“Os negros não foram escravizados por serem negros,
mas porque estavam disponíveis. A escravatura existe
no mundo há milhares de anos. Os brancos escravizaram
outros brancos na Europa, durante séculos, antes de o
primeiro negro ser trazido para o Hemisfério Ocidental.
Os asiáticos escravizaram os europeus. Os asiáticos
escravizaram outros asiáticos. Os africanos escravizaram
outros africanos e, ainda hoje, no Norte de África,
os negros continuam a escravizar os negros.”
Thomas Sowell
A questão da escravatura, para além de complexa, tem sido ultimamente abordada, salvo raras e honrosas excepções, pela óptica politicamente correcta e de uma forma a-histórica ou deliberadamente falaciosa. Antes do mais, entende-se que a escravatura e o tráfico de escravos se processaram apenas num sentido único, ou seja, Leste-Oeste, de África para as Américas. Tudo o mais não interessa, ou é pouco relevante. Por conseguinte, o tráfico de escravos negros para o mundo árabe-muçulmano é ignorado, até porque vai contra a narrativa dominante.
O escritor franco-senegalês Tidiane N’Diaye denunciou esta situação num livro recente1, mas que teve um eco muito débil no mundo anglo-saxónico, pelas razões expostas, principalmente porque contrariava as teses da Teoria Crítica da Raça, do Black Lives Matter e do poder negro. Mais: o autor denunciava a prática corrente, no mundo turco e árabe-muçulmano, de castrar sistematicamente os jovens escravos, para que não perpetuassem a raça e pudessem, por exemplo, ser eunucos nos haréns do Médio Oriente. Pelas razões referenciadas, o livro não foi publicado nos Estados Unidos. Aliás, só ali circula em versão PDF gratuita.
A escravatura foi praticada, desde tempos imemoriais, por quase todos os povos do Planeta2, em geral, como resultado de guerras ou de razias. Para o historiador Nigel Biggar, o sistema
“não só era antigo, como era universal. Em todo o mundo, as sociedades utilizaram o trabalho forçado na agricultura, nas minas, nas obras públicas e até como tropas.”3
A própria palavra escravo deriva de eslavo, utilizada por comerciantes europeus que os vendiam e trocavam como se de mercadoria se tratasse (sobretudo, nos séculos IX e X).
A posse de escravos era – e é – permitida pelo Corão. O próprio Profeta tinha escravos e a Sunnah4 atesta-o.
A escravatura não é uma questão de raça, como toda a gente com algum conhecimento do passado sabe. O mundo antigo praticava-a sem qualquer consideração por linhas raciais ou origens étnicas.
Os árabes e os turcos tinham muitos escravos brancos de todo o Sul da Europa, bem como negros da África subsariana. Dizer que a escravatura está associada ao racismo é, de certo modo, pouco realista, embora – há que reconhecê-lo –, nalguns casos, a asserção seja verdadeira: os africanos, porque se encontravam num estado civilizacional menos evoluído, eram muitas vezes considerados, por árabes, turcos e europeus, inferiores.5
E as tribos africanas que escravizavam os seus conterrâneos de outros clãs, aos milhares? É sabido que os traficantes de escravos europeus não dispunham de mão-de-obra, nem de recursos financeiros e militares, para subjugar os africanos. Não, eles fizeram-no a si próprios, lutando tribo contra tribo. Os prisioneiros, butim de guerra, eram vendidos, pelos vencedores, aos negreiros europeus.
E que dizer da rebelião do quilombo dos Palmares (1597-1694), em Alagoas, Brasil, presumivelmente contra o sistema esclavagista, que resistiu quase um século às tropas portuguesas, mas paradoxalmente mantendo a escravatura no seu próprio “território liberto”? A situação nos demais cimarrones, palenques ou mocambos – as designações variam consoante os territórios sul-americanos em que se encontravam estes acampamentos de escravos foragidos – era, em tudo, semelhante. As revoltas acabaram todas por ser dominadas; todavia, nunca aboliram, no seu seio, o regime de servidão.
Não estou, de forma alguma, a apoiar o abominável tráfico de escravos e a execrável instituição da escravatura, mas tenho de ser objectivo: era perfeitamente legal e tolerada pela população em geral e amplamente aceite no Ocidente, desde o século XV até ao século XVIII. Isso não significa que não houvesse pessoas que a condenassem. De facto, algumas opuseram-se fortemente e há alguns casos exemplares (por exemplo, o padre jesuíta António Vieira, no Brasil, muito embora preconizasse um tratamento dual, admitia a escravatura dos negros, mas opunha-se com firmeza à dos ameríndios, o que reflectia a mentalidade da época).
Vejamos o que, a este respeito, nos diz Tidiane N’Diaye, a propósito dos mundos turco e árabe-muçulmano e como ainda encaram a escravatura nos dias de hoje:
“Enquanto o tráfico transatlântico durou quatro séculos, os árabes arrasaram a África Subsariana durante 13 séculos ininterruptos. A maioria dos milhões de homens por eles deportados desapareceu, devido ao tratamento desumano e à castração generalizada.
O tráfico negreiro árabo‐muçulmano começou quando o emir e general árabe Abdallah ben Said impôs aos sudaneses um bakht (acordo), no ano de 652, que os obrigava a entregar, anualmente, centenas de escravos. A maioria destes homens era retirada das populações do Darfur. E foi este o começo da sangria humana que, aliás, só iria estancar oficialmente no início do século XX.
Aparentemente, esta dolorosa página da História dos povos negros não foi virada de forma definitiva. No rescaldo do Segundo Conflito Mundial e da descoberta dos horrores do Holocausto, a Humanidade foi confrontada com a medida exacta da crueldade do Homem e da fragilidade da sua condição. Sob o choque, a comunidade internacional declarou, numa espécie de célebre e memorável never again, que não permitiria que tais acontecimentos se repetissem. Isto revelar‐se‐á tanto mais absurdo aos historiadores do futuro, quanto, neste início do século XXI, está a decorrer no Sudão uma verdadeira operação de limpeza étnica das populações do Darfur.
Em Abril de 1996, o enviado especial das Nações Unidas ao Sudão já testemunhava um «aumento assustador do esclavagismo, do comércio de escravos e do trabalho forçado no Sudão». Em Junho do mesmo ano, dois jornalistas do “Baltimore Sun”, que também tinham conseguido entrar no país, escreviam, num artigo intitulado «Dois testemunhos da escravidão», que tinham conseguido comprar jovens escravas, para as libertar.
Decididamente, do Darfur do século VII ao Darfur do século XXI, o horror continua, desta vez com a agravante da limpeza étnica.É mais do que tempo de o genocidário tráfico negreiro árabo‐ ‐muçulmano ser examinado e debatido, ao mesmo título que o tráfico transatlântico. Embora não existam graus no horror, nem monopólio da crueldade, podemos afirmar, sem risco de equívoco, que o comércio negreiro árabo‐muçulmano e as jihads (guerras santas) provocadas pelos seus impiedosos predadores para obter prisioneiros foram, para a África Negra, muito mais devastadores do que o tráfico transatlântico. E isto ainda ocorre sob os nossos olhos (atestado por organismos internacionais, por ONGs e pelos media – dados relativos a Junho de 2024), com o seu quinhão de massacres e o seu genocídio a céu aberto.”6
Como está bem documentado, a escravatura foi abolida devido aos esforços do Ocidente e a uma mudança de mentalidade – especialmente no final do século XVIII e início do século XIX, sobretudo em Inglaterra – que terá contribuído decisivamente para pôr termo, primeiro, ao tráfico de escravos e, depois, à escravidão propriamente dita. As revoltas, porque mal estruturadas e com objectivos pouco claros, terão tido pouca relevância no processo abolicionista, salvo uma – a do Haiti, que referiremos mais adiante. Estas sublevações inconsequentes, no fundo, constituem um mito sem qualquer fundamento.
Com efeito, a abolição da escravatura, como o demonstrou exemplarmente quem é considerado o maior especialista português nesta matéria e um dos maiores investigadores mundiais, o historiador João Pedro Simões Marques, não resultou, como querem fazer crer os activistas negros, de revoltas escravas, mas da vontade da sociedade e das autoridades da altura, porque a mentalidade tinha mudado. Existiram várias rebeliões de contornos e dimensões variáveis, mas fracassaram todas, excepto uma. Com efeito, “o estudo das maiores revoltas coloniais de escravos e o da sua relação com o abolicionismo mostram que, com excepção do Haiti, não foram essas revoltas que garantiram a liberdade dos africanos.”7 No caso concreto do Haiti, a chamada revolta de São Domingos (1791-1804), que levou à emancipação dos escravos e à independência da colónia, resultou de factores complexos, mas constitui “de certa forma, um sub-produto da Revolução Francesa e seria inconcebível sem ela.”8
Por outro lado, como referiu Daniel Hanan:
“Foi o capitalismo e não a escravatura que tornaram a Grã-Bretanha rica. É tempo de pararmos de pedir desculpa pelo nosso passado. O Reino Unido desempenhou o seu papel no abominável tráfico negreiro atlântico, mas também assim o fizeram outros reinos. Fomos únicos [nós, os britânicos], isso sim, no nosso papel em lhe pôr termo.”9
Poderíamos apresentar “n” outros exemplos. Em abono da verdade, até à abolição, a escravatura era legal, globalmente aceite e juridicamente enquadrada. Tem de ser analisada, não à luz das lentes do presente, nem ao sabor das ideologias dominantes, mas na observação e estudo rigoroso dos factos, no contexto da época, tal como ocorreram. Não podemos deturpá-los, corrigi-los, nem relativizá-los. Temos de os observar, tendo em atenção o espírito da época e com mentalidade histórica.
No que se refere às reparações históricas, entramos numa floresta de questões que se interconectam. Vamos reparar, monetária ou patrimonialmente, injustiças do passado cometidas por supostos antepassados nossos no tráfico negreiro transatlântico, esquecendo outros casos, mormente, o tráfico da África Negra para o Mediterrâneo e Médio Oriente? Ou a escravatura em massa praticada pelos coreanos? Ou a escravatura exercida pelos próprios afro-americanos livres sobre os seus irmãos de cor nos Estados Unidos (eram, creio eu, cerca de 13.000 no final da Guerra Civil10)? São, apenas, alguns exemplos. Afinal, o homem branco é o único implicado? E devemos expiar as culpas de outros com quem nada temos a ver, porque padecemos de um qualquer pecado original? Leia-se, talvez: a mera circunstância de sermos brancos?
Para João Pedro Marques,
“… o wokismo quer fazer, do tráfico transatlântico de escravos e da escravidão nas Américas, uma espécie de imagem de marca da expansão ultramarina europeia, quer fazer-nos crer que a escravatura, por si só, representa e resume essa expansão, e quer emendar, reparar, as suas consequências, ou seja, quer que paguemos novamente por elas e que aceitemos e adoptemos outra memória desses acontecimentos.”11
Para o bem e para o mal, devemos fazer tábua rasa da História, reescrevendo-a consoante os ventos que sopram, abolindo os símbolos de todas épocas pretéritas (monumentos, estátuas, obras de arte, livros) porque isso não agrada a certas minorias? As nossas referências são as nossas referências, ou teremos de pedir perdão, não se sabe muito bem como nem porquê, aos descendentes das vítimas, por factos históricos cometidos por outrem e que se perdem na memória do tempo? Por outras palavras e em resumo: pedir desculpa por crimes que não cometemos, a pessoas que os não sofreram? A resposta é óbvia.
Sobre a escravatura, outra visão, porém, era – e é – a vigente no mundo islâmico, incompatível com a do nosso mundo. Para os muçulmanos fundamentalistas, a escravatura não é nenhum pecado, está inscrita no Corão e faz parte da jihad, deve, pois, continuar a existir. É o que dizem frontalmente as mais altas autoridades religiosas islâmicas, a quem são receptivos muitos muçulmanos: “A escravatura faz parte da jihad e a jihad é parte integrante do Islão, até ao fim dos tempos. Qualquer pessoa que contradiga isto é ignorante e descrente”, quem o disse foi Sheikh Saleh Al Fawzan, alta autoridade religiosa saudita (salafista).11
Registe-se que Maomé autorizou a escravatura e nunca a aboliu. São múltiplas as referências aos escravos no Corão. Existe, pois, uma inconciliabilidade de fundo entre o radicalismo islâmico (designadamente salafista) e os valores e princípios da Cultura Ocidental.
FRANCISCO HENRIQUES DA SILVA
________________
1 Tidiane N’Diaye, Genocídio Ocultado – Investigação histórica sobre o tráfico negreiro árabe-muçulmano, Gradiva, Lisboa, 2019.
2 Como demonstra, ao longo de toda a sua obra, João Pedro Marques, a escravatura foi praticada em África, entre grupos étnicos diferentes ou, mesmo, dentro do mesmo grupo étnico.
3 Biggar, Nigel, Colonialissm a Moral Reckoning, William Collins, London, 2023, p. 44.
4 As tradições do Profeta.
5 Ibn Khaldun, um erudito, historiador e filósofo muçulmano do século XIV, na sua obra “Muqaddimah” (Introdução), ao analisar as características de diferentes povos, considerou os negros inferiores a outros grupos étnicos.
6 Tidiane N’Diaye, op. cit., pp. 8 e 9.
7 Marques, João Pedro Simões, Revoltas Escravas – Misrtificações e Mal-Entendidos, Guerra e Paz, Lisboa, 2006, p. 67.
8 Ibidem, p, 44.
9 Hanan, Daniel . Capitalism not slavery made Britain rich. It’s time we stopped apologising for our past . “Telegraph” . 08/04/23.
10 Gates Jr., Henry Louis . Did Black People Own Slaves? The Root . 04/03/2013
11 Marques, João Pedro Simões, A Culpa do Homem Branco, Guerra e Paz, Lisboa, 2024, p. 23.
12 Lisan, Benjamin- Les problèmes posés par le sectarisme et le fanatisme, en particulier musulmans . 06/07/2020
________________
Francisco Henriques da Silva é licenciado em História, diplomata e autor. Foi Director-geral de Assuntos Multilaterais no MNE e embaixador na Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Índia, México e Hungria
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
Relacionados
21 Mar 25
Ficheiros JFK revelam alegações de que um agente da CIA, depois suicidado, suspeitava que a agência tinha assassinado o presidente.
Gary Underhill desconfiava que um núcleo de agentes da CIA terá sido reponsável pelo assassinato de Kennedy. 6 meses depois de confessar a sua suspeita foi suicidado. Mas é agora claro que as 80.000 páginas dos ficheiros JFK não conduzem a qualquer conclusão definitiva.
13 Mar 25
Alexandre arenga as tropas:
o discurso de Ópis.
O mais célebre discurso militar da história, registado por um cronista romano cinco séculos depois do facto, é um mestrado em retórica que quase nos permite escutar a voz de Alexandre e da sua indomável vontade de conquista.
8 Mar 25
A Ilíada, Canto XXII: a morte de Heitor e a ira de Aquiles.
No Canto XXII da Ilíada ficamos a saber que, quando a guerra e a ira desequilibram a balança do destino, o mais digno dos homens pode ter o mais desonroso dos fins, e o mais divino dos guerreiros pode persistir na infâmia.
27 Fev 25
Identidade de ‘Jack, o Estripador’ revelada após teste de ADN.
O historiador inglês Russell Edwards encontrou ADN num xaile recuperado do local de um dos assassinatos de Jack o Estripador e testou-o, revelando que o carniceiro que aterrorizou a Londres vitoriana era um imigrante polaco de 23 anos chamado Aaron Kosminski.
8 Fev 25
Os primeiros 100 anos do Cristianismo, do ponto de vista gnóstico.
Uma breve viagem aos primeiros anos do cristianismo, e às influências que sofreu de anteriores culturas mediterrânicas e orientais, a propósito de um vídeo-ensaio do canal Gnostic Informant que vale a pena ter como referência.
4 Fev 25
A Ilíada, Canto XVI (segunda parte): A humanidade de Heitor e a iniquidade de Aquiles
O Canto XVI da Ilíada lança um alerta que ecoa na eternidade: sempre que partes para a guerra, podes ter como inimigo o mais nobre dos homens. Podes ter como aliado um narciso. Prepara-te para sobreviver a esse dilema.