Aparentemente, uns caranguejos mutantes deveras agressivos estão a invadir a costa nordeste dos Estados Unidos. São muitos, são verdes, são antipáticos e trazem bastante apetite.
Não sei porque razão é que isto é algo de estranho ou sensacional. As espécies animais (e muitas das vegetais também) migram e sofrem mutações em função das circunstâncias. São endémicas. São predadoras. São agressivas, quando a agressividade é necessária à sobrevivência. São especialmente agressivas quando colonizam novos habitats, precisamente por terem que conquistar territórios e alimento a outras espécies já confortavelmente instaladas. Têm ciclos de explosão demográfica e outros de depressão demográfica que são correlativos a variações nos seus ecossistemas, que podem ter a ver, por exemplo, com a quantidade disponível daqueles sobre os quais exercem caça ou com a quantidade ameaçadora daqueles que os caçam.
Os caranguejos mutantes e mal criados e esverdeados de mau feitio foram parar às burguesas praias do Maine com a naturalidade de quem faz as malas à procura de melhor vida. Todos os animais fazem isto. Os animais portugueses, por exemplo, fizeram isso em larga escala, há uns séculos atrás e também houve agressividade (não tanta como se enche para aí a boca), mutação genética (os portugueses misturaram-se basicamente com toda a gente que encontraram) e alteração no tom de pele (com direito a insolações de vária ordem). O balanço desta migração foi bastante positivo e acabou com os japoneses a aprenderem a mais elementar norma da boa vida em sociedade: saber dizer obrigado.
Os caranguejos feios e esfomeados e mal dispostos, que estão a retirar à upper class de Nova Iorque os prazeres do fim do verão, podiam, tanto quanto se sabe, ter invadido as praias de Massasuchetts ou de Dellaware ou da Virgínia do Sul. Nada na verdade se conhece sobre os seus últimos motivos. Se calhar até desceram ao Maine na perspectiva de deglutirem saborosos dedos de crianças humanas, o que é um projecto gastronómico tão apelativo – e substantivo – como qualquer outro, principalmente quando és um caranguejo da Nova Escócia com o estômago a dar horas.
Isto está tudo muito bem e é da natureza das coisas. O que não é da natureza das coisas é o tratamento noticioso que se dá a esta não notícia: é claro que se os caranguejos mutantes estão a infestar as praias do Maine a culpa tem que ser das alterações climáticas (agora já não se diz aquecimento global). E do respectivo aumento da temperatura das águas do Atlântico norte. É claro. Nem interessa de facto se as águas estão factualmente a ficar mais quentes ou se os caranguejos migrariam na mesma com águas mais frias. As alterações climáticas são responsáveis pelo apocalipse zombie e pela incompetência da Protecção Civil. São responsáveis por todas as injustiças, fomes, guerras, apogeus e quedas, martírios e genocídos da vil história da humanidade. Se o vinho não presta a culpa é das alterações climáticas. Se a alface tem lesma, se a fruta tem bicho, se a batata não tem sabor e a carne do lombo é difícil de mastigar, a culpa é das alterações climáticas. Se o teu telemóvel avaria, se o carro fica sem bateria, já se sabe: são os efeitos nefastos das alterações climáticas (aquelas alegadamente produzidas pela actividade humana, porque as outras não existem).
E se assim é, que raio, as alterações climáticas têm que ser obrigatoriamente a razão maior da migração do infame crustáceo.
É de facto e até provável que os monstruosos caranguejos tenham viajado até ao Maine porque o clima lhes agrada mais aqui do que mais a norte. Mas isso é completamente normal. E a migração é tão recente que não há estudos, não há prova, não há argumento científico que possa justificar a afirmação.
Mas sem essa afirmação, a não notícia não seria noticiada. E é assim que funciona o jornalismo.
O pior é que, pelos vistos, é também assim que está a funcionar a ciência.
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