As eleições de sexta-feira no Reino Unido, como muitas vezes acontece nestes momentos de escrutínio democrático (ou do seu simulacro), têm várias leitura possíveis. O Contra vai formular duas, a primeira das quais está a circular nos media alternativos britânicos e até nalguma imprensa corporativa dita ‘conservadora’, como o Telegraph.
A leitura da direita britânica.
Naquilo que foi apelidado de “loveless landslide” , Sir Keir Starmer entrou em Downing Street após uma eleição que teve o resultado mais distorcido da história eleitoral britânica. O Partido Trabalhista de Starmer obteve apenas 33,8% dos votos, muito menos do que os 40% de Jeremy Corbyn quando perdeu para Theresa May em 2017, e apenas 1,7% acima da derrota de Corbyn para Boris Johnson em 2019. Apesar de ter conquistado não mais que um terço do voto popular, na participação mais baixa desde a chegada do sufrágio universal à Grã-Bretanha, com 59,9%, Starmer assegurou 411 lugares – 63,7% do total – para uma maioria de 172. Isto significa que apenas 20% dos eleitores elegíveis – um em cada cinco – votaram no partido que agora controla quase dois terços do Parlamento e pode legislar com pouca ou nenhuma oposição efectiva.
De acordo com o Telegraph, a diferença de 30 pontos entre o voto popular e a quota de assentos torna este “o resultado mais distorcido de sempre, ultrapassando de longe a anterior diferença de 22 pontos registada em 2001, durante o mandato de Tony Blair”.
Isto significa que os trabalhistas receberam apenas mais 700.000 votos do que Corbyn em 2019, mas conseguiram obter mais de 200 lugares.
A quota de votos dos conservadores caiu 19,9 pontos, para 23,7%, o que lhe valeu 121 lugares, apenas 18,6% do total. Um desastre brutal.
O Reform Uk obteve 4,1 milhões de votos, com 14,2% – não muito longe de metade dos votos dos Trabalhistas – mas conquistou apenas cinco lugares, incluindo o de Nigel farage, pelo círculo eleitoral de Clacton.
A distorção é clara quando se olha para os votos por assento, como se pode ver abaixo, com o Reform UK a precisar de cerca de um milhão de votos por assento, 42 vezes mais do que os 24.000 votos dos Trabalhistas.
A direita foi particularmente prejudicada pelo sistema de votação não proporcional desta vez, como se pode ver em baixo.
Note-se que estes gráficos parecem mostrar a esquerda a ultrapassar a direita em número de votos. No entanto, é importante recordar que o Partido Trabalhista se posicionou ligeiramente à direita do seu registo habitual nestas eleições (por exemplo, em relação aos fundamentos ideológicos de Corbyn), de forma a reconquistar os eleitores que o tinham abandonado nas últimas décadas. O partido fez uma série de promessas nas quais só pode acreditar quem tiver problemas de saúde mental, ou sofrer de ingenuidade crónica: reduzir a imigração, acabar com o cosntante fluxo de barcos carregados de migrantes e não aumentar os principais impostos, criticando frequentemente os conservadores da direita em matéria de tributação.
Uma comparação das eleições desde 1997 entre a percentagem de votos e a percentagem de lugares mostra como os resultados teriam sido diferentes num sistema proporcional.
A propósito, as sondagens de opinião estavam erradas mais uma vez. O poll tracker da BBC deu aos trabalhistas uma vantagem de 18 pontos na manhã de quinta-feira, muito acima da diferença final de 11 pontos.
Mais um gráfico histórico que pode ser de interesse, revelando que a quota de votos dos trabalhistas quase não se altera, mesmo quando passam de uma pesada derrota para uma vitória massiva.
Muitos ministros e ex-ministros conservadores perderam os seus lugares ontem à noite. Os trabalhistas também perderam alguns ministros-sombra, nomeadamente o ministro-sombra da Administração Interna, Jonathan Ashworth, que foi derrotado por um independente do “Voto Muçulmano”. O secretário-sombra da Cultura, Thangam Debbonaire, também foi derrotado pelos Verdes em Bristol Central. Jess Phillips conseguiu apenas 693 votos em Birmingham Yardley, naquilo a que chamou a pior eleição em que alguma vez participou, enfrentando uma oposição muito agressiva do campo pró-Palestina.
Os resultados confirmam como é difícil conseguir uma verdadeira mudança num sistema de votação maioritário, quando os eleitores são desiludidos pelos principais partidos e se vêem desesperados por uma alternativa que o sistema não está concebido para lhes dar. Desta vez, o sistema foi quebrado principalmente pelo facto de os conservadores terem passado 14 anos a fazer promessas que não tinham intenção de cumprir, porque o partido estava repleto de deputados que não concordavam realmente com o manifesto pelo qual foram eleitos ou não estavam dispostos, na prática, a fazer o que era necessário para o cumprir.
A leitura do Contra.
Esta é, basicamente, a abordagem da direita às eleições britânicas e em alguns pontos está certa, até porque confirma uma tendência devastadora que tem triunfado paulatinamente no Ocidente: a desvalorização do voto no processo de ascensão ao poder político. Porém, as más notícias têm uma característica aborrecida: Não podem ser boas. E transformar o desastroso resultado das eleições britânicas numa ‘vitória’ de Farage ou numa ‘meia vitória’ do insuportável Starmer, ou numa fabricação do sistema eleitoral, é jogar à cabra cega com a verdade.
Assim sendo e por uma vez, O ContraCultura não concorda com o que diz Paul Joseph Watson no vídeo em cima, que se lembrou agora que o sistema eleitoral britânico não premeia o voto distribuído generalisticamente, mas sim a concentração dos votos por círculos eleitorais.
Este sistema já permitiu vitórias esmagadoras de Margaret Tatcher e Boris Jonhson, por exemplo, e nessa altura ninguém à direita protestou por causa disso. No presente acto eleitoral, o sistema produziu a abençoada morte do SNP, o partido leninista-nacionalista escocês que deu ao mundo personagens terríficas como Nicola Sturgeon e Humza Yousaf. São as regras da casa. E já são assim há muito, muito tempo.
A verdade é que o eleitorado conservador decidiu castigar o seu partido, que é tão conservador como um caloiro em Oxford, e nesse castigo esteve carregado de razão. Mas a opção pela abstenção teve a consequência de projectar os trabalhistas para uma vitória histórica, mesmo numa situação em que o seu líder é estimado por ninguém (Starmer é a personificação da falência da personalidade e tem o carisma de um hamster).
Por outro lado, há que considerar que Nigel Farage não conseguiu capitalizar o cenário apocalítpico do Partido Conservador e depois de todo o barulho triunfante, não respondeu com um bom resultado. Cinco deputados é pouco mais que deprimente e nem sequer lança grandes expectativas para o próximo ciclo eleitoral. Até porque nessa altura já nada haverá para salvar do naufrágio que é esta penosa Grã-Bretanha.
Pode queixar-se da imprensa corporativa que fez tudo o que é possível para o denegrir e para o esconder do eleitorado? Pode. Foi prejudicado pelo sistema de círculos eleitorais britânicos? Foi. Mas esses são factores líquidos à partida. Qualquer candidato populista em qualquer lado do Ocidente contemporâneo tem por inimigos os apparatchiks dos meios de comunicação social convencionais. E qualquer candidato a eleições legislativas no Reino Unido sabe que o sistema privilegia a concentração local de votos.
Assistimos na sexta-feira ao fim da queda do Reino Unido no mais profundo dos abismos: O de deixar de ser uma nação. Ponto final. Agora é seguir em frente. Mas não para os bifes, claro, que vão seguir, sim, mas direitinhos para o inferno trabalhista.
E sabem que mais? Não há que ter pena deles. Fizeram muito bem feitinha a cama onde se deitaram.
Consequências do desastre.
Com a vitória esmagadora dos trabalhistas, que estava a ser cozinhada desde o Brexit pelas elites globalistas britânicas (incluindo os ditos ‘conservadores’ que na verdade servem o neo-liberalismo oligárquico dominante nos corredores do poder no Ocidente), eis, sinteticamente, o que devemos esperar:
• Um aumento exponencial da imigração, mesmo considerando os níveis já insanos de entrada de migrantes nas ilhas britânicas;
• Alterações radicais à estrutura constitucional britânica, que são mais fáceis de executar do que se imagina porque os ingleses não têm uma constituição escrita, mas consuetudinária; porque a maioria trabalhista é neste momento de tal dimensão que se torna plenipotenciária; e porque o árbitro possível será o Rei, que é um globalista ferrenho. Estas alterações vão alienar ainda mais a classe política das massas e enfraquecer em definitivo os últimos vestígios de democracia representativa no Reino Unido.
• Triunfo woke e assalto brutal à liberdade de expressão. Qualquer pessoa que conheça a agenda de Keir Starmer sabe o que vem aí: Massificação e imposição soviética da diversidade e da ideologia de género e da teoria crítica da raça, institucionalização do revisionismo histórico, intensificação da censura e perseguição ainda mais feroz do livre arbítrio e correspondente reforço do financiamento e da influência da imprensa corporativa.
• Cristalização das posições neo-liberais em relação às guerras na Ucrânia e no Médio Oriente, ou seja, russofobia histérica na frente leste e hesitação entre a simpatia para com o islamismo e o medo de parecer anti-semita que só complica a questão do médio-oriente.
• Alargamento das clivagens entre classe sociais, favorecendo as elites, principalmente as oligarquias financeiras da City, e castigando a classe média com impostos e a imposição da agenda climática de Davos e Bruxelas.
• Dissipação da identidade e do conceito de nação, que é consequência do pensamento neo-liberal que Keir Starmer interpreta literalmente e como poucos na Europa.
Uma última nota.
Há cada vez mais ingleses a viver em Portugal (pudera!). Como ingleses que são, carregados de uma ideia de grandeza que já não têm, de um imaginário de eficiência que já não realizam e de um conceito de civilização que já deixaram cair, trazem com eles ideias para melhorar o nosso país. Não se apercebem do paradoxo: tudo o que fizeram e foram até aqui levou-os ao poço sem fundo onde se encontram agora. Por isso, urge uma recomendação: Quando um bife te disser, gentil leitora, que na terra dele fazem isto ou aquilo melhor do que aqui; quando um reformado do civil service te sugerir, caríssimo leitor, fórmulas britânicas de administrar portugueses, o melhor mesmo é dizer-lhes rapidamente que tratem dos problemas que têm na terra deles e deixem que os portugueses tratem dos seus. Afinal, por triste e deficitário que seja o destino de Portugal, sempre vamos demorar mais tempo do que eles a deixar de ser uma nação.
O que não é dizer pouco.
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