudoeste e a norte, recuperando o acesso ao báltico pela anexação da cidade de Danzig, que conhecemos hoje por Gdansk.
Ironicamente, foi o regime soviético que concedeu à Ucrânia o seu estatuto de autonomia, considerando o território uma das repúblicas socialistas soviéticas, e anexando-lhe, por razões que Putin considera inexplicáveis, certos territórios do Mar Negro que nunca lhe foram relacionados, já que tinham sido conquistados pela imperatriz Catarina ao Império Otomano. Essa Ucrânia fabricada pelos sovietes integrava também partes orientais da Hungria e da Roménia. A Ucrânia é assim, nesta interpretação histórica de Putin, um estado artificial criado sucessivamente por polacos, austro-húngaros e nazis com o objectivo de enfraquecer a Rússia, e por Estaline, por razões que o actual líder russo confessa transcendentes.
Num muito breve monólogo de introdução à entrevista, Tucker confessa que a princípio lhe pareceu que a longa introdução histórica de Putin seria uma táctica de diversão, mas que compreendeu depois que o entrevistado estava a ser apenas sincero na importância que dá ao contexto histórico. Quando lhe pareceu que essa longa dissertação tinha chegado ao fim, o jornalista norte-americano insistiu na primeira pergunta, para a qual ainda não tinha obtido resposta. Mas Putin insistiu, mais uma vez, em completar a análise histórica.
Quando da queda da União Soviética e do muro de Berlim, desencadeada pelas próprias lideranças em Moscovo, o Kremlin acreditou que a Ucrânia continuaria a fazer parte da Rússia ou permaneceria na sua esfera de influência, dados os laços de sangue, culturais, religiosos, linguísticos e económicos existentes entre os países. A Rússia acreditou também que o Ocidente não tiraria partido da transição ideológica que ocorria em Moscovo, até porque estava a ser dirigida no sentido de valores próximos da democracia liberal e da economia de mercado defendidos pela Comunidade Europeia e pela NATO; que colaboraria na protecção da integridade do território russo e que a NATO não progrediria para oriente, porque caso contrário seria outra guerra fria, com a única diferença de que a aliança atlântica estaria muito mais perto das fronteiras russas.
Na opinião de Vladimir Putin, essas expectativas foram traídas, já que em vez de ser aceite de boa fé na comunidade “civilizada” ocidental, a Rússia continuou a ser vista como um adversário, porque os interesses da NATO eram os de ocupar mais territórios a leste. A promessa de que a aliança atlântica não se expandiria para oriente foi quebrada por cinco ondas de avanços sucessivos.
A primeira onda surgiu com a guerra nos Balcãs e a intervenção dos EUA que, em violação da lei internacional e da carta da ONU, despejaram tapetes de bombas na Sérvia, nação martirizada historicamente, com quem a Rússia mantém estreitas relações e partilha a fé ortodoxa. Por essa altura, os EUA começaram a alterar o seu discurso, afirmando que a ordem internacional tinha que ser actualizada e sofrer alterações em função das novas lógicas do poder global saídas do desmembramento do bloco soviético.
Nesta altura da entrevista, Putin revela que perguntou a Bill Clinton, numa visita do então presidente dos EUA a Moscovo, se a Rússia seria aceite como membro da NATO. Clinton disse primeiro que tal hipótese seria até possível, mas depois de conferenciar com o seu staff, lhe terá dito que essa possibilidade estava fora de causa.
A segunda onda de avanço do bloco ocidental deu-se através do apoio financeiro e militar que os EUA alegadamente concederam a “forças terroristas” no Caúcaso. A posição russa continuava a ser cautelosa, tolerante e diplomática, apesar daquilo que Putin considera como sistemáticos abusos de poder e violações à lei internacional dos americanos em áreas geográficas que estão na esfera de influência russa, acusando a CIA de trabalhar para uma mudança de regime em Moscovo ao apoiar os terroristas do Caúcaso, referindo-se provavelmente à guerra com a Geórgia em 2008.
A terceira onda consistiu na criação e implementação do sistema de defesa anti-míssil norte-americano, que Putin desejava que fosse criado em comum com a Europa e a Rússia, já que a ser levantado unilateralmente ameaçaria a segurança russa, apesar de oficialmente ter sido criado pelos americanos como uma defesa em relação ao Irão. A rejeição dos apelos reiterados de Moscovo levou a uma nova corrida às armas, já que os russos se viram na contingência de instalar também um sistema anti-míssil altamente avançado e efectivo.
A quarta onda de avanço ocidental foi o da expansão continuada da NATO para os países da Europa oriental, e que culminou na quinta e derradeira vaga, plasmada nos acontecimentos que nos últimos 15 anos decorreram na Ucrânia.
A promessa reiterada dos poderes ocidentais a Moscovo de que a Ucrânia não faria parte da NATO foi sendo sucessivamente ignorada. À medida que essa e outras promessas não eram cumpridas, a Rússia foi exigindo novas garantias, só para que voltassem a ser esquecidas por americanos e europeus. A declaração de independência ucraniana, por exemplo, declara que o país terá sempre uma posição de neutralidade, mas, quando essa neutralidade triunfava eleitoralmente, a CIA procurava invariavelmente perturbar o status quo. E quando o eleitorado do leste da Ucrânia, pró-russo, fez vingar nas urnas a sua vontade, as potências ocidentais desencadearam um golpe de estado no país.
Paralelamente, o projecto de adesão da Ucrânia à União Europeia implicava na prática que, através de acordos comerciais que a Rússia tinha com o país vizinho, Moscovo abrisse também as sua fronteiras à livre circulação de produtos e serviços do bloco europeu, facto que, naturalmente, contrariava os interesses russos. As fronteiras entre a Rússia e a Ucrânia teriam assim que ser fechadas. Mas porque o volume de negócios com a Rússia era enorme e a sua economia dependia disso, até os líderes pró-europeus da Ucrânia hesitaram no projecto de adesão à organização sediada em Bruxelas. Essa hesitação foi também uma das variáveis que levou ao golpe de estado patrocinado pela CIA e à subida ao poder de Zelensky.
Putin afirma que a CIA e os protagonistas ocidentais deste acto de interferência na soberania da Ucrânia não perceberam, ou escolheram ignorar, as consequências catastróficas dos seus actos.
O caminho aberto para a entrada da NATO e os ataques militares às populações civis russas no leste da Ucrânia levaram a situação a um extremo insustentável. O Presidente Russo considera que, neste contexto, a não intervenção seria uma acto de negligência e que os russos foram conduzidos a uma situação sem alternativas para além da guerra. Putin garante neste passo da conversa que, se não fosse o ataque à população russa de Donbass e a eventualidade da entrada da Ucrânia para a NATO, com a projectada instalação de bases militares no país, nunca teria optado pela invasão, até porque sempre acreditou que as fronteiras da Rússia deviam ser delineadas sem integrar as ex-repúblicas soviéticas. Mas o somar de décadas a tentar impedir a ofensiva ocidental e os acontecimentos no país vizinho tornaram a acção bélica incontornável. Putin acrescentou que a sua operação militar na Ucrânia foi na verdade pensada para acabar com a guerra contra a população russa e que ainda não atingiu os objectivos inicialmente delineados porque um deles é a desnazificação de certos territórios.
O presidente russo acha que a Ucrânia, na procura de valores identitários, não conseguiu melhor que eleger como heróis nacionais homens que colaboraram activamente com os nazis no extermínio de judeus, polacos e russos, e que a permanência destes valores no regime de Kiev é, do ponto de vista do Kremlin, inaceitável.
Aqui, Carlson quer saber como é que Putin pensa resolver esta questão, na medida em os objectivos militares dos russos não são aparentemente os de conquistar Kiev, mas apenas a região lete do território, e que as convicções nazis são imateriais. Putin responde que essa ambição pode ser cumprida através de um processo negocial que leve as autoridades ucranianas a proibirem constitucionalmente a actividade política de ideologia nacional-socialista.
Quando perguntado sobre as declarações dos líderes políticos e militares europeus em relação à inevitabilidade de uma guerra com a Rússia, provocada pela alegada intenção do Kremlin de invadir territórios da Europa Oriental, Putin é peremptório: os russos não têm em absoluto tal intenção, não estão interessados em provocar uma guerra global de incidência nuclear que levaria ao extermínio da espécie humana. Tais declarações, segundo Vladimir, resultam exclusivamente de agendas políticas que procuram assustar os cidadãos europeus de forma a que paguem os impostos necessários ao continuado financiamento do regime de Zelesnky.
Tucker Carlson menciona a chantagem a que os americanos estão a ser submetidos, no sentido de financiarem os esforços de guerra ucranianos ou prepararem-se para que os seus filhos morram na frente de batalha de uma guerra com a Rússia. Putin descreve a situação como uma provocação barata e pergunta se os Estados Unidos não têm mais com que se preocupar, dados os problemas na sua fronteira com o México e o volume monumental da sua dívida soberana.
Daqui para a frente, a entrevista aborda outros assuntos, como a gestão suicidária do dólar por parte da Reserva Federal americana e dos poderes instituídos em Washington, que transformaram a moeda de referência mundial num instrumento de guerra, de tal forma que as nações a nível global estão a reduzir as suas reservas em dólares, o que terá consequências necessariamente nefastas para os Estados Unidos e os seus cidadãos.
O inquilino do Kremlin pensa que a polarização evidente entre o Ocidente e potências como a Rússia, a China e a Índia não é desejável e que haverá que procurar um entendimento global, no respeito pelas idiossincrasias e interesses das nações.
Putin mostra-se também preocupado com a evolução desregrada das tecnologias de inteligência artificial e da engenharia genética, que constituem uma ameaça existencial para a humanidade e que, como foi feito em relação às armas nucleares, necessitam de um quadro regulamentar de convergência internacional.
Afirmando que há uma diferença fundamental entre a mentalidade russa e a ocidental, que passa por uma valorização de valores morais eternos, ligados à religião e à nacionalidade por parte dos russos, que contrasta com uma visão mais pragmática dos ocidentais, Putin explica que esta cisão filosófica conduz a um nacionalismo mais fervoroso dos primeiros, mas também às conquistas de âmbito científico e tecnológico dos últimos.
A extensa conversa não trouxe na verdade nada de novo para quem segue as declarações do presidente russo e está familiarizado com as suas ideias. Mas como isso não acontece com a esmagadora maioria dos cidadãos ocidentais, Tucker Carklson prestou-lhes um serviço monumental, contribuindo para reduzir a dissonância cognitiva que é alimentada pela imprensa mainstream e pelos poderes instituídos em relação à posição de Moscovo e ao pensamento do líder russo.
TUCKER may literally bring peace to the world with this interview.
Lies create war and slavery.
The truth shall set you free.
— Benny Johnson (@bennyjohnson) February 9, 2024
E aqui entre nós: que outro político actual decidiria dissertar meia hora sobre contextos históricos numa entrevista de largo espectro mediático?
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