O Ferrari nº 51 da AF Course tripulado por Alessandro Pier Guidi, James Calado e Antonio Giovinazzi, que venceu as 24 Horas de Le Mans de 2023.

 

A célebre corrida de resistência do circuito de la Sarthe tinha este ano, na celebração do seu centenário, muitos motivos de interesse. A categoria Hypercar apresentava aquela que era uma da mais ricas entry lists de todos os tempos: construtores como a Toyota, a Porsche, a Ferrari, a Peugeot e a Caddilac e privados como a Vanwall, a Jota e a Glickenhouse, num total de 16 lindíssimos automóveis, iriam disputar a vitória numa prova que, apesar do favoritismo da Toyota, estava completamente em aberto e em que os carros da Ferrari AF Course se qualificaram para os dois primeiros lugares da grelha de partida.

Nas classes LMP2 e GTE era difícil prever um vencedor, porque as 24 horas de Le Mans são sempre ou quase sempre um pesadelo para apostadores e porque tínhamos muitos automóveis capazes de triunfar. Na categoria GTE havia também uma curiosidade: a Nascar estava representada com um carro que não tinha grandes alterações em relação àqueles que competem nos Estados Unidos, para além dos ajustes normais que os turismos de competição fazem em função das especificidades de cada circuito.

Mais a mais, a lista de pilotos à partida era realmente impressionante. Só nos hypercars encontrávamos, por exemplo, Kevin Estre, Sebastien Bourdais, Esteban Guerrieri, Andre Lotterer, Sebastien Buemi, Brendon Hartley, Antonio Giovinazzi, Paul di Resta e o português Antonio Felix da Costa. Tudo pilotos de topo. Nas restantes classes, nomes como Nicolas Lapierre, Robert Kubica, Jenson Button ou Jimmie Johnson prometiam uma edição centenária para os anais da história.

E foi isso mesmo que aconteceu.

 

Protótipos da categoria Hypercar . 24 Horas de Le Mans . 2023

 

Um sprint de 24 horas?

Depois de uma partida que levou logo nas primeiras voltas os Toyota à liderança e quando os 300.000 espectadores em La Sarthe, mais os 300 milhões de audientes televisivos, pensavam em uníssono que a marca japonesa ia dominar a corrida, rebentou uma agradável surpresa: as primeiras 12 horas da edição centenária das 24 Horas de Le Mans foram intensas como nunca foram na sua longa história, mesmo apesar da chuva e dos tempos mortos causados por uma filosofia de Safety Car roubada aos americanos que não se adequa de todo a La Sarthe, e a longos períodos de bandeiras amarelas em certas partes do percurso ou até na sua totalidade. Um exagero de salvaguardas securitárias foi o único ponto negativo desta fabulosa edição, que antes da noite cair já tinha visto as cinco principais marcas em competição a passarem pela frente da classificação geral (Ferrari, Toyota, Caddilac, Porsche, Peugeot, por esta ordem), numa corrida de sonho, disputada como ninguém se lembra que uma prova de resistência tenha sido disputada: 12 automóveis lindíssimos e altamente performantes a lutarem ferozmente pela bandeira de xadrez de amanhã, como se amanhã não houvesse. Como se fosse possível fazer 24 horas ao sprint.

Reparem só como se estava a correr com o freio nos dentes à quinta hora da prova:

 

 

Nem é preciso dizer que estes automóveis passam muito tempo por volta disparados a mais de 300 quilómetros por hora, pois não?

No entretanto, houve tempo para que António Felix da Costa levasse o Porsche privado da Hertz Team Jota do 45º lugar da grelha à primeira posição da classificação geral, num esforço épico que fez história: foi o primeiro português a liderar a classificação absoluta das 24 Horas de Le Mans. O problema foi quando o António entregou o automóvel ao seu companheiro de equipa Ye Yifei, que se encarregou de espetar o bólide contra os rails, em Arnage, obrigando a reparos intermináveis que relegaram em definitivo o Porsche nº 38 para os últimos lugares da sua classe.

 

Durante a noite, o caos; pela madrugada, a claridade.

Com a chuva, muitas vezes torrencial, a transformar as condições de aderência e visibilidade num verdadeiro inferno para pilotos e máquinas, a longa noite de La Sarthe fez vítimas a um ritmo alucinante. O peugeot 94, que, para queda do queixo de toda a gente, liderava a prova por esta altura e com um confortável minuto de vantagem sobre o segundo classificado, o Toyota nº 7 que tinha vencido a prova em 2022, despistou-se na chicane de Daytona, zona do circuito que foi cemitério de ambições para muita gente. Duas horas mais à frente, era esse mesmo Toyota 7 que ficava de fora da competição depois de um acidente em Tertre Rouge. 8 horas depois de ter começado, a corrida ainda tinha 7 hypercars na mesma volta.

Mas com a chegada da madrugada, as coisas ficaram mais claras e não só por causa da luz solar. Os 4 carros da Porsche, por acidentes, problemas mecânicos ou insuficiência de ritmo estavam fora da corrida ao pódio, uma suprpreendente Caddilac tinha dois automóveis confortavelmente instalados nos cinco primeiros e a batalha pela liderança travava-se, de forma acesa, entre o Ferrari 51 da AF Course tripulado por Alessandro Pier Guidi, James Calado e Antonio Giovinazzi e o único Toyota em prova, o nº 8 da Gazoo Racing, conduzido por Sebastien Buemi, Brendon Hartley e Ryo Hirakawa.

O mesmo não se podia dizer das restantes classes. A vitória nas categorias LMP2 e GTE só viria a ser decidida nos últimos momentos da corrida e era disputada por uma quantidade enorme de equipas.

 

Cinquenta anos depois da sua última participação, a Ferrari triunfa.

Esta renhida luta entre a Ferrari e a Toyota, que durante imenso tempo não foi além de uma diferença de 10 a 20 segundos, com várias ultrapassagens entre os dois carros, terminou apenas na penúltima hora da prova, e muito por responsabilidade de uma má decisão táctica da Toyota, que graças ao nacionalismo saloio que já no passado foi evidente, escolheu o seu pior piloto, o japonês Ryo Hirakawa, para cumprir os últimos 2 stints da corrida. Ao tentar manter o ritmo dos seus companheiros de equipa de forma a pressionar o Ferrari que liderava a prova, Hirakawa foi vítima de um bloqueio de travões em Arnage que levou o carro a embater 2 vezes nos rails. A respectiva ida à box para substituição dos componentes de chassis afectados pela colisão traduzia o abandono das aspirações que o maior construtor automóvel do mundo alimentava de conquistar a sexta vitória consecutiva no traçado de La Sarthe.

No entretanto, e para levar as emoções ao rubro, o Ferrari, depois de ser reabastecido, ficou mais de um minuto imobilizado nas boxes, já que Pier Guidi não conseguia nem por nada reactivar o motor do automóvel. Passado o susto, o hypercar da marca de Maranello voou para a vitória. Meio século exacto depois da sua derradeira participação em Le Mans e 58 anos após a sua última vitória na competição, a Ferrari voltava a experimentar o incomparável sabor de vencer em Le Mans.

Nos LMP2, o triunfo coube ao Oreka da Inter Europol, guiado muito consistentemente por Albert Costa, Fabio Scherer e Jakub Śmiechowski. Mas também aqui a luta pela vitória foi estendida até ao fim já que o WRT de Rui Andrade, Louis Delétraz e Robert Kubica terminou na mesma volta. Nos GTE, o Corvette oficial de Nicky Catsburg, Ben Keating e Nicolás Varrone acabou por cruzar a linha de meta com uma volta de vantagem sobre os restantes adversários do top 5. Mas para percebermos como as coisas foram animadas durante toda a corrida basta dizer isto: o Porsche da Iron Dames que acabou em quarto lugar, tripulado pelas valentes Sarah Bovy, Rahel Frey e Michelle Gatting, liderava a prova a cerca de três horas da sua conclusão e os primeiros lugares da classificação foram sofrendo alterações constantes durante toda a corrida.

Voltando aos hypercars há que destacar o excelente comportamento da Caddilac, que conquistou um lugar no pódio e classificou dois dos seus três automóveis nos cinco primeiros lugares (3º e 4º), e o muito surpreendente resultado dos dois lindíssimos e privados Glickenhouse, que ao terminarem em 6º e 7º posicionaram-se à frente dos Porsche e dos Peugeot, numa incrível demonstração de constância e fiabilidade.

 

Ao ano 100, uma corrida de sonho.

No rescaldo de mais uma aventura alucinante em La Sarthe, há poucos que não concordem com esta afirmação: a edição centenária das 24 Horas de Le Mans terá sido a mais espectacular, incerta, disputada e épica corrida na história da prova. Ninguém com certeza esquecerá as imortais disputas entre porsches e ferraris, ferraris e fords, jaguares e mercedes, audis e peugeots e porsches e toyotas que enriqueceram de emoção e espectacularidade as páginas desta epopeia. Mas nunca tantos fabricantes correram de forma assim desenfreada pela vitória final. E se é verdade que os regulamentos equalizam a potência dos automóveis e as novas regras de bandeiras amarelas aproximam os concorrentes que se mantêm na mesma volta do líder de cada classe, também não é mentira nenhuma que o resultado foi absolutamente fascinante. Um festival único e inesquecível para os amantes do automobilismo.

Ainda por cima, tudo indica que em 2024 Le Mans pode ser ainda mais emocionate do que foi este ano, se tal é possível, com mais de 22 bólides à partida na categoria dos Hypercars, já que a BMW e a Lamborghini vão trazer dois carros cada para a grelha de partida e intensificar assim a luta titânica entre os grandes construtores da indústria automóvel.

Mesmo com uma directa em cima, decorrente do acompanhamento integral da prova, há muitos fãs que mal podem esperar pela edição 101 das 24 horas de Le Mans. Um deles, é este escriba.