Já aqui no ContraCultura muito se escreveu sobre João Almeida, mas talvez nunca como hoje são boas as razões para a seu propósito escrever.
Para já, há que registar aquilo que é óbvio para qualquer adepto da modalidade ciclista:
– O português é um atleta de classe mundial, capaz de fazer top dez em qualquer prova do circuito profissional de elites. Se excluirmos o futebol, percebemos melhor o facto raro que se enuncia.
– O João Almeida é um tipo bem formado. Podemos dizer o que quisermos sobre o João menos que ele não se sabe comportar como figura mediática. É humilde e genuíno, tanto em cima da bicicleta como perante a imprensa. Não esconde o sofrimento, não se mostra muito zangado por contrariedades (mesmo quando tem razão para isso, mas já lá vamos), e tem um comportamento emocional que é parecido com o registo atlético: ambos funcionam a gasóleo.
– O gasóleo é um excelente combustível. O João é resiliente, faz o que pode com os cavalos que tem, e usa o torque a seu favor. É um motor de pesada cilindrada, que corre de trás para a frente como ninguém no pelotão internacional, na verdade.
Acontece que as suas virtudes se viram frequentemente para o outro lado da moeda: o motor a diesel não é explosivo e a humildade não é a primeira virtude dos campeões, que pedalam para mais que a regularidade do top dez. Além disso, correr de trás para a frente é um exercício de difícil resolução quando à tua frente já vão uns indivíduos que são tão competentes ou mais competentes do que tu.
Sendo um excelente contra-relogista, um competente montanhista e, nos 360º do ciclismo, um atleta de eleição, João Almeida não é, crucialmente, um campeão.
O ciclista da UAE faz muitos top 10, alguns top 3 e zero vitórias nas odisseias que contam para o totobola dos grandes voltistas, já que não parece especialmente vocacionado para as clássicas de um dia, que também fazem muita História.
Acresce que este comportamento performativo do João, que oscila entre a glória e a incapacidade de a deixar escrita na linha da meta, o deixa invariavelmente em lençóis maus no seio das equipas que o contrataram e contratam ou que no futuro pensem contratá-lo. Nas provas em que é o cabeça de fila da UAE, o João não tem geralmente o apoio incondicional da equipa, até porque se trata de uma das mais ricas organizações do ciclismo profissional, cujo plantel é constituído em parte substancial por atletas que, no mínimo, têm capacidades e feitos semelhantes. Para além do alienígena Tadej Pogacar (que corre completamente para outro campeonato): Rafal Majka, Brandon McNulty, Pavel Sivakov, Marc Soler, Jay Vine, Juan Ayuso e, sobretudo, Adam Yates. Estes são todos, também, ciclistas de classe mundial, com potencial para ganhar qualquer prova de máximo prestígio, sendo que alguns deles já o fizeram.
Mas toda a pretensão crítica deste texto cai redonda no áspero asfalto, quando é confrontada com o que o português fez ontem na etapa 4 do Paris-Nice: a 50 metros da linha da meta decidiu bater um certo dinamarquês que até já ganhou a Volta a França por duas vezes e das duas vezes apesar de Pogacar, o que não é dizer pouco.
A forma como o João deixou para trás Jonas Vingegaard, depois de uma etapa muito exigente e perante um pelotão de primeira categoria, terá que ficar na retina e na memória dos seus compatriotas, gostem ou não de ciclismo. Porque tem qualquer coisa de icónico. Porque tem qualquer coisa de português.
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