Não é preciso ter muitas milhas acumuladas nos percursos turísticos do mundo para se ter a certeza religiosa que não há no planeta um lugar mais romanesco que Guerreiros do Rio. A aldeia propriamente dita tanto como os arredores ribeirinhos rebentam de parágrafos imortais.
O Guadiana Internacional; que vibra com as marés oceânicas e que, por isso, mantém o caudal majestático sobre o deserto acidentado do Sudeste Alentejano; é uma nação de memórias, um país líquido e prenhe de castros antigos e ódios ancestrais, de margens abruptas e ventosas com chilrreantes canaviais, que de noite vencem o silêncio ensurdecedor dos astros.
Combray, o idílio de Proust – esse anjo monocórdico que fala por santas metáforas (que fala de aristocratas que limpam o monóculo como quem muda um penso), Combray, o procurado paraíso perdido, não tem o Guadiana de grande caudal salgado, agreste e venerável, falso de correntes, perigo fluvial e amigo de marinheiros, que lhe dê banho à literatura.
Combray, por todo o amor que Proust tinha pelos nomes, não ganha em glória nem em sonoplastia a Guerreiros do Rio, caramba, o nome de uma terra como devem ser os nomes das terras que marcam a presença funesta dos homens; etimologismo grandioso e quezilento onde se encerra a paz que há no mundo e a insuficiência que há no homem. Combray, claro está, é um terreno para construtores de utopias: não dá lugar aos relevos da história ou à prosa da geografia e envolve Swan no primeiro mistério da existência, ele que é sujeito primordial do síndroma de Adão. Odette, o segundo patamar metafísico, substitui o pecado por culpa e, talvez por isso, evoca não o Guadiana, mas um cardeal inverso deste Alentejo que dá liberdade às palavras.
Passam as horas e olvidam-se os anos e as palavras permanecem livres, perfeitas, pérfidas e divinas, aqui, no fim dos códigos postais. Swan deambula por corredores melodramáticos à procura em Vermeer de uma saída para o tédio, afinal fingindo e fugindo como quem se quer escapar da multidão que suja a bela paisagem flamenga da Costa Vicentina. Swan, indisposto e indolente; o autómato da emoção, sem um rumo definido e espoliado de destinos, reverso inverso de um sentido para a vida – como um escravo regularmente sodomizado por deus – irmão gémeo de um nado morto, abandonado no ventre imenso de uma história que vive para além da cronologia relojoeira do Sapiens, nobre sobre a tragédia que o humilha; lembra-me outro amigo de Verão: Bach, ele mesmo maior que os deuses, compondo música celestial para adormecer um simples príncipe ou anunciando gloriosamente a entrada física e abjecta de um reles aristocrata na Câmara da Liga; Bach desperdiçando o talento extra-terrestre em esforços protocolares, como Swan ao sol negro do amor anti-cristão pela Senhora de Cressy.
Em Guerreiros do Rio há um certo paragrafar de Proust, um certo frasear de Bach, um certo conversar entre forças marítimas e fluviais, uma certa paixão que rebenta, uma específica e romanesca sabedoria por entre os canaviais canoros. Em Guerreiros do Rio há substância ontológica. Sempre que muda a maré.
E é pela EM 507, que liga a Foz de Odeleite a Alcoutim, que lá se chega. Uma estrada sinuosa e tecnicamente exigente, que se esforça sem total sucesso por perseguir o fluído curso navegável do Guadiana. É possível acelerar um bocadinho, claro, mas aqui e ali há um ou outro buraco partidor de jantes e o condutor estará demasiado extasiado para querer sair depressa desta impressionista e impressionante aguarela.
Não se houve mais que o avanço da maré e o GTI a rosnar. Ninguém habita este bocadinho de sossego. Não há turistas e os escassos nativos não se aborrecem pelas curvas que conhecem de cor. Um individuo fica sozinho no sonho, sozinho no mundo. No lugar mais literário da galáxia.
Portugal ainda tem muita estrada sem semáforos. Muitos quilómetros sem trânsito. Muito espaço para estacionar. Muitos caminhos para testar o modo Sport. Muito silêncio para rasgar com o barulho da combustão interna. Muita liberdade para tirar prazer da condução e da paisagem e da música e da literatura, tudo misturado na composição do asfalto e na combustão da paisagem.
Depois do necessário momento de meditação, um regresso ao Oeste. O segmento da N123 que liga Mértola a Castro Verde é um troço de estrada absolutamente monumental. O asfalto está impecável, a paisagem é parcimoniosa em ruído gráfico e o tráfego escasseia, porque Deus é grande. O condutor sensato arriscará, claro, o inconveniente de uma brigada. Mas se não acelerar aqui um bocadinho, acelera onde?
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