O sorriso do flamingo e o azar do louva-a-deus.
“O Sorriso do Flamingo”, da autoria de Stephen Jay Gould, porventura o mais célebre dos biólogos da segunda metade do século XX, é uma colectânea de ensaios saborosos e interessantíssimos sobre os mecanismos da evolução na natureza. O ensaio que dá título a este livro trata de uma daquelas anomalias que deliciam os biólogos. Por que razão tem o bico do flamingo um formato diferente dos bicos de outras aves, com as mandíbulas superior e inferior aparentemente invertidas? A resposta é simples: os flamingos alimentam-se com a cabeça virada para baixo. Gould usa este detalhe anatómico como ponto de partida para discutir os papéis da forma e da função na história da evolução, defendendo dentro desse espírito as tão caluniadas fêmeas do louva-a-deus e da viúva-negra das acusações de canibalismo sexual, com menos sucesso do que provavelmente expectaria, porque há passagens absolutamente arrepiantes nesse complicado argumentário, entre as quais esta, sobre a cópula dos louva-a-deus:
Há alguns dias levei um macho de Mantis Carolina a um amigo que possuía uma fêmea solitária como animal de estimação. Uma vez colocados no mesmo boião, o macho, alarmado, tentou escapar. Em poucos minutos a fêmea conseguiu imobilizá-lo. Ela começou por lhe arrancar o tarso anterior esquerdo e devorou a tíbia e o fémur. Em seguida arrancou-lhe o olho esquerdo. Neste momento, o macho pareceu aperceber-se da proximidade de um insecto do sexo oposto e iniciou uma série de vãs tentativas de acasalar. A fêmea, entretanto, comeu-lhe a pata anterior direita e em seguida decapitou-o completamente, devorando-lhe a cabeça e abrindo caminho para o interior do tórax. Apenas se deteve para repousar quando já havia comido todo o tórax do macho, à excepção de 3mm. Tudo se passou enquanto o macho tentava obter entrada nas válvulas, o que acabou por conseguir, uma vez que a fêmea voluntariamente a isso se dispôs, e o acasalamento consumou-se. Ela permaneceu sossegada durante 4 horas, enquanto os restos do macho, ocasionalmente, davam sinais de vida por meio de movimentos de um dos restantes tarsos. Na manhã seguinte, a fêmea tinha-se desembaraçado completamente do seu esposo e dele só sobraram as asas.
Mais adiante, não se percebe bem se o autor parece desculpar o canibalismo dos colonos holandeses à luz dos seus preconceitos racistas ou desculpar o seu racismo em função das suas preferências gastronómicas:
No princípio do século XIX a equiparação dos Bosquímanos aos animais tornou-se tão arreigada que, durante uma caçada organizada por colonos holandeses, eles caçaram e comeram um bosquímano, pensando que se tratava do equivalente africano do orangotango malaio.
A perigosidade da Estatística em Mecânica Quântica.
Os que dedicam a vida a aprofundar esta disciplina mostram trágica tendência para morrerem mais cedo do que deviam, e pela suas próprias mãos. Portanto, o melhor é abordar o assunto com algumas cautelas ou a mais avisada das introduções na história das sebentas académicas:
Sobre o potencial nocivo da estupidez.
“As Leis Fundamentais da Estupidez Humana” de Carlo Cipolla constituem um brilhante e sintético tratado que explica lindamente o que é um estúpido e porque é que existem tantos e como é quase impossível às pessoas que não são estúpidas viverem sem o perigoso e altamente destrutivo impacto das que o são. O ensaio, que assume algum rigor científico (dentro daquilo que é possível em ciências sociais) demonstra e postula cinco leis fundamentais, a saber:
1 – Cada um de nós subestima sempre e inevitavelmente o número de indivíduos estúpidos em circulação.
2 – A probabilidade de uma pessoa ser estúpida é independente de qualquer outra característica dessa mesma pessoa.
3 – Uma pessoa estúpida é aquela que causa dano a outra pessoa ou grupo de pessoas, sem que disso resulte alguma vantagem para si, ou podendo até vir a sofrer um prejuízo.
4 – As pessoas não estúpidas desvalorizam sempre o potencial nocivo das pessoas estúpidas. Em particular, os não estúpidos esquecem-se constantemente que, em qualquer momento, lugar e situação, tratar e / ou associar-se com indivíduos estúpidos revela-se infalivelmente um erro que se paga muito caro.
5 – A pessoa estúpida é o tipo de pessoa mais perigosa que existe.
Como Newton devorou Leibniz ao pequeno-almoço.
Quem é o pai do Cálculo, Newton ou Leibniz? Não interessa realmente. Interessa o que fica para a história e para a história fica que o Cálculo foi inventado (ou descoberto?) pelo génio matemático de Newton, que Leibniz se limitou a plagiar. Quem é que escreveu a história neste caso? A Real Academia das Ciências. E quem é que era o presidente da Real Academia das Ciências quando Leibniz é acusado de plagiar Isaac Newton? Isaac Newton. Ao sábio que ambiciona um lugar na posteridade, não lhe basta ser sábio. Tem que fazer política.
Todos contra todos na Guerra Civil Espanhola.
As guerras civis destacam-se quase invariavelmente por serem extremamente sangrentas e, claro, autofágicas, mas a Guerra Civil Espanhola concorre com a americana para o prémio do conflito fratricida mais virulento da história universal do ódio. No seu “The Battle for Spain – The Spanish Civil War 1936-39”, Antony Beevor descreve os dolorosos 4 anos em que os espanhóis se atiraram uns aos outros com ganas de extermínio, numa espécie de ensaio bárbaro da guerra mundial que viria a seguir. De um lado tanto como do outro, o mais incrível desdém pela vida humana triunfou loucamente. Tanto mais, que as facções inimigas teimaram em consumir energias imensas e vidas inumeráveis em intrigas intestinas que acabavam inevitavelmente na rotina dos pelotões de fuzilamento. A páginas tantas, Beevor informa o leitor que no lado republicano das barricadas, 2 em cada 10 metralhadoras pesadas eram colocadas na retaguarda das linhas da frente. Para liquidar desertores ou aqueles que, tendo sido alistados mais por convicção ideológica do que por profissionalismo militar, fugiam em pânico nos primeiros momentos das batalhas.
Misérias e vergonhas da libertação de Paris.
Noutro brilhante manual de história do século XX da autoria de Beevor, “Paris Após a Libertação 1944 -19492”, Retrato nu e cru da França na altura da libertação, ficamos a saber que a forma como se determinou quem era um bom francês e quem era um mau francês nestes anos do Governo Provisório e da Quarta República dependeu sempre muito das forças que exerciam o poder, e durante a grata leitura da obra somos familiarizados com detalhes bem sugestivos da praxis libertadora, como por exemplo: os julgamentos a que se sujeitaram os colaboracionistas tinham como jurados elementos da resistência e familiares das vítimas da ocupação nazi. Os procedimentos do tribunal eram constantemente interrompidos por membros do júri que gritavam ameaças e insultos aos acusados.
Sobre os personagens principais deste truculento processo, destaca-se, claro, o carácter arrogante e paradoxal de Charles de Gaulle, que no célebre discurso da libertação, proferido na noite de 25 de Agosto de 1944 no l’Hôtel de Ville, não foi capaz de uma palavra de agradecimento aos aliados e que o autor define desta satírica maneira:
“O homem que sem dúvida amava a França, mas não os franceses!”
Crasso e o escrúpulo paisagístico.
O epílogo da revolta dos escravos liderada por Espártaco, no séc. I a.C., é sangrento e teatral. Para não ficar atrás da glória de Pompeu, que já tinha morto para lá de uns seis mil rebeldes, Marco Licínio Crasso, o mais rico de entre os romanos, mobilizou um poderoso exército e perseguiu os cinco mil escravos que tinham sobrevivido à chacina do seu rival e que na verdade já não constituíam qualquer ameaça militar. Depois de capturados os vencidos, Crasso, que tinha paixão pelas artes cenográficas, ordenou que fossem crucificados e distribuídos, com rigor métrico, pela Via Apia. Quem se dirigisse a Roma por esta estrada, percorria os últimos seis quilómetros da viagem entre cruzes ensanguentadas e cadáveres em putrefacção. Roma não perdoa.
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