A política externa da actual administração norte-americana será errática? Imprevisível? Imperialista? Irrealista? Irracional?

Trump foi eleito numa plataforma política sui generis de direita radical no quadro de uma estratégia afirmativa e clara (MAGA). Nada disto seria uma novidade excepto para as cabeças pensantes e presumidas da nossa Europa, convencidas que o “amigo americano” nunca iria relegar o Velho Continente para um plano secundário e, pior do que isso, Biden – e a sua putativa sucessora, que jamais poderia aspirar a coisa alguma – tinha-lhes dado algumas garantias de que seria tudo como “dantes quartel-general em Abrtantes”, mais Alice no País das Maravilhas e outros devaneios avulsos. Só que Biden não está lá e o seu legado é liminarmente enjeitado pelo novo inquilino da Casa Branca. Shocking!

O problema principal de Trump não é apenas o seu estilo bombástico, teatral e truculento, mas a sua política de disparar a artilharia disponível em todos os azimutes, interna e externamente, pressionado que está pelo factor tempo, pela eventual deserção de republicanos de relevo nas duas Câmaras e pelo desencanto de parte do eleitorado. As eleições de meio-percurso (mid-term elections) – Senado, Câmara dos Representantes e Governadores – terão lugar  dentro de 2 anos e o jogo pode voltar à estaca zero.

Por outro lado, temos de considerar dois aspectos essenciais da actuação de Donald Trump:

1. Vejam bem o que eu faço e não o que eu digo (logo se se registam insanidades, se subsistem contradições, se se produz um inesperado efeito de  choque, está tudo nos conformes – “Tout va bien, madame la marquise”

2. A Nova Ordem Mundial (NOM) está a ser implementada pela mão e sob estrito controlo dos Estados Unidos.

Vamos então a alguns dossiês e tentar esboçar uma  conjecturável visão de Trump sobre os mesmos.

 

 

Ucrânia

Depois da invasão (24 de Fevereiro de 2022), ao longo de 3 anos, a Rússia não granjeou qualquer domínio substancial do terreno. O respectivo comportamento militar nos campos de batalha foi claramente medíocre. Nenhum dos objectivos foi alcançado. De salientar que a  Rússia é, sob todos os aspectos (político, económico e social), um país de 3ª ordem, com problemas internos de alguma gravidade (falta de pluralismo político, estagnação económica, corrupção, separatismo, conflitos sociais na Sibéria, tensões étnicas, presença expressiva de minorias mulçulmanas, sobretudo no Cáuscaso, criminalidade, etc.) e que ficou seriamente debilitada com a guerra, no entanto, dispõe do maior arsenal nuclear do planeta (5.580 ogivas nucleares).

Por seu turno, a Ucrânia conseguiu resistir graças às suas forças armadas e ao apoio substancial que recebeu do Ocidente (mais de 300.000 milhões de euros). Todavia, encontra-se numa situação muito difícil pelas perdas de vidas humanas e pela imensa destruição material do país.

Nesta situação de impasse que perdura há 3 anos e que não deixa qualquer margem para dúvidas , tudo recomendaria que as partes se sentassem à mesa e encetassem um diálogo conducente à paz. O realismo devia dominar. Mas tal não sucedeu. Os Ocidentais foram fornecendo todo o tipo de apoio à Ucrânia e urgiram-na sempre a resistir. O antigo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, numa tentativa para atiçar os cães de guerra, instou, inclusive, Zelensky a não dialogar  com os russos, de nenhuma maneira e a prosseguir o esforço de resisiliência, a qualquer preço, dando a entender  que o Ocidente não o abandonaria. Do lado russo, Putin prosseguia com as suas iniciativas belicosas. Apesar do impasse ninguém falava em paz, nem queria ouvir mencionar a palavra.

Permito-me relembrar que o processo de negociações de paz, encetado pouco após a invasão, após várias rondas inconclusivas, na fronteira Ucrano-bielorussa, prosseguiu em Antalya na Turquia em 10-14 de Março de 2022. Aqui, um acordo estava prestes a ser alcançado, designadamente pelo abandono da pretensão de Kiev em querer aderir à NATO, mas foi interrompido pela parte ucraniana, devido ao massacre de Bucha e nunca mais foi retomado.

Mas prestemos atenção aos factos, se uma parte domina a outra, não há nada para debater nem negociar, trata-se apenas de aceitar o facto consumado. Uma coisa, porém,  é certa: se se está perante um impasse é chegado o momento de debater e conseguir-se a paz possível, que nunca será do pleno agrado dos contendores. Porém, nenhuma das partes o quis fazer.

Recordemos o passado, após os incidentes da praça Maidan (2013-14) e o consequente golpe de Estado, orquestrado pela administração americana, que demitiu o então presidente Yanukovitch, Putin pensou que os EUA iriam virar-se contra ele. A partir daí, os europeus começaram a ajudar substancialmente a Ucrânia com armamento.

Eleito em 2010, Yanukovith preconizava a neutralidade da Ucrânia, para manter uma boa relação com a Rússia, estando particularmente atento e sensível às questões de segurança que Moscovo suscitava,  por conseguinte, nada da Ucrânia integrar a NATO, nem a UE.

Tocamos, aqui, nos pontos fulcrais: a adesão da Ucrânia à NATO e a eventual instalação de mísseis nucleares em países vizinhos da Federação Russa mereceriam o rotundo Niet de Moscovo. Trata-se, pois, na óptica de Moscovo, de uma ameaça existencial. Podemos recuar à crise dos mísseis de Cuba em 1962, em que Krutchev recuou perante um John Kennedy que se sentiu, justificadamente, ameaçado. A situação ucraniana encontra um paralelo com o passado.

Sejamos claros: a Rússia não tem ambições territoriais sobre a Ucrânia, à excepção de oblasts maioritariamente russófonos, nem pretende, outrossim, ressuscitar o império czarista ou reconstruir a URSS desmantelada. É absurdo asseverá-lo, aos 4 ventos,  sem qualquer base ou fundamento. Como país de 3ª ordem que é, está perfeitamente ciosa das suas limitações, mas como estado continental, pretende, não obstante, rodear-se de uma cintura de segurança que a conforte. Estas questões deviam ser evidentes para todas as cabeças pensantes que nos dirigem, porém não o foram.

Acrescente-se que a Europa não é um país, é um vasto território que integra vários países com interesses nem sempre coincidentes. Logo, a questão ucraniana, então e agora, é profundamente divisiva a nível europeu (dependência variável do gás russo, cenários de guerra que podem disseminar-se ao longo de vastas regiões de Leste europeu, relações de boa vizinhança com a Federação Russa, trocas comerciais, etc.).

Aqui chegados, a mensagem de Trump é bem clara: a guerra acabou (Terminada! Fini! Finished!), não a quero perder e não dou mais dinheiro para esse peditório! Deixem de hostilizar a Rússia, que é uma atitude pueril e insensata. A Federação Russa não vai invadir a Europa. Haja senso! Tem de se estabelecer um diálogo construtivo com Moscovo, na lógica de que não é com vinagre que se apanham moscas.

A reacção histérica dos europeus (estou a generalizar), mutatis mutandis, corresponde, no fundo, à das baratas tontas que correm sem rumo pela cozinha. O seguidismo em relação aos Estados Unidos com Reagan, Bush pai, Bush filho, Clinton, Obama e Biden, apenas para citar os mais recentes, i.e. dos últimos 40 e pico anos, é notório. A UE nunca conseguiu articular uma estratégia autónoma, uma verdadeira Política Externa e de Segurança Comum. Não. Limitou-se a seguir o diktat de Washington, porque existia o tal guarda-chuva protector. Agora que se está perante o reality shock, cai o Carmo e a Trindade. O que é que vamos fazer? A confusão é total e, de facto, não se recomenda.

Mais. Trump acrescenta  outras mensagens no seu discurso aos europeus: a NATO deu a alma ao Criador, porque nós, americanos, pomos em causa o artº 5 do Tratado (leia-se: vocês não souberam sentar à mesa Putin e Zelensky; não estão dispostos a pagar pelo rearmamento, então, amanhem-se sozinhos); está em curso o estabelecimento de uma Nova Ordem Mundial e, nesse quadro, o vosso papel é meramente marginal.

É claro que Trump quer uma compensação para a paz na Ucrânia, as terras ricas em minerais raros. É uma visão puramente transacional da política externa, mas quem é Trump senão um comerciante?

 

 

A Nova Ordem Mundial

De registar que a estratégia da MAGA consiste, essencialmente, na criação de uma Nova Ordem Mundial, em que os EUA aparecem com um papel preponderante, na perspectiva assumida da unipolaridade, mas que altera o xadrez político e económico mundial.

 

BRICS e desdolarização

Esta é uma das principais preocupações de Washington, no momento actual, porque põe em causa toda a estratégia MAGA. A criação de uma nova moeda susceptível de substituir o dólar mantém as luzes acesas pela madrugada nas margens do rio  Potomac. Todavia,  a criação de uma moeda comum ou um sistema de pagamento alternativo ao SWIFT, dominado pelo Ocidente, ainda enfrenta desafios práticos e políticos, uma vez que o dólar domina 60% das transações comerciais internacionais.

Com efeito, os BRICS têm desenvolvido iniciativas para reduzir a dependência do dólar, mas a desdolarização completa é, por ora, um objectivo distante. Enquanto o dólar permanecer como a principal moeda de reserva global, qualquer mudança significativa exigirá tempo, coordenação e a superação de desafios estruturais. A expansão dos BRICS e o aumento do uso de moedas locais são passos importantes, mas o predomínio do dólar deve persistir no curto e médio prazos.

 

 

China

Beijing regista altos e baixos na sua economia. O expressivo crescimento do PIB a dois dígitos, de anos findos, já foi chão que deu uvas. Um entendimento EUA-Rússia isola a China e esta, no fundo, revela-se mais fraca do que aparenta.

De registar, que a marinha chinesa é um bluff. E, nesse quadro, a invasão de Taiwan não passa de uma miragem, porque seria detectada imediatamente pelos satélites americanos e, acto contínuo, contrariada pelos mísseis estacionados na ilha de Guam.

Sem embargo do que fica dito, a China pretende, paulatinamente,  afirmar-se  na cena mundial. Neste momento, tudo leva a crer, que se está perante uma aproximação pragmática, mas privilegiada, com o Japão, aliás, de interesse mútuo.

A anunciada imposição de tarifas alfandegárias por Trump  à China é contrabalançada por taxas variáveis do lado chinês. Todavia, é preciso tomar em linha de conta que o presidente norte-americano  ao impor tarifas de 25% ao Canadá e ao México, acabou por conceder um tratamento preferencial à China, pois apenas lhe aplicou uma taxa de 10%.

Os Estados Unidos consideram a China como o seu principal rival geopolítico e competidor económico. Estão focados em conter a influência crescente daquele país, em especial na região do Indo-Pacífico. Assim, têm fortalecido alianças e parcerias, com o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália e a Índia, para equilibrar as ambições regionais da China.

 

 Médio Oriente

É de algum modo simbólica a escolha de Riade para o primeiro encontro EUA-Rússia. Não se trata, nem jamais se tratou (quem observou a cena, viu mal) de decidir a sorte da Ucrânia, à revelia desta – a principal interessada – e da Europa. Não, tratou-se de encetar o diálogo global com a Rússia e de restabelecer a confiança mútua. Por conseguinte, a Ucrânia foi um dos itens, mas Gaza e o Médio Oriente foram outro dos vários tópicos que constavam  do menu.

Realço o facto de se ter escolhido Riade para o primeiro encontro bilateral Rússia-Estados Unidos, precisamente porque a mensagem subliminar que se tenta passar acaba por ser transparente: a Arábia Saudita vai integrar a Nova Ordem Mundial, no espírito dos acordos de Abraão. Por outras palavras, Washington privilegia Riade e isola, assim, Teerão.

Resta por explicar o apoio incondicional de Trump a Israel. O lobby judaico controla, de facto, as administrações norte-americanas, quaisquer que sejam, a passada, a presente e a futura?

É forçoso constatar que nem o Hamas, nem Netanahyu são flores que se cheirem. As barbaridades inenarráveis cometidas por uns e por outros deveriam levar-nos a condená-los sem quaisquer hesitações. Todavia, Trump deixou-se enredar pela actuação eficaz do lobby em questão e pelas pancadinhas no ombro do Primeiro-Ministro israelita.

 

 

A Nova Ordem Mundial num futuro quadro geo-político.

Na Nova Ordem Mundial não existe um centro de gravidade, o que conjunturalmente só beneficia os EUA. Trump tem de actuar rapidamente, não só pelas razões de política doméstica já apontadas, mas porque o caos actual dará origem a negociações e a realinhamentos. Todavia, a classe política e os media ainda não perceberam que estamos perante uma nova reconfiguração que vai alterar profundamente  o quadro convencional.

Vamos, presumivelmente, depararmo-nos com uma Rússia enfraquecida, mas amiga, com uma Europa fragmentada, porque a UE não é uma unidade coesa, com uma NATO irrelevante e com uma China isolada de qualquer aliado de peso.

À luz de quanto antecede, a guerra da Ucrânia acabou. A neutralidade parece garantida e mesmo que o não esteja de que vale, em termos efectivos,  a adesão de Kiev à NATO?

 

Trump – Homem de negócios ou negociante de tapetes?

Não vou dissertar sobre questões de mera retórica e de política espectáculo como as declarações sobre o canal do Panamá, a integração do Canadá como 51º estado dos  EUA ou a aquisição da Gronelândia. Todos estes itens são controversos e desestabilizadores, mas provêm de um homem de negócios, na acepção benévola, ou de um negociante de tapetes, na acepção malévola.

O que é preciso notar e ler nas entrelinhas são duas ou três questões:

– Estamos perante uma estratégia, caótica na aparência, mas assertiva e bem delineada, não se abrindo mão de quaisquer cedências;

– Trump não é um boçal, primário e ignaro, pelo contrário, trata-se de um homem inteligente que sabe exactamente  o que quer e para o que vem (bom seria que não o subestimassem);

– Resta saber se conseguirá concretizar, no todo ou em parte, o seu programa político e esta questão não é líquida, longe disso.

 

 

FRANCISCO HENRIQUES DA SILVA

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Francisco Henriques da Silva é licenciado em História, diplomata e autor. Foi Director-geral de Assuntos Multilaterais no MNE e embaixador na Guiné-Bissau, Costa do Marfim, Índia, México e Hungria
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.