Vivemos tempos em que os sintomas se vestem de brinquedo, e o colapso espiritual da civilização aparece à venda em lojas de artesanato. O fenômeno das chamadas “bebês reborn” é, ao mesmo tempo, grotesco e revelador. À primeira vista, trata-se apenas de bonecas hiper-realistas destinadas a colecionadores ou a mulheres que, por um motivo ou outro, não puderam ou não quiseram ter filhos. Mas isso é apenas a casca do fenômeno. Quando observamos com olhos simbólicos, teológicos e filosóficos, o que se revela é uma profunda recusa da realidade e da maturidade: uma regressão espiritual mascarada de afeto.

O rebornismo não é exclusividade brasileira. Surgiu nos Estados Unidos e Europa como arte e objeto de colecionismo, mas aqui foi elevado ao estatuto de culto popular: mulheres que tratam bonecas como filhos reais, que as levam ao pediatra, fazem enxoval, comemoram aniversário e batizado. O que à primeira vista poderia parecer apenas uma brincadeira inofensiva ou um consolo emocional, revela-se como um sintoma de algo mais profundo: a rejeição simbólica do tempo, da morte, da responsabilidade e do sacrifício.

Estamos diante de um novo tipo de distúrbio psíquico-social, que poderíamos chamar de “maternidade estética”. Trata-se de uma maternidade sem carne, sem sangue, sem leite, sem vigília noturna, sem renúncia. Um simulacro de entrega, onde a mulher desempenha o papel materno sem precisar atravessar os horrores e as belezas da criação de uma vida real. É como desejar o altar, mas sem Deus; a missa, mas sem o sacrifício.

A maternidade, em sua essência simbólica, é um ritual de morte e renascimento. A mulher que se torna mãe precisa morrer em si para renascer no outro. O rebornismo, por sua vez, oferece uma fuga: é a maternidade sem cruz, sem ressurreição. Uma maternidade gnosticamente depurada da realidade corpórea, onde o corpo do filho é um boneco de vinil e a alma da mulher permanece intocada, estagnada, infantilizada.

Não se trata apenas de um desvio patológico individual, mas de um sintoma civilizacional. Numa época que glorifica a juventude eterna, que foge da dor e da morte como se fossem ofensas pessoais, não surpreende que se tente suprimir também o peso existencial da maternidade. O bebê reborn é a criação perfeita da mulher emancipada que se recusa a crescer: quer brincar de boneca, mas com verniz adulto; quer o vínculo, mas não o risco; quer o afeto, mas não o comprometimento.

Essa é, em essência, a versão feminina da síndrome de Peter Pan. Mas com um agravante: enquanto o homem que se recusa a amadurecer costuma fugir do casamento, da paternidade e da responsabilidade, a mulher rebornista tenta simular essas mesmas coisas, como quem encena uma peça para si mesma. Trata-se de uma farsa emocional, uma autoficção afetiva onde o vazio da alma é preenchido com vinil pintado a mão.

A civilização que substitui filhos por bonecos está espiritualmente esgotada. E mais: está às portas da demência simbólica. Porque onde não há mais distinção entre realidade e encenação, entre o sacrifício e a performance, entre o sangue e a tinta, não há mais mundo. Há apenas uma bolha narcísica onde cada um representa a si mesmo, para si mesmo, num teatro sem público e sem Deus.

Voltar a brincar de boneca aos cinquenta não é libertador. É o último sintoma de uma alma que se recusa a atravessar a dor da maturidade. Não por falta de coragem, mas por excesso de vaidade.

E onde não há coragem nem humildade, resta apenas o riso melancólico do palhaço que brinca sozinho num picadeiro vazio.

Que venha o hospício ou que venha o exorcismo. Mas que não digam que isso é normal.

 

Adendo: O Jardim das Ilusões – Pets, Plantas, Namoradas Virtuais e o Êxodo da Convivência Humana 

Se o bebê reborn é o ápice da maternidade simulada, não podemos ignorar os outros ramos dessa árvore podre. O fenômeno das “mães de pet”, “pais de planta” e agora, cada vez mais comum, os jovens que optam por namoradas virtuais criadas por inteligência artificial, compõem o que podemos chamar de o Jardim dos Simulacros: vínculos emocionais de conveniência, desprovidos de transcendência, compromisso ou risco.

O que une todos esses fenômenos é a recusa em enfrentar o outro como mistério, como drama e como desafio. O pet ama sem critério, a planta exige apenas luz e água, a boneca obedece sempre. E a namorada virtual? Essa é perfeita: bela, dócil, elogia sem cessar, nunca reclama, nunca exige, nunca trai. É o amor sem eros, sem carne, sem cruz – um reflexo do ego.

A geração que prefere simular relações ao invés de vivê-las revela não apenas medo do sofrimento, mas repulsa pela realidade. Substitui-se o convívio humano – com suas arestas, frustrações, sacrifícios e recompensas – por vínculos programáveis, higienizados, absolutamente previsíveis. Não há mais espaço para o outro real: aquele que surpreende, que fere, que salva.

Essa fuga é, ao fim, uma fuga da própria condição humana. Porque ser humano é ser ferido e transformado pelo outro. É se dar, se perder e, com sorte, se reencontrar em comunhão. Mas no mundo dos simulacros, só resta o eco do próprio eu.

Estamos diante de um êxodo silencioso da convivência humana. Um abandono gradual, mas constante, do drama do amor verdadeiro. Em nome da segurança afetiva, elimina-se a realidade. E quando não há mais realidade, não há mais amadurecimento. Só há ensaio – eterno, solitário, inútil.

O futuro da humanidade, se seguir essa trilha, não será feito de famílias, mas de solitários acompanhados por bonecos, vasos e hologramas. E se há uma palavra para isso, é desespero.

O amor é risco. O convívio é cruz. A maturidade é perda e renascimento. Quem foge disso, foge da própria alma.

Simular a vida é o mesmo que renunciar a ela.

E ninguém pode renascer sem primeiro morrer.

 

 

 

WALTER BIANCARDINE
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Walter Biancardine foi aluno de Olavo de Carvalho, é analista político, jornalista (Diário Cabofriense, Rede Lagos TV, Rádio Ondas Fm) e blogger; foi funcionário da OEA – Organização dos Estados Americanos.

As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.