O Ocidente deve reconhecer que está em dívida com Elon Musk. O que o homem mais rico deste planeta fez pela liberdade de expressão e pela denúncia dos esforços censórios da corporação Washington/Silicon Valley não tem preço e os “Twitter Files” ficarão para a história como testemunho da operação totalitária que está a ser montada pelas elites sobre as massas no primeiro terço do Século XXI.
Há também quem o reconheça por aquilo que faz para ganhar dinheiro: engenhocas várias mas invariavelmente filibusteiras como carros eléctricos supostamente amigos do ambiente, mas que feitas as contas, nem por isso servem para mais que aliviar a culpa dos neo-liberais que gostam de pensar que estão a salvar o planeta; chips para implantar nos cérebros e transformar o Sapiens numa tenebrosa entidade biónica; foguetões que servem para cumprir objectivos vagos e consumir à NASA o dinheiro dos contribuintes americanos; satélites para que o Zelensky, ou quem quer que Musk considere digno desse privilégio, tenha sempre acesso à internet de alta velocidade. Entre outras explorações imaginativas mas irrealizáveis ou, se realizáveis, indesejáveis.
O Sul-Africano/Norte-americano, grande fã de Xi Jinping, é também um comediante. Às vezes, um excelente comediante. E isso está muito bem. O problema é quando as pessoas levam os comediantes a sério. E isso é que já não está nada bem.
O ContraCultura é incondicional da exploração espacial e deseja ardentemente o relançamento da aventura cósmica como eixo fundamental para a realização da humanidade. Mas não partilha da ideia que Marte seja um destino particularmente interessante. Há locais no sistema solar bem mais apelativos para a ciência, como Enceladus, a sexta lua de Saturno, ou Europa, outra lua, mas de Júpiter, que encerram, debaixo de finas camadas de gelo, oceanos de água tépida.
Mas se é Marte o objectivo, que se cumpra o objectivo. Vale sempre a pena deixar a atmosfera da Terra nem que seja para visitar uma rocha estéril à deriva no espaço. Nesta matéria, conta bastante a glória da aventura pela aventura.
O projecto de Musk, porém, mexe imenso com os nervos de qualquer pessoa que pare para pensar no pacote de ilusões que está a ser vendido ao público. É muito feio mentir desta maneira. Iludir as pessoas desta maneira. Falsificar a realidade desta maneira.
A SpaceX nunca explicou como é que vai reduzir os custos da aventura cinco milhões de vezes, como afirma que é necessário para que o projecto seja viável. Nunca explicou como tenciona proteger os astronautas da radiação com que vão ser atingidos durante as viagens. Nunca explicou como é que vai criar energia e inventar as estruturas para proteger os colonos das temperaturas extremas do planeta e para criar ambientes pressurizados e ricos em oxigénio onde eles possam viver. Nunca explicou como é que vai alimentar esta gente toda. Como é que vai ter água para dar de beber a esta gente toda. Nunca explicou como é que esta gente toda vai procriar ou sequer sobreviver num ambiente super hostil e com pressões gravíticas radicalmente diferentes das que existem na Terra (ninguém sabe ao certo como se desenrolará um parto num planeta que exerce um terço da pressão gravítica do nosso planeta). Nunca explicou como é que vai conseguir lançar mais de mil missões em cerca de 60 anos. Nunca explicou onde é que vai arranjar o diabo do dinheiro para tudo isto, sendo que esta será, de longe, a mais cara iniciativa da história da humanidade e sendo que nem sequer se percebe quais as riquezas que o planeta oferece para justificar o investimento.
Musk não gosta de falar sobre este assunto (a cotação da acções da SpaceX pode sofrer com isso), mas o principal problema das viagens espaciais de longa duração nem é tecnológico. É clínico. O ser humano não nasceu para viver em condições radicalmente diferentes das que se registam na Terra. A imponderabilidade, a exposição à radiação, o isolamento, entre muitos outros factores, impactam a saúde física e psíquica dos astronautas de forma brutal. E, até ver, não há grandes soluções para colmatar esses impactos em jornadas que podem demorar um ano ou mais.
Ainda por cima, estes efeitos nefastos permanecem depois do ciclo de exposição e ficam gravados no genoma humano. Chegados a Marte, por exemplo, muitos dos astronautas vão ter que viver com graves problemas de saúde (anemias, cancros, problemas cardíacos, atrofia muscular, etc.), num ambiente hostil e extremamente exigente. Muitos dos astronautas vão morrer pouco tempo depois de terem pisado o solo marciano.
O único trunfo que a SpaceX tem na sua cómico-trágica manga é o facto de ter um foguetão que é capaz de sair da atmosfera e entrar outra vez na atmosfera para voltar a sair dela e regressar outra vez e assim sucessivamente até que entretanto alguma coisa corra mal. O foguetão reutilizável é uma boa ideia. Mas, gentil leitor, não resolve grande coisa se o teu sonho for passar um fim de semana nas montanhas rochosas do Planeta Vermelho. E não resolve mesmo nada se a tua ambição for a que Musk diz ser a dele: a colonização massiva de Marte no espaço de um século.
Na verdade, o projecto Marte de Elon Musk não tem qualquer sustentabilidade técnica, contabilística ou científica. É uma mera manobra publicitária, como a a maior parte das iniciativas empresariais do milionário canadiano. É um belo PowerPoint. Mas é apenas isso.
Num hilariante exercício de ironia, Sabine Hossenfelder explica como é fácil e simples terra-transformar o planeta vermelho, de forma a torná-lo habitável pelo animal humano. Fácil e simples, sim, se fores Deus Nosso Senhor. Caso contrário, o melhor é tomarmos sonhos de Musk por aquilo que eles são: bem sucedidos esforços de marketing para valorizar as acções da Space-X.
Mas a prova derradeira da fraude é esta mais que amadora, mais que hesitante, mais que incompleta, mais que vaga, mais que não científica apresentação do projecto, por parte de quem o dirige: Paul Wooster, o engenheiro em chefe.
Bom Deus, que palestra tão fraquinha.
Sobre esta matéria, como sobre outras, Elon Musk tem-se comportado como um charlatão. Mas, como é um charlatão a que as pessoas parecem achar alguma piada (mais vale cair em graça do que ser engraçado), está de facto a enganar meio mundo. Ainda por cima, com a mais quimérica das promessas: a da conquista espacial.
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