O marroquino que é fiel aos seus ideais.
Conta Chistopher Otten, no seu “Franco’s International Brigades – Adventurers, Fascists and Chistian Crusaders In The Spanish Civil War”, um episódio em que um oficial republicano interroga um prisioneiro sobre que raio é que ele estava a fazer em Espanha, combatendo numa guerra que não era a dele. O marroquino respondeu, com dignidade, que sempre lutara pelos seus ideais e que eram esses ideais que o levaram a alistar-se para travar a guerra civil espanhola. O comandante ficou de tal forma impressionado pela óbvia sinceridade e honorabilidade do cativo que em vez de o mandar fuzilar, colocou-o a trabalhar na cozinha de campanha.
Mais tarde nesse dia, enquanto inspeccionava a linha da frente ficou estupefacto por ver o marroquino com uma espingarda nas mãos, disparando sobre as posições rebeldes. O oficial arrastou-o para fora da trincheira e acusou-o de lutar por Franco num dia e contra Franco no outro: “Afinal, não tens ideais nenhuns!”
“Os meus ideais foram e são sempre os mesmos,” respondeu-lhe o marroquino no mesmo tom digno e frontal, “Matar espanhóis.”
A sobranceria não resiste à artilharia.
Em “O Império Imóvel ou o Choque dos Mundos” Alain Peyrefite conta a história da primeira embaixada britânica enviada ao Império do Meio. É o relato de um fracasso tremendo, claro. Ingleses e chineses recusam entender-se. Esforçam-se até por se desentenderem. Do protocolo à geo-estratégia, há um mundo que os divide. Até porque os chineses rejeitam completamente as pretensões imperiais do esforço diplomático britânico, porque não conseguem simplesmente imaginar que uma nação bárbara e tão mais insignificante na escala geográfica, demográfica e ontológica das coisas, possa realmente representar uma ameaça ao império estático e eterno por natureza das coisas e vontade dos deuses.
Umas poucas décadas mais tarde, vão aprender, não pela diplomacia mas pela eficácia dos canhões, que um império imóvel não tem grandeza. E foram humilhados por uma só frota britânica, que subjugou Pequim à primeira tentativa. Desse erro, velho de 230 anos, só agora estão a recuperar.
Para onde vão os guarda-chuvas?
No romance com o mesmo título, mosaico orientalista e anacrónico, espécie de mil e uma noites ao contrário, tapete voador que faz rir e faz chorar e que nos redime dos dias de chuva, Afonso Cruz formula uma das interrogações mais profundas da história pós-industrial:
– A minha mãe, Sr. Elahi, interrogava-se para onde vão os guarda-chuvas. Sempre que ela saía à rua, perdia um. E durante toda a sua vida nunca encontrou nenhum. Para onde iriam os guarda-chuvas? Eu ouvia-a interrogar-se tantas vezes, que aquele mistério, tão insondável, teria de ser explicado. Quando era jovem pensei que haveria um país, talvez um monte sagrado, para onde iam os guarda-chuvas todos. E os pares perdidos de meias e de luvas. E a nossa infância e os nossos antepassados. E também os brinquedos de lata com que brincávamos. E os nossos amigos que desapareceram debaixo das bombas. Haveriam de estar todos num país distante, cheio de objectos perdidos. Então, nessa altura da minha vida, era ainda um adolescente, decidi ser padre. Precisava de saber para onde vão os guarda-chuvas.
– E já sabe? – perguntou Fazal Elahi.
– Não faço a mais pequena ideia, mas tenho fé de encontrar um dia a minha mãe, cheia de guarda-chuvas à sua volta.
Uma ponte real sobre o Drina literário.
Num dos seus mais belos romances, “A Ponte Sobre o Drina”, o Nobel da literatura Ivo Andric faz de uma ponte a personagem central da narrativa. Uma ponte fronteira e uma ponte união, uma ponte que separa impérios e que congrega religiões. Uma ponte sobre o rio e sobre o tempo e sobre o ódios dos homens. Um ponte que encerra fantasmas e grita por vinganças. Uma ponte que chora e que se desmorona. Uma ponte que é um alvo e uma conquista, que traz o aviso de perigos e a promessa de reforços. Agora otomana e depois austro-húngara, um dia bósnia e sérvia na manhã seguinte, fiel pelos séculos e herege de repente, sacrossanta e comunista, é uma ponte que faz trânsito para a redenção ou que conduz ao inferno, que salva e condena mas, sobretudo, é uma ponte que existe. Que é concreta. Que não é uma metáfora.
Mandada levantar no Século XVI pelo vizir Mehmed Pasha Sokolović, foi desenhada por Mimar Koca Sinan, um dos mais célebres arquitectos do Império Otomano e é um clássico da sua época, atravessando com rara elegância as águas temperamentais do Rio Drina. Os seus 11 harmoniosos arcos servem ainda hoje a cidade de Višegrad, no Leste da Bósnia.
A Ponte Mehmed Pasha Sokolović sobreviveu a quatrocentos invernos e resistiu à queda de dois impérios só para ter que suportar o insuportável século XX: sofreu na sua pele de pedra os ferimentos das duas grandes guerras e foi palco para chacinas no conflito dos Balcãs. A Ponte está ali, ainda. Testemunha de crimes e cúmplice de revoluções. Está viva, mostra as suas cicatrizes mas eleva-se inteira, artéria maior no coração de um continente exausto.
A aflição do jovem Proust.
Depois de André Gide ter exposto a homossexualidade de Proust, através das cartas que este lhe escrevia, chegou agora o momento de sabermos que o famoso autor do Tempo Perdido, enquanto adolescente, era um onanista incorrigível, também por evidência postal. A carta escrita em grande aflição, ao seu avô, foi recentemente publicada. E é de uma comicidade trágica. Realmente, já não se pode estar morto.
8 de maio de 1888
Quinta-feira à noite.
Meu querido avô,
Apelo à sua bondade a quantia de 13 francos que eu queria pedir ao Sr. Nathan, mas que a mamã prefere que eu lhe peça. Aqui está o porquê. Eu precisava tanto de ver se uma mulher poderia parar com meu horrível hábito de masturbação que o papá me deu 10 francos para ir a um bordel. Mas primeiro, na minha agitação, quebrei um penico: 3 francos; então, ainda agitado, não consegui copular. Então aqui estou eu, de volta à estaca zero, esperando e exasperando por 10 francos para me aliviar, mais 3 francos para o pote. Mas não me atrevo a pedir mais dinheiro ao papá e, por isso, esperava que o avô pudesse vir em meu auxílio numa circunstância que, como sabe, não é apenas excepcional, mas também única. Não pode acontecer duas vezes numa vida que uma pessoa esteja tão ansiosa para foder.
Beijo-o mil vezes e atrevo-me a agradecer antecipadamente.
Estarei em casa amanhã de manhã às 11h. Se está sensibilizado com a minha situação e puder responder às minhas orações, espero encontrá-lo com a quantia. Independentemente disso, obrigado pela sua decisão que eu sei que virá de um lugar de amizade.
Marcel.
O método científico de Honoré de Balzac, depois de 17 garrafas de vinho.
Mais interessante pela viagem aos costumes e às mentalidades do Século XIX do que propriamente sobre a opinião que o autor tem em relação aos temas a que se propõe, “Sobre o Café, o Tabaco e o Álcool” é um divertido ensaio de Balzac, recheado de pseudo-ciência positivista e de conceitos espúrios, que o ensaísta utiliza para sustentar a ideia de que as três substâncias em causa são altamente nocivas para o ser humano. O momento apoteótico deste ensaio surge quando, depois de beber, na companhia de um amigo, dezassete garrafas de vinho (!), acaba por ficar mal disposto ao rematar a épica bebedeira com um charuto, partindo deste magnífica prova laboratorial para demonstrar os malefícios do tabaco.
Helena no Egipto ou a Guerra de Troia segundo Heródoto.
Um dos grandes mistérios da Ilíada é este: cercados pelo maior exército alguma vez visto até aí, porque não entregam os troianos Helena a Menelau, evitando assim dez anos de cerco, a morte do amado Heitor e a aniquilação da sua cidade e da sua cultura? Afinal, Todos sabiam que Paris tinha prevaricado, ao roubar a mulher de um rei grego, ainda por cima irmão de Agamemnon, o poderoso rei de Micenas que nas fileiras das suas forças militares contava, mesmo que relutantemente, com o semidivino Aquiles, o mais temível guerreiro da antiguidade. Todos sabiam que a ira de Menelau e as exigências de Agamemnon eram justas. Todos sabiam que a teimosia era uma infâmia que resultaria em tragédia. Ainda assim, não entregaram a bela mulher ao seu legítimo marido espartano e sacrificaram tudo por uma estranha, que tinha sido raptada por um dos mais novos filhos de Príamo (o rei troiano que tinha pelo menos 19), ainda por cima só recentemente aceite na corte, já que, por maus auspícios à altura do seu nascimento, tinha sido entregue enquanto neonato aos cuidados da família de um humilde pastor.
Ora Heródoto (485-425 a.C.), que a par de Tucídides consta como um dos primeiros historiadores da cultura ocidental, relata na sua monumental obra “As Histórias” uma versão da Guerra de Troia alternativa à homérica: depois de Paris ter fugido de Esparta com Helena, uma tempestade arrasta-os para o Egipto. Aí denunciados os seus crimes, pelos próprios servos, ao rei Proteu, Paris é obrigado por volição régia a deixar Helena na corte egípcia, para que seja posteriormente resgatada pelo marido legítimo. Paris regressa portanto a Troia sem a sua amada. Assim sendo, o desgraçado destino de Troia é incontornável e, neste caso sim, compreensível: os gregos estão convencidos que Príamo esconde de facto Helena na sua cidade, mas os Troianos não têm maneira de entregar a Menelau a sua mulher porque ela nunca ali chegou. Não há solução para além da guerra.
Heródoto argumenta que a adulteração dos factos pela tradição homérica resulta apenas e afinal da carga dramática e do enriquecimento da narrativa que a presença de Helena em Troia garante. Afinal, Homero escreve ficção, enquanto Heródoto escreve História.
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