O magnífico Rei vivia num Castelo que ficava no cimo da montanha mais alta do mundo.

A torre do Castelo, onde o Rei passava grande parte do seu tempo, chegava a tocar levemente duas nuvens antigas e, da janela, a vista estendia-se como a serpente do Éden, até que os dois olhos que viam se tocassem. O que, como se sabe, e ensina a Arte Real, acontece quase sempre no infinito.

Era lá, nesse infinito, que o magnífico Rei meditava sobre o bom governo do seu povo. Ora olhando as estrelas e cismando nelas, como outrora fizera o sábio de Mileto, ora perscrutando o voo silencioso dos pássaros e de outros répteis do céu, como o persa Farid Attar costumava também fazer. Por via da sua dedicada meditação e da sua oriental temperança, o Rei era conhecido como o mais sábio e mais justo de todos quantos havia na Terra.

Mas da sua corte faziam parte três conselheiros feios e vaidosos, que eram conhecidos pela sua gratuita presunção e jactante sapiência. Eram, de facto, homens de muita erudição, que viviam em salas onde os livros se acumulavam até ao tecto e onde passavam as horas e os dias encerrados a estudar coisas misteriosas que só eles percebiam. Era desse modo que afirmavam ter alcançado a Verdade e o coração do Mistério. E não escondiam a altivez e a soberba quando se apresentavam como “os maiores sábios do mundo”, para quem o universo deixara para sempre de ter segredos.

O magnífico Rei tinha também lido muitos e belos livros, mas não perdia agora o seu tempo enfiado em páginas inundadas de pó e de palavras, e às vezes até de palavras em pó. Era um homem de bom senso e com experiência de vida, que gostava de estar entre as pessoas comuns do seu reino, de comer e de dançar com elas, e aconselhar-se junto dos mais velhos e mais simples. Sabia que a vida é o lugar da experiência e que, como escreveu no mar o grande poeta morto, a experiência é a mãe de todas as coisas.

Certo dia, já um pouco cansado da soberba dos sábios seus conselheiros, que se pavoneavam pelo reino fazendo troça dos rústicos, decidiu pô-los à prova e dar-lhes uma grande lição de humildade.

Espreitava o sol por detrás da grande montanha rosada, às primeiras horas da manhã, e o magnífico Rei mandou que se reunissem em frente ao Castelo os caçadores, os cães reais em matilha e todos os seus criados. Ao seu sinal, o monteiro-mor soprou com muita força uma grande trombeta apocalíptica. O seu som ecoou do Vale à Montanha, até à toca do Urso Branco, que vivia do outro lado da terra, ao pé do gelo e do fogo, onde as Musas e os Argonautas festejam e dançam continuamente, desde o início dos tempos. Os cavalos dos caçadores galoparam sem demora para a floresta, atrás dos cães que latiam de felicidade e fome, e a grande caçada começou em alegria.

Mal o séquito partiu, os três sabichões começaram a exibir a sua vaidosa e livresca instrução farisaica. Um deles, emproado como um galo no capoeiro, cheio de tiques estranhos e afiando os bigodes como fazia o Salvador Dali – que os afiava com esterco de galinha -, explicou à comitiva real que o Faisão era, na verdade, um Phasianus colchicus e que pertencia à família dos Phasianidae, uma linhagem rara e antiga vinda do norte da Tartária, após transmutação alquímica dos primeiros progenitores, e não era um mero passarão rude e colorido como a plebe inculta pensava.

Outro dos sabichões conselheiros do Rei, todo inchado de solenidade falsa enquanto colocava o monóculo – como se estivesse na ópera – e alisava a barbicha com um pente de prata, começou a dissertar sobre as diferentes raças de cães usadas na caça desde o tempo do Homem de Neanderthal, chamando-lhes quadrúpedes digitígrados, descrevendo exaustivamente as diferentes características da pelugem, o número e a forma dos dentes, os hábitos de acasalamento e um rol infinito de outras singularidades caninas que só ele parecia conhecer, ainda que soltasse um grito feminino de pavor sempre que o magnífico Rough Collie da corte lhe passava a cauda nos joelhos.

E o terceiro sabichão, esticando o pescoço até se parecer com uma girafa doente do fígado – aquela que o Vasco Santana auscultou no Jardim Zoológico – e fazendo voz de quem dita a última sentença sobre os grandes enigmas do mundo, assegurou que o javali se distingue pelo cheiro do seu esterco, a gazela pela forma dos arbustos quebrados à sua passagem e o texugo pela geometria helicoidal da toca sinistra, o que toda a gente sabia ser mentira, desde, pelo menos, o dia em que passou a ser conhecida a biografia apócrifa de Pitágoras que Jâmblico escreveu no exílio de Biarritz.

Ao assistir a toda esta prosa inútil, alguns caçadores chegaram a adormecer nos cavalos, enquanto outros caíram ao chão porque os cavalos tinham adormecido. Mas o Rei era um homem de grande paciência e muito tolerante, pelo que os escutou até ao fim sem demonstrar nunca o enfado que estes três monótonos sabichões lhe estavam a causar. E foi precisamente quando eles se calaram que o Rei viu um ancião pescando tranquilamente junto a um riacho. Mandou chamá-lo ao seu encontro e disse-lhe:

– Muita neve há na serra!
– É tempo dela, Majestade! – respondeu-lhe o pescador idoso.

Os três sabichões, ao presenciarem o diálogo entre o Rei e o ancião, ficaram muito confusos e a olhar incrédulos uns para os outros. Estavam em pleno mês de Agosto, ou seja, no pico do Verão, e as alterações climáticas tinham já feito derreter o gelo do Jack Daniel’s do Al Pacino. Olharam muito compenetrados para o alto da serra, pondo o monóculo, coçando a barbicha ou afiando o bigode, e por mais que aguçassem a vista, por mais que radiografassem os cumes e a encosta das alturas, não havia ponta de neve que pudessem avistar.

Então o Rei falou de novo ao ancião:

– Quantas vezes te ardeu a casa, ancião?
– Já por duas vezes, real senhor!
– E quantas contas ser depenado?
– Ui, Majestade! Ainda me faltam três vezes!

Os sabichões não cabiam em si de espanto e já nem sabiam com que mão afiar o bigode, coçar a barbicha ou colocar o óculo. Mas mal refeitos do novo enigma, torna o Rei à carga:

– Pois velho amigo, se por cá aterrarem três patos, depena-os até ao osso, pois a ti e a mim aproveitará!
– O vosso desejo é uma ordem, nobre Rei. Pois que venham eles, que cá estarei para os depenar até que não sobre pena que aproveite ao escriba. Será Pato à Pequim, segundo a receita dos eunucos da Cidade Proibida.
– Assim seja! Até mais ver, meu velho!
– Saúde, Majestade.

O Rei ordenou galope a Bucéfalo, o seu belo cavalo branco, e toda a comitiva seguiu no seu encalço, prosseguindo a caçada até que o sol se escondesse de novo nas costas da serra e fosse hora de regressar ao Castelo. Uma vez aí chegados, foi posta uma bela mesa debaixo do oráculo, um Carvalho com mil anos, e todos se juntaram a comer e a cantar, espalhando risos e alegria pelos vales e montanhas do reino. Mas os sabichões estavam pouco alegres e muito apreensivos. Quase não comeram, a contas com a sua preocupação.

Ora, o Rei sabia o motivo da sua cisma e zombou deles até que ficassem rubros de vergonha e calados como ratos. Mas, finalmente, acabou por lhes dizer:

– Estais calados como ratos, mudos como as pedras, por causa da minha conversa com o ancião que pescava, porque a vossa erudição de aviário não chegou para a compreender. E a mim não convém ter conselheiros tão brutos, pois fica em causa a segurança do reino e a tranquilidade do povo. Tenho a dizer-vos que sereis demitidos dos vossos cargos se amanhã, por esta hora, não me explicardes, ponto por ponto, tudo o que dissemos um ao outro.

Os três sabichões ficaram em pânico e, ao regressarem aos aposentos do Castelo, finórios como eram, decidiram fazer-se à floresta pela calada da noite, à procura do ancião, para que este lhes explicasse tudo o que ele e o Rei tinham dito. Mas o ancião respondeu-lhes:

– Esclareço-vos tudo, tintim por tintim, mas tendes de vos despir e dar-me a vossa roupa e mais todo o dinheiro que trazeis.

Não achando na altura melhor maneira de cumprir o seu plano maquiavélico, os três sabichões acabaram por se despir e entregar-lhe todo o dinheiro que traziam. Então o velho, guardando as moedas no alforge, disse-lhes:

– Meus meninos: “muita neve há na serra” quer dizer que eu estou cheio de cabelos brancos; “é tempo dela” quer dizer que já tenho idade para isso. “Quantas vezes te ardeu a casa?” é porque lá diz o ditado: “Quantas vezes te ardeu a casa? Tantas quantas casei filhas”. Uma vez que já casei duas, sei muito bem o que isso dói. “E quantas vezes conto ser depenado?”, é que se dá o caso de eu ainda ter três filhas solteiras e já lá diz o outro: “Quem filha casa depenado fica”. Agora, os três patos que cá aterraram são estes três patos sabichões que tenho depenados à minha frente, que se despiram e me deram as roupas e o dinheiro para que eu lhes ensinasse aquilo que não sabem, apesar de se pavonearem na Corte.

Os sabichões conselheiros do reino ficaram furiosos por se verem assim enganados por um pobre e velho pescador, e preparavam-se para descarregar a sua raiva dando-lhe uma grande coça quando, para seu espanto, o Rei apareceu com a sua guarda. E o Rei falou-lhes assim:

– O sábio verdadeiro é sempre humilde, porque compreende que quanto mais sabe, mais ainda lhe falta saber. É o que Nicolau de Cusa ensina na sua “Douta Ignorância”, livro que, pelos vistos, vos esquecestes de ler. Como sois uns vaidosos e egoístas, sem nenhum respeito pela verdadeira Sabedoria, achei muito bem que o rústico ancião vos tivesse depenado até ao pêlo. Mas não convencidos da vossa fundamental ignorância, quisestes ainda ludibriar-me vindo aqui pela calada da noite para extorquir o segredo ao ancião, para depois me enganardes de novo com a vossa infinita e inútil vaidade. Só pensais em escapar à vergonha de regressar nus ao Castelo, mas ficai sabendo que não tendes remédio senão oferecer bons dotes às filhas deste ancião, que ainda esperam por casar.

E os conselheiros sabichões lá pagaram os dotes e, daí em diante, passaram a ser mais humildes, ou não tivessem aprendido a lição das suas vidas.

 

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Adaptação do conto da Colecção Formiguinha
BRUNO SANTOS