Hás-de morrer a tentar provar
a toda a genteque és imortal.
“Manual de Instruções Para Desaparecer” (Abysmo, 2015) é o primeiro livro de poemas de José Anjos, mas, pelo que é possível saber numa modesta pesquisa através da web, não faz justo retrato à sua poesia. Autor já premiado na 3ª edição do Poetry Slam Sul, a filosofia lírica de José dos Anjos parece ter dado uma cambalhota, a julgar pelo que escrevia em 2012 e por aquilo que agora redige para esta edição.
A obra recolhe 34 poemas que são fiéis a uma evidente invocação de Mário Cesariny e de três ismos fundamentais: o modernismo, o futurismo e o surrealismo. Toda a obra é uma espécie de cadáver esquisito escrito a uma mão e o leitor vai, inevitavelmente, enrodilhar-se em muito maus lençóis se espera encontrar nestas páginas um vestígio de inteligibilidade.
Em caso de perda
basta ligar as baratas
para acender paredes.
Neste sentido, a pergunta que é preciso fazer a José Anjos é esta: o que é que a poesia, esta poesia, quer dizer? Ou antes, precisa a poesia de significado?
Há muita gente, ilustre gente, que dirá: não. A poesia, como a arte, precisa de um ideal estético, de identidade estilística, de virtuosismo lexical, mas não de narrativa. Precisa de ritmo e de estrutura, mas não de um sentido. Precisa de uma causa, mas não precisa de uma consequência. Precisa da sintaxe, mas não da semântica. De Almada Negreiros a Ezra Pound, de Keroac a Cesariny de Vasconcelos, de Breton a O’neil, encontramos frequentemente na história da literatura aqueles que sempre se orgulharam do poema pelo poema. E que sempre se estiveram a borrifar para as coisas prosaicas e aborrecidas a que geralmente chamamos substância.
Quando Almada Negreiros escreveu o célebre “Os Ingleses Fumam Cachimbo”, estaria preocupado com o significado do seu poema? Claro que não. Almada estaria talvez preocupado com uma certa forma de construção e desconstrução lírica, com uma certa modernidade estilística, com uma certa atitude de ruptura conceptual, mas não com o que aquilo queria dizer, porque na verdade se trata de um poema que não quer dizer nada de especial. E ninguém vai agora afirmar que o Almada não sabia o que estava a fazer, não é?
O problema porém, é de ordem diacrónica. Se é certo que os grandes mestres do modernismo europeu tinham razões de sobra para mandar à fava os velhos cânones do romantismo e do realismo, não se percebe o que é que esta poesia que soa bem, que é cuidada, que é até, a espaços, inspirada, que é tecnicamente válida e que é criativa em doses extra largas, tem para oferecer na sua relação com o leitor de hoje e com o mundo de agora. Quando o poeta escreve
Para encontrar o ponto de partida:
fazer um círculo à volta do meio em toda a amplitude semântica de um gemido palíndromo
e desenhar uma ponte entre cada lado, com os dedos pintados ao espelho;
depois, partir do canto direito da batalha com tudo nos bolsos
escreve isto porquê? Escreve isto a que propósito? E escreve isto contra quem? A poesia, para ser niilista a este ponto, tem que ter uma batalha pela frente, tem que ter uma missão que transcenda e justifique o seu carácter surrealizador. Mas qual é a missão de José dos Anjos? Vamos, por um disparatado minuto, supor que há um inocente no mundo que compra este livro para saber como é que uma pessoa faz para desaparecer. O infeliz não vai conseguir realmente perceber a mecânica do processo e isso é garantido. É claro que ninguém com um centilitro de bom senso no saco do cérebro vai ler este livro com essa intenção, mas nesse caso, qual é a intenção com que se lê este livro? Podemos talvez especular que esta poesia é um manifesto contra uma qualquer outra forma de fazer poesia. Mas esse manifesto, convenhamos, já foi feito, e bem feito, há um século atrás.
Podemos por ventura imaginar que esta poesia visa ferir movimentos artísticos contemporâneos que produzem outro tipo de poesia. Mas quais são esses movimentos? Existirão, pergunto, movimentos artísticos contemporâneos? Não será até essa coisa do movimento artístico algo do passado, que não tem correspondência na forma caleidoscópica, esquizofrénica, subjectiva e individualista de pensar e fazer a arte no século XXI?
É verdade que há coisas que se percebem, para além do jogo das palavras. “Manual de Instruções para Desaparecer” é uma obra sobre a morte, ou melhor, é uma obra que está farta da vida. Isso entende-se bem em estrofes deste género lapidar:
Por vezes achava que se me concentrasse o suficiente
era capaz de me matar com um só pensamento.
É verdade que os futuristas, com Marinetti à cabeça do pelotão dos grandes malucos, iam de certeza abraçar José dos Anjos com firmeza e alegria irreprimível, se vissem a espectacular “Máquina lírio em perspectiva explodida“, invenção gráfica que introduz a obra e que, já legendada, faz as despedidas. Mas esta máquina, com os seus carburadores imagéticos, enaltecedores de particularidade e núcleos disfóricos, apresenta os mesmos problemas de engenharia que são evidentes em grande parte da fábrica de debitar ininteligibilidades que é este Manual: não produz aquilo a que se possa chamar uma mensagem.
É verdade também que a história da literatura está repleta de conteúdos incompreensíveis. E muitas vezes geniais nessa ausência de senso. Mas um parágrafo de Joyce que seja incompreensível não é incompreensível desta maneira:
as instruções para vir à tona
essas
ias recolhendo para uso próprio e talvez lá pela esquina dos cinquenta tivesses
algo a dizer sobre o tecto de água onde chegam
bancadas de pulmões frescos como peixes
mortos à superfície
Há sem dúvida cuidados estéticos e editoriais que o leitor sensível apreciará, neste Manual de Instruções. Há sem dúvida uma beleza terrível nas deambulações obscuras e enigmáticas de José dos Anjos. Há sem dúvida talento a rodos e a capacidade mágica de dar vida a palavras que não estão nada à espera de se cruzar numa determinada estrofe. Há sem dúvida uma voz lírica que grita, mas que grita em checoslovaco, baixinho e debaixo de água. Como gritava Mário Cesariny há umas décadas, como gritava André Breton há um século.
Aproveitando, abusivamente, a epígrafe deste texto, um dos mais belos momentos de todo o livro, José dos Anjos há-de morrer a tentar provar a toda a gente que é moderno. O problema é que esta poesia é antiga.
Relacionados
13 Mar 25
Alexandre arenga as tropas:
o discurso de Ópis.
O mais célebre discurso militar da história, registado por um cronista romano cinco séculos depois do facto, é um mestrado em retórica que quase nos permite escutar a voz de Alexandre e da sua indomável vontade de conquista.
8 Mar 25
A Ilíada, Canto XXII: a morte de Heitor e a ira de Aquiles.
No Canto XXII da Ilíada ficamos a saber que, quando a guerra e a ira desequilibram a balança do destino, o mais digno dos homens pode ter o mais desonroso dos fins, e o mais divino dos guerreiros pode persistir na infâmia.
22 Fev 25
O Retrato de todos nós
"O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, constitui-se como uma das mais contundentes críticas literárias à decadência moral promovida por um hedonismo desenfreado. É por isso importante revisitar a obra. Um ensaio de Walter Biancardine.
14 Fev 25
A Ilíada, Canto XVII: De cavalos imortais e humanos perecíveis.
No Canto XVII, Homero lembra-nos da nossa mortalidade e lamenta esse destino fatídico, em contraste com os dois cavalos eternos de Aquiles. Mas sem essa consciência da morte, sem a coragem e a liberdade moral de a enfrentar, que heróis haveria para cantar na Ilíada?
4 Fev 25
A Ilíada, Canto XVI (segunda parte): A humanidade de Heitor e a iniquidade de Aquiles
O Canto XVI da Ilíada lança um alerta que ecoa na eternidade: sempre que partes para a guerra, podes ter como inimigo o mais nobre dos homens. Podes ter como aliado um narciso. Prepara-te para sobreviver a esse dilema.
6 Dez 24
A Ilíada, Canto XVI: Os três assassinos de Pátroclo.
A morte de Pátroclo, que dará à Ilíada novas dimensões narrativas, é também um momento em que são expostas várias camadas da filosofia moral de Homero: o sangue paga-se com sangue; o remorso fala mais alto que o orgulho; a glória é vã.