“Deixem que me odeiem, enquanto me temerem.”

Caio César Augusto Germânico – ‘Calígula’

 

Estamos em 37 d.C. e numa villa imperial em Miseno, no sudoeste de Itália, jaz o corpo sem vida do velho e doente imperador Tibério. Sobre o cadáver do segundo imperador de Roma está o prefeito da Guarda Pretoriana, Macro, bem como o sobrinho-neto e co-herdeiro aparente de Tibério, Caio Germânico (12 d.C – 41 d.C.), mas conhecido como Calígula. Numa espécie de conspiração deveras complicada embora totalmente improvisada, conseguiram ambos acabar com a vida de Tibério, que já estava a definhar.

Não é conclusivamente claro se foi Macro ou Caio quem administrou o veneno, ou se foi um esfaqueamento totalmente prosaico, ou, como a maioria dos relatos indica, uma morte por asfixia. O impiedoso Macro e o degenerado Caio, independentemente dos pormenores exactos, foram muito provavelmente cúmplices da terminação e encontram-se agora no limiar de um novo mundo, que prometia tempos melhores, um afastamento da malevolência, da perversidade e da cultura delatória do regime do velho Tibério. As esperanças do mundo e da história, porém, não só ficariam desiludidas, como horrorizadas.

O nome de Calígula – uma alcunha de infância – é sinónimo de comportamento cruel e excêntrico. Todo o seu breve reinado de quatro anos pode ser caracterizado como uma ladainha crescente de vício, corrupção, violência e brutalidade absolutas. A história dos crimes e das loucuras de Calígula é tão extrema que muitos historiadores modernos sugerem que os relatos antigos foram exagerados. Mary Beard, historiadora da televisão, globalista, feminista e extraordinária colectora de factos que confirmem apenas as suas convicções, é uma delas. Por alguma razão incompreensível, Beard pensa que sabe mais do que Suetónio, Cássio Dio e Plínio; todas as fontes antigas concordam com a loucura e o deboche de Calígula, mas Beard e os seus colegiais do revisionismo perverso e woke dos tempos que correm pensam que se trata apenas de propaganda pós-júlio-claudiana e de uma difamação politicamente motivada por parte dos historiadores antigos. Um disparate estúpido, claro.

Então e as fontes? Infelizmente, temos muito pouco sobre a vida de Calígula que provenha dos escritos de Tácito. Os seus “Anais”, estão muito longe da completude. Faltam-lhes capítulos inteiros. Se uma cópia original completa de Tácito aparecesse num mosteiro italiano esquecido, todos os entusiastas da antiguidade clássica ficariam absolutamente maravilhados; seria a maior descoberta para a compreensão da Roma antiga. No entanto, tal como está, temos de sofrer com o facto de grandes partes do início do período imperial estarem perdidas para nós. Quase todo o reinado de Calígula está em falta nos “Anais”. Temos uma ou outra linha aqui e ali noutros locais que se referem a Calígula, mas não temos páginas e páginas de descrição e análise de Tácito sobre o terceiro imperador romano. É uma pena.

Mas esta série de textos sobre os primeiros césares não se fundamenta na prosa de Tácito, mas na de Suetónio. E há ainda fragmentos e comentários de grandes vultos como Josefo e Séneca, em que podemos confiar. Seja como for, o retrato de Calígula por Suetónio é uma leitura verdadeiramente imprescindível, simultaneamente fascinante e grotesca, selvagem e bizarra.

 

Calígula em frente da tumba dos seus antepassados . Eustache le Sueur . 1647

 

Antes de mais, uma breve palavra sobre a vida e a infância de Caio. Ganhou o nome de Calígula – que significa literalmente “pequenas sandálias de soldado” – porque, durante toda a sua infância, seguiu muitas vezes o pai, Germânico, em campanha, e vestia-se frequentemente com o traje de um legionário em miniatura. Supõe-se que o exército o adorava. No entanto, a infância do jovem Calígula seria completamente arruinada em pouco tempo. O tio paterno era Tibério, o imprevisível e sinistro imperador. O avô de Calígula, Druso, tinha sido o irmão mais novo de Tibério, o seu confidente mais próximo e a sua única verdadeira força mediadora. Infelizmente, caiu de um cavalo abaixo e morreu dos ferimentos, vinte anos antes de Calígula ter nascido.

Sem uma grande força de contenção para suavizar as suas paixões venais, e certamente após a morte da sua mãe Lívia, Tibério desceu cada vez mais às profundezas da degenerescência e do crime. Tomou a família de Germânico sob a sua protecção, que não era o tipo de protecção que alguém no seu perfeito juízo desejaria. Germânico morreu quando Calígula tinha apenas 7 anos de idade. Uma idade terrível para perder o pai. Não ajudam as suspeitas de que Germânico possa ter sido envenenado por membros da sua própria família, embora não tenhamos a certeza disso. Mais tarde, a mãe de Calígula – Agripina, a Velha – bem como os seus dois irmãos mais velhos – um Nero e outro Druso – foram denunciados por Sejano, lacaio de Tibério, julgados pelo Senado, considerados culpados de traição e exilados em ilhas minúsculas e remotas, onde morreram. Há quem diga que a sua mãe Agripina também ficou cega de um olho devido a uma tareia particularmente cruel de um centurião.

Assim, o pequeno Calígula foi sujeito, ainda infante, ao trauma de ver a maior parte da sua família ser assassinada pelo seu tio-avô Tibério. No entanto, o imperador parecia gostar do rapaz e mantinha-o por perto, frequentemente em Capri, a sua ilha dos prazeres (um eufemismo epsteiniano) Parece que foi aí que Calígula aprendeu e se habituou às artes da crueldade e do sadismo, que depois replicou para com todos os que o rodeavam. O que é surpreendente neste período da vida de Calígula é o facto de, aparentemente, nunca ter falado da sua família e dos destinos fatídicos que a assolaram. Aparentemente, Calígula não só não os mencionava, como, se alguma vez fossem falados, permanecia em silêncio e não revelava qualquer tipo de emoção. Parece que era exactamente isso que Tibério desejava e que a esse desígnio o jovem protegido obedecia pressurosamente. Porque quando Tibério finalmente morreu e Calígula ascendeu à púrpura, entre as primeiras coisas que fez foi visitar pessoalmente as ilhas onde a sua mãe e os seus irmãos tinham sido exilados ou mortos, exumar os seus corpos, trazê-los para Roma, dar-lhes ritos funerários ornamentados e mandar enterrar os seus restos mortais no mausoléu de Augusto.

É evidente que a aparente indiferença de Calígula perante a desgraça e a morte da mãe e dos irmãos não passava de uma máscara usada em benefício de Tibério e que, muito possivelmente, o salvou de um fim muito semelhante. A circunstância expressa um tipo particular de processo patológico em que o horror de ver quase toda a gente que amamos ser morta não pode ter sequer uma resposta natural, já que qualquer expressão de perda ou luto seria fatal: terá a vítima que ser leal para com a assassino. Apesar de qualquer possível desequilíbrio químico no cérebro de Calígula, este trauma, por si só, seria suficiente para danificar gravemente a mente e a visão do mundo de qualquer adolescente.

Como Tibério se fez monstro como resultado das humilhações a que foi submetido por Augusto, Também Calígula se transformou em besta, por enculturação. É uma hipótese.

Seja como for, Calígula tinha claramente uma razão para acabar com o velho, quando chegasse a altura. O facto de o ter sufocado pessoalmente não é um choque, nem é estranho ao seu carácter. Eis a passagem de Suetónio que trata desse episódio.

Atacou Tibério com veneno, como alguns pensam; deu ordens para que lhe tirassem o anel enquanto ainda respirava e, quando este não o largou, mandou-o sufocar com uma almofada. Segundo um relato, estrangulou Tibério com as suas próprias mãos e, quando um liberto gritou em protesto contra este acto perverso, crucificou-o imediatamente. Tudo isto pode ser verdade; alguns escritores relatam que Caio confessou mais tarde a intenção, se não o parricídio efectivo.

O ‘parricídio’ só decorre da forçada afinidade, claro, mas começando desta forma violenta e impiedosa, o reinado de Calígula só podia cair no abismo do mal absoluto. Suetónio diz, por exemplo, que ele queria acabar com todos os últimos vestígios da República e do chamado principado de Augusto, e declarar-se oficialmente rei de Roma. Era o título porém curto:

Depois de os seus cortesãos lhe terem lembrado que ele já era superior a qualquer rei ou governante local, insistiu em ser tratado como um deus – mandando trazer da Grécia as estátuas mais veneradas ou artisticamente famosas dos deuses, incluindo as de Júpiter em Olímpia, e substituindo as suas cabeças pela sua.

Aqui podemos ver que, entre outras camadas de significação patológica, Calígula tinha delírios de grandeza e um ego sem limites. Mesmo naquele contexto histórico, político e social, um imperador declarar-se deus ainda em vida não era uma atitude aceitável, no que diz respeito à ética do Estado. O desgraçado estava nitidamente a convidar as vicissitudes da fortuna e a servir-se de uma grande fatia da apetitosa mas ingrata tarte da arrogância humana, que tem geralmente um preço impagável. E ele pagou-a.

 

A Corte de Calígula . Virgilio Mattoni de la Fuente . 1842

 

Chegamos então à questão de saber se Calígula era clinicamente louco. Embora historiadores e psiquiatras de toda a espécie contemporânea sejam muito cautelosos quanto à tentativa de diagnóstico médico de um paciente que viveu há coisa de dois mil anos, e sejam ainda mais relutantes quando se trata de perturbações da saúde mental, no caso de Caio Germânico César é relativamente fácil chegar a uma conclusão. Calígula era efectivamente um retardado sem nome. Até Suetónio nos diz que é esse o caso, mencionando radicais mudanças de humor, frequentes convulsões e insistindo nos testemunhos de muitos dos que viveram o seu reinado, e que afirmavam que o desgraçado era definitivamente louco. O próprio Calígula pensava que não regulava bem: Suetónio diz-nos que o imperador tinha momentos de maior ou menor lucidez e que nos momentos mais espertos admitia que sabia que estava doente, sem qualquer dúvida, e que a sua doença o assustava. Se há alguém no mundo antigo que podemos descrever, com algum grau de certeza, como clinicamente louco, esse alguém será Calígula.

Não só as fontes antigas tornam a situação bastante clara, como os argumentos em contrário não parecem resistir a um verdadeiro escrutínio. Por exemplo, afirma-se que Suetónio tinha interesse em mentir sobre Calígula e exagerar os seus crimes. No entanto, na altura em que Suetónio estava a escrever, essa motivação não existia. Adriano, o imperador contemporâneo de Suetónio, tinha acabado de o despedir e exilar. E, mesmo que assim não fosse, não seria necessário inventar um vilão como Calígula para fazer a propaganda daquele que foi – há aqui até um raro uníssono historiográfico – um dos mais hábeis, sensatos, inteligentes e moderados imperadores romanos.

 

 

Os pormenores sórdidos da delinquência monstruosa de Calígula estão bem documentados e melhor ainda foram representados por John Hurt em Eu, Cláudio, a série da BBC que adaptou o célebre romance de Robert Graves. Mas um rápido – embora arrepiante – resumo dos exemplos mais flagrantes deve ser enunciado, com base no legado de Suetónio:

Era seu hábito cometer incesto com cada uma das suas três irmãs, à vez, e em grandes banquetes… Dizem que ele violou a sua irmã Drusilla antes de atingir a maioridade: a sua avó Antónia, em cuja casa estavam hospedados, apanhou-os na cama juntos. Mais tarde, tomou Drusila do seu marido, o antigo cônsul Lúcio Cássio Longino, tratando-a sem qualquer pudor como sua mulher.

Parece que não vale a pena registar a forma como Caio tratou parentes e amigos como o seu primo, o rei Ptolomeu, e até Macro… A sua lealdade e proximidade valeu-lhes mortes cruéis… Muitas vezes mandava chamar homens que tinha matado secretamente, como se ainda estivessem vivos, e comentava de improviso, alguns dias depois, que se tinham suicidado.

Tendo recolhido animais selvagens para um dos seus espectáculos, achou a carne de talho demasiado cara e decidiu alimentá-los com criminosos. Não prestou atenção às folhas de acusação, mas simplesmente olhou para os prisioneiros alinhados à sua frente e deu a ordem: “Matem todos os homens entre aquela cabeça careca e aquela outra ali”.

Alguém tinha jurado lutar na arena se ele recuperasse da sua doença; Caio obrigou-o a cumprir esse juramento e observou atentamente o seu manejo da espada, não o deixando ir enquanto não tivesse ganho o combate e implorado abjectamente para ser libertado. Na mesma ocasião, um outro indivíduo tinha-se comprometido a suicidar-se; Caio, descobrindo que ele ainda estava vivo, ordenou que o vestissem com grinaldas e o conduzissem através de Roma por escravos imperiais, que não paravam de insistir no seu juramento e, por fim, o atiraram pela muralha.

Muitos homens de família decente foram marcados por ordem sua e enviados para as minas, ou postos a trabalhar nas estradas, ou atirados às feras. Outros foram confinados em jaulas estreitas, onde tinham de se agachar como animais, ou foram serrados ao meio – e não necessariamente por ofensas graves, mas apenas por criticarem os seus espectáculos ou não jurarem pelo seu génio.

Caio obrigou os pais a assistirem às execuções dos filhos e, quando um pai se escusou por motivos de saúde, providenciou-lhe uma maca. Tendo convidado outro pai para jantar poucas horas depois da execução dos filhos, transbordou de boa camaradagem na tentativa de o fazer rir e gracejar.

Viu o director dos seus espectáculos de gladiadores e de feras selvagens ser açoitado com correntes durante vários dias seguidos e só o mandou matar quando o cheiro dos miolos a supurar se tornou insuportável.

Um cidadão da ordem equestre, prestes a ser atirado às feras, gritou que estava inocente; Caio trouxe-o de volta, retirou-lhe a língua e ordenou que a sentença fosse executada.

Quando assinava a lista de execuções, após o período de dez dias de espera, costumava dizer: “Estou a limpar as minhas contas”.

O método de execução que preferia era infligir numerosas pequenas feridas, evitando os órgãos vitais do prisioneiro, e a sua conhecida ordem “Façam-no sentir que está a morrer!” depressa se tornou proverbial. Uma vez, quando o homem errado tinha sido morto, devido a uma confusão de nomes, anunciou que a vítima tinha igualmente merecido a morte, e citava frequentemente a frase trágica “Deixem que me odeiem, enquanto me temerem”.

Tudo o que Caio dizia e fazia era marcado por igual crueldade, mesmo nas horas de descanso, diversão e banquetes. Frequentemente, mandava realizar julgamentos por tortura na sua presença, enquanto comia ou se divertia, e mantinha um experiente carrasco pronto a decapitar os prisioneiros trazidos da prisão.

Num banquete particularmente extravagante, desatou a rir-se de repente. Os cônsules, que estavam reclinados ao seu lado, perguntaram educadamente se podiam partilhar a piada. “O que é que acham?”, respondeu ele. “Ocorreu-me que basta um aceno de cabeça e as vossas gargantas são cortadas na hora!”

Não tinha o menor respeito pela castidade, nem a sua nem a dos outros… Para além do incesto com as irmãs e de uma paixão notória pela prostituta Pyrallis, Caio fez avanços sobre quase todas as mulheres casadas conhecidas de Roma… e discutia abertamente a sua companheira de cama em pormenor, detendo-se nos seus pontos físicos bons e maus e criticando o seu desempenho sexual.

 

Calígula entregando-se à adoração do povo . Émile Lévy . 1877

 

Estes exemplos não fecham a crueldade extrema de Calígula. Há muitos, muitos mais. Os assassínios e as violações aleatórias eram intermináveis. Os desastres da política externa não paravam de se acumular. Os insultos e as agressões ao corpo político de Roma não cessavam de aumentar em ferocidade. Por fim, tinha feito demasiados inimigos poderosos. Mas quando até aqueles que estavam encarregados de proteger o imperador começaram a temer pelas suas vidas, o fim estava para breve. Eventualmente, até mesmo os líderes da Guarda Pretoriana temiam o cadafalso. E por isso, tomaram o assunto nas suas próprias mãos.

Existem actualmente duas versões diferentes do que se seguiu. Algumas fontes afirmam que Cassius Chaerea, um centurião pretoriano, se aproximou por trás de Caio, enquanto ele discursava perante tribunos, e com um grito de “Toma lá disto!”, lhe fez um ferimento profundo no pescoço, e que Caio Sabino, um outro conspirador, o apunhalou seguidamente no peito. A outra versão faz com que Sabino tenha dito a alguns centuriões implicados na conspiração para afastarem a audiência e, em seguida, pediu ao imperador a palavra de ordem do dia. Diz-se que ele respondeu “Júpiter”, ao que Chaerea, a partir da sua retaguarda, gritou “Assim seja!”, partindo-lhe o maxilar quando ele se virou para trás. Caio ficou estendido no chão, a contorcer-se: “Ainda estou vivo!”, gritou, mas a revolta foi interpretada por mais soldados pretorianos e o César acabou por sucumbir a uma multiplicidade de ferimentos, incluindo golpes de espada nos órgãos genitais.

Seja qual for a versão assertiva, Caio César Augusto Germânico conheceu o fim que merecia: violento e degradante. Porém, tal como no caso do assassinato do seu antepassado Júlio, os seus carrascos não tinham um plano claro para substituir o césar que tinham acabado de exterminar. Não havia um herdeiro ou indivíduo designado para ser o chefe do governo. O cenário era de guerra civil ou mesmo de anarquia. Os conspiradores foram, no entanto, rápidos a certificarem-se de que a família directa de Calígula também era eliminada.

A sua mulher, Cesónia, morreu ao mesmo tempo que ele, apunhalada com uma espada por um centurião, e os miolos da sua filha foram atirados contra uma parede.

O imperador que se seguiu foi o mais improvável dos sucessores. Mas essa história fica para o próximo capítulo.

 

 

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Mais biografias dos primeiros césares no ContraCultura.
Biografia de Minuto e Meio do historiador Suetónio.