Verão de 68 d.C. e o imperador Nero Cláudio César Augusto Germânico tem trinta anos, reina desde os dezassete e está a momentos da morte. Com ele perecerá a dinastia Júlio-Claudiana, pois já não há membros sobreviventes para ocupar o seu lugar, todos eles assassinados ou pelo imperador ou pelos seus antecessores imediatos. Apesar do medo de uma nova guerra civil, os membros do senado e do aparelho militar chegaram ao fim da sua tolerância com a crueldade, a tirania e a corrupção selváticas de Nero. Finalmente, depois de várias legiões se terem declarado contra o imperador, ele foi formal e legalmente declarado um fora-da-lei e inimigo do povo. A partir daqui, Nero não tem saída e ele sabe disso.
Foge em pânico para uma pequena vila nos arredores de Roma, com um punhado de escravos leais. Enquanto espera pelo pelotão de execução do final inevitável, chora baba e ranho e lamenta o seu destino – numa exibição constrangedora da fragilidade do seu carácter – mas ainda assim não consegue acabar com a vida. “Morto! E tão grande artista”, protesta, enquanto pede a um dos seus escravos que corte primeiro a sua própria garganta para o incentivar a fazer o mesmo. Ao ouvir o som equestre dos legionários montados que se aproximam, horrorizado ao saber que a sua morte será perpetrada pela flagelação pública, Nero mergulha finalmente uma adaga na garganta. Com ele morre uma dinastia e um sistema de governo, desaparece a paz inquebrável emitida por Augusto, e o mundo romano é mais uma vez condenado a encarar o caos da guerra civil e do do despotismo militar.
Tal como a de Tibério, a história de Nero – ou pelo menos do seu reinado inicial – está inseparavelmente misturada com a da sua mãe. No entanto, ao contrário da mãe de Tibério, Lívia, que era uma operadora política ponderada e calculista, a mãe de Nero, Júlia Agripina Menor, mas conhecida como Agripina, a Jovem, era uma tirana cruel e descarada, ambiciosa até à doença e destituída tanto de escrúpulos como de qualquer vestígio de remorsos. E por isso, no topo da gigantesca lista de crimes perpetrados por Nero está a acusação de matricídio. Ele orquestrou de facto o homicídio da sua própria mãe, mas apesar do assassinato de familiares directos estar, e ter estado sempre, entre os crimes mais hediondos que se podem cometer, neste caso particular o tenebroso acto pode muito bem ter sido apenas prudente.
Agripina era impiedosa. Tinha crescido num antro de víboras e de intrigas familiares e de assassinatos políticos, onde ninguém era poupado e a constante ameaça de morte lançava uma sombra sobre todos os comportamentos; onde uma palavra errada, ou mesmo um olhar equívoco, poderia significar a desgraça. Neste ambiente volátil, dramático e sanguinolento, Agripina tornou-se uma mulher formidavelmente violenta e cruel.
Tendo sobrevivido quase por milagre aos reinados de Tibério e Calígula, foi de alguma forma capaz de convencer o seu próprio tio, Cláudio, a casar-se com ela e a adoptar Nero, filho de um casamento anterior. Tratava-se de uma união escandalosa, mesmo nos padrões permissivos da Roma do primeiro século. A perspicácia política e a impiedade de Agripina podem ser deduzidas do facto de, nos curtos anos seguintes, ter elevado Nero para uma posição onde ele era abertamente favorecido, até acima do filho biológico de Cláudio, Britânico; e que, quando essa posição começou a parecer instável, ela tenha envenenado o marido. Diz-se que Nero, iniciando o seu reinado de terror conforme pretendia que ele continuasse, violou repetidamente Britânico antes de o ter envenenado num banquete público.
Teria sido considerado abominável, apenas uma geração antes, que um adolescente de dezassete anos assumisse todas as honras e títulos acumulados por Augusto e seus herdeiros. Tal foi a decadência institucional e consuetudinária da Roma deste período, que o senado obsequioso parece nem sequer ter questionado seriamente esta última transição de poder. Todos os leões entre aqueles que outrora poderiam ter oferecido resistência à elevação de Nero a César estavam agora debaixo de terra. Assim, a única ameaça real e legítima ao seu governo era a própria Agripina.
Nos primeiros anos do reinado de Nero, a sua mãe deteve de facto as rédeas do poder. E a sua proverbial ambição, tanto como o seu selvático niilismo, ardiam com intensidade ilimitada. A influência da mãe do imperador era tal que ela própria foi representada, ao lado do seu filho, no cunho da moeda. O antigo historiador Dio Cassius diz-nos que Agripina começou a “gerir por Nero todos os negócios do império”. De humor difícil, comportamento caprichoso, temperamento explosivo e inclemente e muito dada a maquinações de toda a espécie, Agripina mandou prender ou executar muitas das mais ilustres figuras romanas do seu tempo; na prossecução de um estado policial que era muito do seu agrado. Por isso era temida e detestada por todos.
Em 59 d.C., cerca de cinco anos após o início deste reinado de trevas, tanto o imperador como a sua progenitora tinham construido à sua volta facções distintas e rivais. Em algum momento que não sabemos definir hoje, a relação doentia de Nero com Agripina tornou-se tão azeda que a ideia de homicídio começou a infectar a sua mente. Mas até que ponto era doentia esta relação filial? Basta dizer que Nero mantinha relações sexuais com a mãe, e quando este escândalo específico parecia destinado a prejudicar a sua posição de imperador, recorreu a uma prostituta parecida com ela, com quem manteve relações íntimas, em espaço público. Nada de tenebroso que se possa dizer de Nero alguma vez lhe fará justiça.
Seja como for, o execrável imperador acabou por decidir que Agripina precisava de ser colocada na sua sepultura sem mais demoras. Primeiro, concebeu para o efeito um plano bizarro e inacreditável, ordenando a construção de um barco com defeitos de construção que, no momento certo, iria esmagar a sua mãe e arrastar os seus restos mortais para o fundo do Mediterrâneo. Sem grandes surpresas, as coisas não correram como planeado, a engenhoca naufragou de facto, mas Agripina sobreviveu a nadou até ao cais de onde tinha partido.
Sabendo que a armadilha tinha sido montada pelo seu monstruoso filho, Agripina não teve outra escolha senão aceitar a ficção de que tinha ocorrido algum tipo de acidente genuíno. No entanto, Nero não poderia ser negado e rapidamente se deixou de subterfúgios, ordenando muito simplesmente a uma coorte de legionários que a apunhalasse sem mais demoras.
Uma vez eliminado o único obstáculo ao poder absoluto, restavam poucos ou nenhuns impedimentos à perversão e à delinquência de Nero. Uma dessas forças de moderação tinha sido o seu antigo tutor, e filósofo imortal, Séneca. Um homem que Nero tinha amado para além de todos os outros na sua juventude, e a quem tinha jurado que nunca por sua mão sofreria padecimentos. Não obstante, após um golpe de estado mal sucedido que visava destronar o imperador, e no qual o filósofo tinha sido tangencialmente implicado, o notável autor de Naturales quaestiones foi obrigado a suicidar-se, sem ter sequer direito a julgamento.
A segunda esposa de Nero, Popeia Sabina, enquanto grávida, foi suficientemente tola para interrogar o marido sobre quanto tempo ele permanecera no circo. Por esta insolência, Nero pontapeou-a até à morte.
A crueldade e psicopatia do último dos Júlio-Claudianos evoluía agora a rédea solta. Poucos monarcas ou tiranos ao longo de toda a história da humanidade desfrutaram dos níveis de poder absoluto que Nero agora exercia. Poucos também o usaram assim de forma bárbara e narcisista.
Relata Suetónio:
A partir de então matou a torto e a direito todos quantos quis e sob qualquer pretexto. Para me limitar a alguns exemplos, citarei os seguintes. Considerou crime o facto de Salvidieno Orfito ter alugado aos deputados de algumas cidades três habitações térreas da sua casa, perto do Forum, para lá celebrarem reuniões; o mesmo aconteceu a Cássio Longino jurisconsulto e cego, por ter conservado numa velha árvores geneológica da sua família o retrato de Caio Cássio, assassino de César; e a Peto Traseia, por ter a fronte severa de um pedagogo. Os condenados à morte tinham apenas uma hora de vida antes da execução, e, para impedir qualquer possível atraso, mandava-lhes médicos “para tratar imediatamente os retardatários”, isto é, fazê-los morrer abrindo-lhes as veias. Crê-se, mesmo, que pensou em dar homens para serem devorados vivos a um individuo de raça egípcia que comia carne crua e quanta lhe davam. Jactando-se de tudo ter feito impunemente, dizia “que nenhum príncipe soubera ainda quanto lhe era permitido fazer”.
Após a morte de Popeia Sabina, a degenerescência sexual de Nero teve muito poucos limites. Os raptos e violações completamente aleatórios nas ruas eram uma das suas actividades favoritas. Outra era a do jogo de faz de conta: tendo encontrando um jovem extraordinariamente bonito chamado Sporus, que se dizia ser a cara chapada de Popeia, mandou castrá-lo e depois casou com ele, tratando-o de todas as formas como se fosse uma imperatriz.
Tão escandalosa como o seu cadastro criminal era a propensão de Nero para cantar e actuar em público e para participar em corridas de quadrigas. Todas estas actividades estavam muito abaixo da dignidade de um patrício, quanto mais de um imperador. Nero entregava-se a práticas a que só prostitutas e vagabundos inúteis se rebaixariam. No entanto, insistiu. Insistiu em cantar em público (considerando o seu talento inigualável), em performar como actor, e em competir no Coliseu.
Cerca de quatro anos antes da deposição e suicídio de Nero, o Grande Fogo de Roma dilacerou a cidade eterna, durante o Verão de 64 d.C. As fontes antigas discordam sobre quem foi exactamente responsável pelo incêndio, ou se o cataclismo se deveu a causas acidentais, já que os incêndios em Roma não eram de todo incomuns. Alguns historiadores clássicos insinuam que Nero desejava “limpar” certas partes da cidade para poder estender os seus jardins e propriedades pessoais, outros dizem que foram os cristãos a vingar-se das perseguições sangrentas a que eram sujeitos, outros ainda afirmam que o partido de Nero usou os cristãos como bode expiatório depois do crime cometido por ordens do imperador. Seja como for, muitos cristãos foram imolados como represália. E de qualquer forma, o infame imperador romano não escapou a que a posteridade o indicasse como muito provável suspeito.
Uma das extravagâncias que Nero ergueu na sequência desse apocalíptico incêndio foi uma estátua colossal de bronze, feita à sua própria imagem. Se alguma coisa podia resistir como testemunha dos seus crimes e loucuras, era este colosso. Não resistiu o colosso muito tempo, já que o monumento foi rapidamente destruído por Galba, o César que lhe sucedeu, mas a megalomania, da qual não poderia haver retorno, a total perda de perspectiva e a incapacidade de refrear os seus piores instintos contribuíram em muito para o seu fim. Nero, que talvez nem fosse clinicamente louco, tinha certamente perdido o senso comum. No final, estava divorciado da realidade em quase todas as métricas em que a mesma pode ser mensurada. E a História, que será o tribunal mais assertivo a que a humanidade pode recorrer, utiliza frequentemente o seu legado de horrores para ensinar como o poder absoluto corrompe absolutamente.
Nesse sentido e no caso de Nero, cuja reputação de facínora presidirá sempre à invocação da sua memória, podemos dizer que se fez justiça.
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Mais biografias dos primeiros césares no ContraCultura.
Biografia de Minuto e Meio do historiador Suetónio.
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