30 de Março de 1974. um disfuncional grupo de amigos de Queens, Nova Iorque, (Joey, Dee Dee, Johnny e Tommy, todos já falecidos), sobem ao palco do mítico CBGB, solo sagrado do rock underground da época, para marcarem para sempre a história da música ocidental e contribuírem para a génese daquilo que hoje entendemos como Punk Rock. Imagine, caro leitor, que estava presente, nessa noite iniciática. E que os quatro cabeludos o bombardeiam com este acto beligerante:
Com a sensação de ter sido subitamente esbofeteado por qualquer coisa de radicalmente novo, o assustado leitor seria logo de seguida submetido a um tratamento voltaico que, apesar de libertar os seus tornozelos para impensáveis aventuras, impactava o cérebro com doses excessivas de uma espécie estranha de adrenalina que acontece quando uma guitarra eléctrica é tratada como a delicadeza que usamos quando somos encarregados de dar função a uma moto-serra.
Tudo nos Ramones era ruptura. Para todos os efeitos tratava-se de começar do zero. É claro que as influências estavam lá para quem as quisesse discernir, dos Beach Boys aos Kinks, Dos The Who a Elvis Presley, mas estavam todas viradas ao contrário e sujeitas a um ritmo frenético e a uma desconstrução minimal que as tornava irreconhecíveis. O Rockabilly ou o Surf Rock dos Ramones estava para os registos originais como as barrocas fatiotas de Elvis em Las Vegas estavam para os blusões negros e as calças de ganga de integridade periclitante destes intratáveis rapazes de Queens.
Rocket to Russia ou como sobreviver à guerra fria.
Fast forward para 1977. No contexto da Guerra Fria que se vivia no tempo (e que hoje seria motivo para vários lockdowns por ano e sucessivas crises existenciais das flores de estufa que poluem o ambiente emocional do planeta), os Ramones decidem gozar o prato: “Rocket To Russia”, o seu terceiro trabalho de estúdio, é, para além do óbvio manifesto punk, um corrosivo exercício de humor. Os 14 curtos e grossos temas que habitam este disco, caracteristicamente parcimoniosos em acordes e avarentos com os versos (“I Don’t Care” tem 3 acordes e 3 versos), não deixam por isso de ter enorme capacidade retórica.
Apesar da componente rítmica, que leva à pista de dança até aqueles que o reumático imobiliza, o Disco Sound é ridicularizado. A religião é ridicularizada. A família é ridicularizada. O apocalipse nuclear é ridicularizado. E de ridículo em ridículo, os Ramones edificam a sua posteridade, à velocidade de 78 rotações por minuto.
A cretinice é aliás um dos alvos preferidos das setas balísticas que os Ramones disparam loucamente em todas as direcções. E “Cretin Hop”, é um hino épico em desfavor da estupidez humana.
Já largada a âncora que muito vagamente os prendia a referências do passado, “Rocket To Russia” é só Ramones, sem adereços nem tralhas. De rédea solta pelo estatuto que em apenas 3 anos tinha conseguido conquistar, a banda avança pelo território inóspito da inventiva mais niilista que se possa imaginar. E mesmo quando a mania surfista volta à superfície dos riffs, já não há aqui subpartículas californianas absolutamente nenhumas. As ondas são de asfalto, as pranchas têm 3.000 de cilindrada e a praia é uma hamburgaria na última travessa do inferno.
Apesar da selvagem e apuncalhada alegria de acordes que rebenta por todos os lados, este disco, gravado na sua grande parte ao primeiro take, mas produzido com recursos técnicos de que a banda ainda não tinha beneficiado, tem um lado soturno. Os Ramones sabiam escarafunchar na chaga depressiva dos dias e nas feridas abertas pela desventuras passionais como qualquer outra banda underground que se preze. E em “Here Today, Gone Tomorrow”, um tema de complexidade melódica, emocional e lírica fora do normal, considerando o registo minimal da banda, percebemos que Rocket To Russia não é só sátira. Também tem drama.
Esta pérola mudou muita coisa dentro dos tímpanos e no fundo dos cerebelos de milhões de audientes. Ficámos a saber que a economia é uma virtude melódica. Que as calças de ganga devem ter buracos para os joelhos respirarem. Que homens muito feios podem ser símbolos sexuais. Que o punk é dançável e que a ironia é uma arma superior à bomba de hidrogénio. Ficámos muito mais sábios através de um disco que na verdade não pretende ensinar nada a ninguém. “Rocket To Russia” é um monumento à dissidência e só quer ser isso e é isso que faz dele uma obra prima.
Porque se a contracultura do século XX tivesse um refrão, esse refrão seria:
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker
Sheena is a punk rocker, now.
Os Ramones ao vivo, em 1977: uma ininterrupta barragem de artilharia.
O Youtube guarda uma pedra preciosa, testemunho da performance ao vivo dos Ramones: parte do concerto histórico, apresentado no Rainbow Theater, em Londres, a 31 de Dezembro de 1977, que serviria de registo para o álbum “It’s Alive”, que é hoje considerado um dos melhores discos punk rock de sempre. A forma como a banda disparava um tema a seguir ao outro, numa ininterrupta e bombástica série de curtos manifestos (neste segmento são 14 músicas em 26 minutos!), é ainda hoje lendária. A boa qualidade áudio e vídeo, considerando a data em que foi gravado, faz deste clip um objecto de culto.
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