Charles Pierre Baudelaire (1821-1867) foi um poeta boémio, dandy e teórico de arte francês. É considerado um dos precursores do simbolismo e reconhecido universalmente como o fundador da tradição poética moderna, a par de Walt Whitman, embora se tenha se relacionado com diversas escolas artísticas. A sua obra crítica também influenciou profundamente as artes plásticas do século XIX.
O poema que escolhemos para esta Variação, publicado em 1864 no Le Figaro e depois incluído em “Le Spleen de Paris”, uma colectânea de 50 textos líricos escritos em prosa e publicados depois da sua morte, em 1869, é uma breve apologia da bebedeira e da bebedeira levada a uma permanente continuidade. É claro que Baudelaire se refere ao estado ébrio no seu sentido lato, já que o apelo não se reduz ao consumo de vinho mas também à alteração do estado de consciência através da virtude e da própria poesia.
Talvez inspirado pela filosofia expressa nos versos do imortal “Carpe Diem”, de Horácio, o autor recomenda afinal aos seus interlocutores que vivam inebriados pela vida. A versão do Contra procura porém uma abordagem menos literária, de forma a que o texto ganhe um carácter mais oral e prosaico, como se fosse dito numa tasca, perante uma audiência ainda sóbria.
Poema original
ENIVREZ-VOUS
Il faut être toujours ivre. Tout est là: c’est l’unique question. Pour ne pas sentir l’horrible fardeau du Temps qui brise vos épaules et vous penche vers la terre, il faut vous enivrer sans trêve.
Mais de quoi? De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise. Mais enivrez-vous.
Et si quelquefois, sur les marches d’un palais, sur l’herbe verte d’un fossé, dans la solitude morne de votre chambre, vous vous réveillez, l’ivresse déjà diminuée ou disparue, demandez au vent, à la vague, à l’étoile, à l’oiseau, à l’horloge, à tout ce qui fuit, à tout ce qui gémit, à tout ce qui roule, à tout ce qui chante, à tout ce qui parle, demandez quelle heure il est; et le vent, la vague, l’étoile, l’oiseau, l’horloge, vous répondront : “Il est l’heure de s’enivrer! Pour n’être pas les esclaves martyrisés du Temps, enivrez-vous sans cesse! De vin, de poésie ou de vertu, à votre guise.”
Versão do Contra
EMBEBEDAI-VOS
Deveis estar sempre bêbedos. Tudo se resume a esta questão: de forma a que deixais de sentir o horrível fardo do tempo que vos pesa nos ombros e vos prende à terra, deveis embebedar-vos sem tréguas.
Mas com quê? Com vinho, com poesia ou com virtude, é só escolher. Mas embebedai-vos.
E se alguma vez, ao acordarem estendidos nas escadas de um palácio, na verdura de uma vala, na sombria solidão do vosso quarto, a bebedeira for ligeira ou tiver desaparecido, perguntai ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que foge, a tudo o que geme, a tudo o que gira, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a vaga, a estrela, o pássaro e o relógio vos responderão: “São horas de bebedeira! Para que não sejais escravos martirizados do Tempo, embebedai-vos sem tréguas! Com vinho, com poesia, com virtude, é só escolher.”
Relacionados
13 Mar 25
Alexandre arenga as tropas:
o discurso de Ópis.
O mais célebre discurso militar da história, registado por um cronista romano cinco séculos depois do facto, é um mestrado em retórica que quase nos permite escutar a voz de Alexandre e da sua indomável vontade de conquista.
8 Mar 25
A Ilíada, Canto XXII: a morte de Heitor e a ira de Aquiles.
No Canto XXII da Ilíada ficamos a saber que, quando a guerra e a ira desequilibram a balança do destino, o mais digno dos homens pode ter o mais desonroso dos fins, e o mais divino dos guerreiros pode persistir na infâmia.
22 Fev 25
O Retrato de todos nós
"O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, constitui-se como uma das mais contundentes críticas literárias à decadência moral promovida por um hedonismo desenfreado. É por isso importante revisitar a obra. Um ensaio de Walter Biancardine.
14 Fev 25
A Ilíada, Canto XVII: De cavalos imortais e humanos perecíveis.
No Canto XVII, Homero lembra-nos da nossa mortalidade e lamenta esse destino fatídico, em contraste com os dois cavalos eternos de Aquiles. Mas sem essa consciência da morte, sem a coragem e a liberdade moral de a enfrentar, que heróis haveria para cantar na Ilíada?
4 Fev 25
A Ilíada, Canto XVI (segunda parte): A humanidade de Heitor e a iniquidade de Aquiles
O Canto XVI da Ilíada lança um alerta que ecoa na eternidade: sempre que partes para a guerra, podes ter como inimigo o mais nobre dos homens. Podes ter como aliado um narciso. Prepara-te para sobreviver a esse dilema.
6 Dez 24
A Ilíada, Canto XVI: Os três assassinos de Pátroclo.
A morte de Pátroclo, que dará à Ilíada novas dimensões narrativas, é também um momento em que são expostas várias camadas da filosofia moral de Homero: o sangue paga-se com sangue; o remorso fala mais alto que o orgulho; a glória é vã.