No princípio era o verbo. Deus ainda não existia e já o papá me dizia coisas como: es-can-ga-lha-do. Coisas estranhas como: te-le-vi-são. Coisas divertidas como: Có-ce-gas. A mamã gostava menos de palavras. Mas vingava-se com carinhos e por isso, a seguir ao verbo, foi a ternura. E assim, demorou mesmo muito tempo a chegar a vez de Deus. Mas quando chegou, vinha acompanhado por um sujeito extremamente espampanante chamado João Sebastião Qualquer Coisa que soava mesmo bem no diabo do órgão da Igreja de S. Justino (o papá também gostava muito do João Sebastião Qualquer Coisa e também o punha a tocar muitas vezes lá em casa). Deus pareceu-me logo uma criatura de bom gosto e a Igreja de S. Justino era de longe o sítio mais potente do universo, principalmente quando a D. Amélia da Bica se punha a puxar pelas fugas do João Sebastião ou quando o padre Hilário lia aquelas frases sérias e compridas do livrinho preto que guarda a maior parte das palavras que existem.

O papá gostava de dizer algumas palavras que não estão no livrinho preto, e que parece que foram ditas antes por um senhor que era ceguinho e que se viu grego para contar a história de uma guerra, ida e vinda. Portanto: antes de Deus já existiam as palavras. E antes que Deus dissesse certas palavras, houve um senhor invisual que disse mais palavras ainda (acho que se chamava Austero). E só depois deste falatório todo é que o João Sebastião disse montes de coisas que não são ditas com palavras. E só depois disso é que o bispo de Vila Maior mandou construir a igreja de S. Justino. E só depois disso é que o Padre Hilário foi para lá aos domingos ler aquelas passagens sisudas dos dois testamentos – porque um é do pai e outro é do filho. O filho de Deus, que é o Menino Jesus que a mamã tira do armário no Natal para o colocar no sítio onde uma vaca e um burro de loiça estão a descansar, também é um senhor com imensas palavras e há uma que mete medo: cruz. Na cruz não há o papá a dizer: te-le-vi-são. Na cruz não há mimos da mamã nem aparece a D. Amélia da Bica a fazer eco daquelas palavras que não são palavras e que foram escritas há muito tempo (num tempo a que chamam Bacoco, salvo erro) e que são precisas para que as fugas sejam mesmo bestiais.

Parece que a cruz é um sítio muito desagradável e não se percebe como é que alguém quis subir por aquilo a cima. Ainda por cima o filho de Deus, que até podia ter os legos todos que quisesse sem precisar do Pai Natal para nada. A verdade é que existem montanhas de palavras mas não há nenhuma para aquilo que não se percebe. Não há nenhuma palavra para explicar porque raio é que o Menino Jesus quis morrer assim. Bem, o papá às vezes diz uma palavra que talvez explique: es-ca-ga-ni-fó-bé-ti-co. O destino do filho de Deus é escaganifobético. A mamã, que é de poucas palavras, diz que a cruz é uma maneira do menino Jesus falar mais alto que elas, embora eu duvide muito disso, porque no Mercado da Meia Praça as raparigas do peixe estão sempre numa gritaria enorme, como se o peixe estivesse a morrer e precisasse de socorro, e seria completamente impossível ao menino Jesus, muito dorido na sua cruz, conseguir fazer-se ouvir. Por exemplo. Mesmo assim, eu acho que o Menino Jesus era boa pessoa porque só uma pessoa boa é que não estranha que o pai todo poderoso se recuse a uma ajudinha quando se está ali pendurado, em cuecas e numa posição tão incómoda.

Deus podia chegar ao pé do menino seu filho e dizer: es-can-ga-lha-do. Podia dizer: bei-ji-nho. Ou có-ce-gas. Podia pedir à D. Amélia da Bica para tocar qualquer coisa do Sebastião Qualquer Coisa. Mas não. O papá do Menino Jesus não é tão fixolas como o meu papá. Nem pouco mais ou menos. Ou então sou eu que não percebo nada de nada e é a mamã que está certa quando, contrariada por ter que dizer mais palavras do que as que são precisas para que o mundo faça sentido, me ralhou assim: Quando fores grande, vais perceber que há mais coisas no céu e na terra, do que sonha a tua filosofia.