Num momento que ficará para a história como profético, Tucker Carlson entrevistou o filósofo russo Aleksandr Dugin, que manifestou a convicção que os fundamentos conceptuais do neo-liberalismo dominante das elites globalistas no Ocidente terá como última consequência existencial a desagregação total da identificação dos seres humanos até com a sua própria espécie. 

De facto, o Ocidente passou décadas a avançar a todo o vapor rumo ao individualismo, e poucos líderes se deram ao trabalho de parar e perguntar a si próprios se não valerá a pena rever esse caminho.

Onde é que o primado liberal do indivíduo nos levou, afinal? Como filosofia, o individualismo evoluiu da intenção de reformar e libertar para ser agora a força central por trás das forças repressivas da nossa sociedade, anulando a ideia de Deus, o conceito de pátria e o amor à verdade.

As pessoas no Ocidente identificam-se com animais reais e fantasiosos, com géneros que só existem na sua imaginação, com povos e culturas com os quais não têm qualquer elo histórico, linguístico, religioso ou étnico, e recusam, com cada vez maior intensidade e em maior número, a identificação com quem são de facto, rejeitando a nação de que são nativos, a religião e a cultura dos seus pais e o género biológico com que nasceram.

É justo perguntar onde é que isto nos leva. Se a civilização continuar a rejeitar qualquer categorização de grupo, da religião à nacionalidade, do sexo biológico ao próprio reconhecimento de que fazemos parte de um colectivo a que chamamos humanidade, o que é que nos resta? O transhumanismo, pois claro.

Aleksandr Dugin, que passou passou a vida a pensar nisto, faz uma resenha do seu pensamento sobre a questão, logo no princípio da entrevista, quando afirma:

“Penso que tudo começou com o individualismo. Portanto, o individualismo foi um entendimento errado da natureza humana, da natureza do homem. Quando se identifica o individualismo com o homem, com a natureza humana, cortam-se todas as suas relações com tudo o resto. Portanto, tem-se uma ideia muito especial do sujeito, do sujeito filosófico como indivíduo. E tudo começou no mundo anglo-saxónico com a reforma protestante e com o nominalismo antes disso – a atitude nominalista de que não existem ideias, apenas coisas, apenas coisas individuais. Assim, o indivíduo foi e continua a ser o conceito-chave que foi colocado no centro da ideologia liberal e do liberalismo, que, na minha leitura, é uma espécie de processo histórico, cultural, político e filosófico de libertação do indivíduo, de qualquer tipo de identidade colectiva que transcenda o indivíduo. E isso começou com a recusa da Igreja Católica como identidade colectiva, e do império ocidental como identidade colectiva. Depois disso, foi uma revolta contra um Estado nacionalista como identidade colectiva, a favor de uma sociedade puramente civil. Depois dessa guerra, houve a grande luta do século XX entre o liberalismo, o comunismo e o fascismo. E o liberalismo venceu mais uma vez. E depois da queda da União Soviética, só restou o liberalismo. Francis Fukuyama salientou correctamente que já não existem ideologias, excepto o liberalismo. E o liberalismo foi a libertação destes indivíduos de qualquer tipo de identidade colectiva. Só havia duas identidades colectivas de que se podiam libertar: a identidade de género, porque é uma identidade colectiva. Somos um homem ou uma mulher colectivamente. (…) E isso conduziu aos transgéneros, aos LGBT e a uma nova forma de individualismo sexual. Assim, o sexo é algo opcional. E isso não foi apenas um desvio do liberalismo. Foram elementos necessários para a implementação e a vitória desta ideologia liberal. E o último passo que ainda não foi totalmente dado é a libertação da identidade humana. A humanidade é opcional. Vocês no Ocidente estão a escolher o sexo que querem, como querem. E o último passo neste processo de implementação do liberalismo significará precisamente a opção humana. Assim, podem escolher a vossa identidade individual de serem humanos ou de não serem humanos. Isso tem um nome: Transhumanismo, pós-humanismo. Singularidade. Inteligência artificial. Klaus Schwab e Harari declaram abertamente que é o futuro inevitável da humanidade. Assim, chegamos à estação terminal histórica. Há cinco séculos, embarcámos neste comboio e agora estamos a chegar à última estação. É esta a minha leitura. Cortámos com a tradição e o passado em todos os elementos, todas as fases disso. Assim, deixámos de ser protestantes. Passámos a ser materialistas ateus seculares. Deixámos de pertencer a um Estado nacional que o liberalismo usou para se libertar do império. E agora, um Estado nacional torna-se, por sua vez, um obstáculo. Estamos a libertar-nos do Estado nacional. Finalmente, a família é destruída em favor deste individualismo. E, por último, o sexo, que já está quase ultrapassado. O sexo é opcional. E na política de género, só há um passo para chegar ao fim deste processo de libertação, do liberalismo, que é o abandono da identidade humana como algo prescrito. Portanto, ser livre de ser humano, ter a possibilidade de escolher ser ou não ser humano. E essa é a agenda política, a agenda ideológica de amanhã. É assim que eu vejo o mundo anglo-saxónico.”

De seguida, Tucker coloca outra questão fundamental, que é a referente ao processo que o liberalismo sofreu para transitar de ideologia libertária a força repressiva. O filósofo russo responde com notável clarividência:

“Penso que o problema está nas duas definições de liberalismo. Há o velho liberalismo, o liberalismo clássico. E o novo liberalismo. O liberalismo clássico era a favor da democracia. A democracia entendida como o poder da maioria, do consenso, da liberdade individual. Isso deve ser combinado de alguma forma com a liberdade dos outros. E agora já estamos totalmente na próxima estação. A próxima fase: o novo liberalismo. Agora não se trata da regra da maioria, mas sim da regra das minorias. Não se trata da liberdade individual, mas sim do ‘wokismo’. Por isso, temos que ser de tal forma individualistas que devemos criticar não só o Estado, mas também o indivíduo, o velho conceito de indivíduo. Agora somos convidados a libertarmo-nos da individualidade para irmos mais longe nessa direcção. Falei com Francis Fukuyama e ele disse que a democracia significava a regra da maioria. E agora é o governo das minorias contra a maioria, porque a maioria pode escolher Hitler ou Putin. Por isso, temos de ter muito cuidado com a maioria, a maioria deve ser controlada e as minorias devem governar a maioria. Não se trata de democracia, trata-se de totalitarismo. E agora não estamos a falar da defesa da liberdade individual, mas da prescrição para ser woke, para ser moderno, para ser progressista. Ser ou não ser progressista não é um direito, é um dever. É um dever seguir esta agenda. Portanto, és livre de ser um liberal de esquerda. Já não és livre para ser um liberal de direita. Deves ser um liberal de esquerda. E isso é uma espécie de dever. É uma prescrição. Por isso, o liberalismo lutou durante a sua história contra qualquer tipo de prescrição. E agora, por sua vez, tornou-se totalitário, prescritivo, não livre como era.”

A entrevista, que dura apenas 20 minutos, é de grande interesse e profundidade. O Contra recomenda vivamente o seu consumo.