De Tony Blair a Sir Keir Starmer, o partido trabalhista inglês parece empenhado em ajoelhar-se com desculpas retroactivas suplicadas aos povos de Gaia pelos horrores coloniais e os hábitos esclavagistas do Império Britânico. Esta vergonha da história, que é, no fundo, uma ignorância da história (dos seus enquadramentos económicos e sociais, das suas texturas políticas e demográficas, dos seus contornos militares e étnicos) está muito em voga na Europa e é de uma cobardia franciscana que orrita solenemente!
Irrita solenemente porque os ingleses até foram dos primeiros povos no mundo a renegar a escravatura, embora, há que dizê-lo, não por razões humanistas, como por vezes é erradamente sugerido, mas por motivos de guerra económica com estados coloniais rivais.
Irrita solenemente porque pedir desculpa por ter havido um império inglês (é disso que se trata) é simultaneamente vazio de sentido redentor e perigoso para a saúde da civilização. Até ao século XX (e se pensarmos na Bélgica colonial de Leopoldo podemos até incluir esse século) é praticamente impensável construir um império sem escravos. Aliás, é praticamente impensável construir uma economia sem escravos. O esclavagismo foi, durante 95% do percurso político e económico da humanidade, um factor operacional penta-essencial, estratégico e – acima de tudo – simbólico. O escravo é, em grande parte dos casos, o resultado de uma batalha vencida, de um território conquistado, de uma nação dominada.
Adoptando a cartilha de vistas curtas deste bem pensar britânico, os estados contemporâneos de uma gorda fatia das nações do planeta tinham que se desunhar em apologias redondas para atingirem este zen moral de trazer por casa: Putin ver-se-ia na obrigação categórica de pedir desculpa pelos gulags de Estaline, pelos maus fígados de Catarina e por Ivan o Terrível ter simplesmente existido; Olaf Scholz teria que se consumir em preces pelos sucessivos pecadilhos que os alemães foram sucessivamente cometendo desde que um tal de Bismark se lembrou de unificar esta irrequieta nação de gente belicosa, tanto como industriosa; os egípcios deveriam já retractar-se perante os próprios egípcios, os judeus, os núbios e todos os desgraçados povos vergados à lei da espada que acartaram com o jugo granítico das pirâmides, das maravilhas de Tebas e dos mistérios do Vale dos Reis, que obviamente não teriam sido possíveis se fosse necessário pagar salários aos trabalhadores e negociar com os sindicatos. Outrossim deviam os Gregos prostrar-se em súplicas, gente esperta que fundou uma forma de vida baseada primeiramente na guerra de conquista e pilhagem – a primeira arte helénica – e cujo conteúdo ontológico deixaria simplesmente de fazer sentido se os exércitos vencidos não fossem depois servir a civilização helénica a custo zero, já que, como é sabido, ao guerreiro/poeta/filósofo não competia a limpeza das latrinas de Atenas, dos balneários de Troia ou das casernas de Esparta. Neste muito especial e divertido caso, assistir-se-ia a um formal pedido de desculpas à humanidade por ter sido possível a Anaxágoras, Platão e Aristóteles a fundação do pensamento sistemático.
A propósito, o Presidente da Câmara de Roma também tem muitas explicações a dar a todos os povos do Mediterrâneo e mais além. Sim, sim, ponha-se lá de joelhos V. Exa. por ter levantado a civilização à custa do chicote, da corrente, da galé, do circo máximo, da faxina doméstica e dos trabalhos forçados de variadíssimo género que aqui há dois mil anos o seu povo teve a infâmia de implementar em larga escala. E mais deve ser dito: pela desagradável tradição de acorrentar e sacrificar infelizes de toda a espécie, Aztecas e Maias, Incas e derivados devem ser publicamente condenados pelos chefes de estado do Perú e da Bolívia, do México e da Guatemala, do Panamá e arredores. Toca a pedir penitência e a agradecer a libertação aos espanhóis, sendo que o Senhor Pedro Sánchez não escapa também de uma apresentação pública e universal da má consciência castelhana, apesar do nítido paradoxo.
Já os chineses, bom deus, podiam passar anos e anos a desculpar-se que não se safavam facilmente da condenação de sacristia. Só pela existência daqueles bonecos da Terracota são catorze dúzias de pais nossos e trinta mil avé marias, por gentileza. Quanto aos árabes proponho apenas que comecem por apresentar todas as desculpas que conseguirem encontrar no código de Maomé às suas infelizes mulheres, tarefa que os ocuparia seguramente durante as próximas décadas, para santo alívio dos restantes tripulantes da grande barca do caos. Uma palavra ainda de censura para o comportamento inqualificável de zulus e tuaregues, númidas e sumérios, assírios e cartagineses, fenícios e godos, bretões e normandos, habsburgos e holandeses, franceses e polacos, suecos e austríacos e o raio que os parta que não mostraram nas suas aventuras e desventuras qualquer vestígio de consideração pela versão 2022 mega pack da carta sagrada do direitos humanos.
Seria conveniente além disso que se sujeitassem ao tribunal dos bons costumes diplomáticos os actuais descendentes ou responsáveis contemporâneos pelos actos desviados do Sétimo de Cavalaria e do exército Confederado. Dos califas e dos marajás. Dos corsários e dos vice-reis. Já agora: os macedónios têm que cumprir pena por causa de Alexandre o Grande. Não se pode admitir sem repulsa institucional que um exército conquistador do mundo conhecido em 350 A.C. utilizasse com descaramento bárbaro mão de obra de recrutamento compulsivo, privada de subsídio de férias. Quanto a Adriano: abaixo com ele. O senhor Maquievel? Um cínico. Francis Drake? Um pirata! De Carlos Magno é melhor nem falar e no que a Jefferson diz respeito, sabemos bem que o sacana tinha escravos na cozinha.
É claro que será possível prolongar esta lista de queixumes até ao ponto em que, acreditando em Borges, ela se escreveria sozinha, mas será sensato terminar com uma última nota para o consciencioso e solícito guerreiro da correcção política que responde por António Guterres: faça o favor de convocar com carácter de urgência uma sessão extraordinária da Assembleia das Nações Unidas, de forma a que possa justificar com a sua costumada solenidade a baixa moral dos Descobrimentos!
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