Uma nova sondagem revela que os americanos de ambos os lados do espectro ideológico são a favor do abandono da democracia e da violência contra os seus opositores, à medida que a confiança no governo atinge novos mínimos. Mas será que existe uma alternativa viável a uma nova guerra civil?
A 17 de Setembro de 1787, quando os Pais Fundadores abandonavam a Convenção Constitucional em Filadélfia, depois de terem acabado de lançar as bases da nova nação, alguém perguntou a Benjamin Franklin:
“Doutor, o que é que temos? Uma república ou uma monarquia?”
Franklin respondeu:
“Uma república, se a conseguirem manter”.
Este aviso açucarado nunca pareceu tão relevante como hoje, quando os republicanos e os democratas estão a começar a mostrar um sério desprezo não só pelos seus rivais políticos, mas pela própria democracia.
De acordo com uma sondagem divulgada em Outubro e realizada pelo Centro de Política da Universidade da Virgínia entre 25 de Agosto a 11 de Setembro, junto de 2.008 eleitores registados (margem de erro de 2,2 pontos percentuais), 31% dos apoiantes de Donald Trump e 24% dos apoiantes do Presidente Joe Biden acreditam que a democracia “já não é viável” e que a América “deve explorar formas alternativas de governo para garantir a estabilidade e o progresso”.
O facto de tantos americanos verem a democracia como um empreendimento falhado é um sinal preocupante, especialmente tendo em conta que essa forma de governo já constituiu uma boa parte do sentimento de orgulho e da identidade nacional do povo americano, logo a seguir ao basebol, aos cachorros quentes, à tarte de maçã e ao Chevrolet (embora os Estados Unidos sejam mais rigorosamente definidos como uma república constitucional do que propriamente como uma democracia, mas não digam a ninguém). Quando as pessoas perdem a fé nas suas mitologias nacionais, o niilismo e o desespero rapidamente preenchem o vazio.
Seria interessante, e definitivamente divertido, ouvir que tipo de governo escolheriam aqueles entre os insatisfeitos com o modelo constitucional que têm (e não que lhes faltem motivos para essa insatisfação, bem entendido). Afinal, as opções são bastante limitadas e não muito atractivas. Platão, em “A República”, descreveu os cinco principais tipos de governo: aristocracia (governo de uma elite minoritária); timocracia (governo militar, como nos tempos de Esparta); oligarquia (governo dos ricos); democracia (governo do povo); e tirania (governo de um déspota). A julgar pelos resultados da pergunta do inquérito, parece que muitos americanos estão dispostos a sucumbir ao braço forte da tirania para resolver os seus inúmeros problemas.
Antes de continuar, uma breve palavra sobre estatísticas, uma vez que este artigo está carregado delas. Até porque vale a pena questionar as perguntas do Center for Politics mais do que os resultados da sondagem em si. As sondagens têm uma forma poderosa, mas subtil, de moldar a nossa compreensão das realidades actuais, não só pelos resultados que fornecem, mas pelas próprias perguntas que colocam. Por exemplo, imagine que é mandado parar na rua por um especialista em sondagens armado com um bloco de notas e que lhe pergunta:
“Gostaria que o governo assumisse um papel mais importante na luta contra os fascólumos?”
É natural que assuma que os fascómulos se tornaram um problema, possivelmente no seu próprio bairro, mesmo que o animal desta espécie mais próximo viva no outro lado do mundo (mais precisamente, na Austrália). No final do dia, toda a vizinhança estará a falar freneticamente sobre a “ameaça dos fascólumos“. Será possível que os responsáveis pelas sondagens façam certas perguntas para “preparar” o subconsciente dos eleitores para iniciativas políticas difíceis no futuro (como o controlo de armas, por exemplo, ou a distribuição da riqueza)? Em todo o caso, uma vez que algumas das perguntas encontradas nesta sondagem bastante limitada nunca foram feitas antes ao povo americano, é difícil determinar até que ponto as respostas são indicativas de um problema genuíno.
Isto embora os desenvolvimentos políticos dos últimos anos tenham de facto polarizado a opinião pública americana e a tensão entre liberais e conservadores seja cada vez mais óbvia.
Os republicanos e os democratas têm desfrutado de um duopólio no poder desde que o presidente Whig Millard Fillmore deixou o cargo em 1853. A partir dessa altura, os dois partidos têm tido, sem dúvida, a sua quota-parte de mau sangue entre si. No entanto, a principal diferença entre os velhos tempos e os actuais é não só o número de novas questões, mas também a radicalização dessas questões. Há apenas algumas décadas, as principais divergências que dividiam os dois partidos eram o direito ao aborto, os direitos civis, os impostos, a guerra e uma pitada de feminismo. Hoje em dia, os democratas, outrora o partido do trabalho e da justiça social, apoiam questões ditas “progressistas” que são historicamente inéditas, como a abertura das fronteiras, a teoria crítica da raça, a ideologia de género e a promoção de estilos de vida sexual alternativos encontrados no movimento LGBTQ+ e nos seus 57 géneros (segundo a última contagem). Para complicar ainda mais as coisas, um dos lados deste confronto político detém a maior parte dos meios de comunicação social, enquanto o outro lado detém a maior parte das armas. Mais a mais, o território da federação é claramente divisível entre estados encarnados (republicanos) e estados azuis (democratas).
A julgar pelas respostas (e pelas perguntas) da sondagem, há muitas questões que poderão tornar-se explosivas, um dia. Por exemplo, quando se lhes apresentou a afirmação “o governo deve ter autoridade para restringir o número e os tipos de armas de fogo disponíveis ao público, independentemente das interpretações da Constituição”, 74% os democratas responderam favoravelmente, contra 35% dos republicanos. E respondendo a esta pergunta, “A política governamental deve exigir que as empresas tenham diversidade em todos os níveis de liderança?”, os Democratas assumiram que sim, e os republicanos… Mais ou menos (69%-43%). Sobre a questão da imigração, em vez de ter sido perguntado simplesmente se “o governo deve construir um muro na fronteira sul”, foi antes inquirido: “Deve ser promulgada legislação que restrinja o acesso dos imigrantes ilegais a empregos e a benefícios sociais como cuidados de saúde, assistência social e educação?”. Apesar do palavreado enganador, 70% dos republicanos e 32% dos democratas responderam favoravelmente. Estranhamente, a sondagem não mencionou nada sobre a sexualização das crianças nas escolas, com drag queens em horas do conto e mudanças de sexo em adolescentes, que é uma das questões mais controversas para os americanos, nos dias que correm.
Quando questionados sobre se é aceitável recorrer à violência para impedir os adversários políticos de atingirem os seus objectivos, 41% dos apoiantes de Biden e 38% dos apoiantes de Trump responderam afirmativamente. Além disso, 41% dos apoiantes de Trump e 30% dos apoiantes de Biden disseram ser a favor da separação dos estados, conservadores para um lado, e liberais para o outro. Violência e secessão. Onde é que já ouvimos isto antes? Qualquer pessoa com uma noção básica da história americana sabe que o último esforço de secessão culminou na Guerra Civil (1861-1865), quando os Estados Confederados tentaram divorciar-se de Washington. O resultado foi o conflito mais sangrento da história dos Estados Unidos, que causou a morte de cerca de 850.000 combatentes dos exércitos da União e da Confederação. Desde então, o mais próximo que os Estados Unidos tiveram de um “movimento secessionista” foi a fuga de californianos e nova-iorquinos dos seus estados, dominados pelo crime e com impostos elevados, para perímetros conservadores, nomeadamente a Florida e o Texas.
Então, o que é que tudo isto significa? Muitas pessoas vão olhar para estes resultados e concluir rapidamente que a América está a caminhar para a mãe de todos os divórcios, outra guerra civil. Mas muita coisa mudou desde 1861. Por um lado, o americano médio tem mais a perder, e por outro lado, tem mais canais por onde desabafar as suas frustrações. Afinal de contas, é muito mais fácil e seguro gritar com os nossos adversários políticos no X do que pegar em armas, mesmo que acreditemos que a violência política é aceitável. Além disso, podem sempre mudar-se para um Estado que partilhe as suas cores políticas ou mesmo para a “aldeia americana” para famílias de imigrantes conservadores que, aparentemente, está prestes a ser construída nos arredores de Moscovo, na Rússia.
Mas com as novas gerações, posteriores aos baby boomers e à geração X, a ficarem mais pobres e mais desesperadas e a afastarem-se no tempo da experiência em primeira mão dos horrores de um conflito armado, e com o clima político a aquecer progressivamente sem qualquer sinal de descompressão, nada está fora causa, nesta altura.
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