Luciano de Samósata (125 – 181) nasceu em Samósata, na província romana da Síria, e morreu em Alexandria, Egipto. De certo, pouca coisa se sabe a respeito de sua vida, mas o apogeu de sua actividade literária decorreu entre 161 e 180 d.C., durante o reinado de Marco Aurélio.
De origem possivelmente semita, Luciano escreveu em grego e tornou-se conhecido pelos seus diálogos satíricos. Fazendo recurso a um humor ácido e acutilante, criticou impiedosamente os costumes e a sociedade da sua época. Redescoberto no Renascimento, influenciou importantes escritores ocidentais como Erasmo, Rabelais, Quevedo, Swift, Voltaire e Machado de Assis.
Foram-lhe atribuídas mais de 80 obras, conhecidas em conjunto por corpus lucianeum, dentre as quais pelo menos uma dezena é apócrifa. As mais conhecidas são “O Amigo da Mentira”, “Diálogo dos Mortos”, “Leilão de Vidas”, “O Burro Lúcio”, “Hermotimo”, “A Passagem de Peregrino e os Dois Amores” e “Uma História Verdadeira”, a primeira novela de ficção científica de que temos registo. Nela, Luciano relata uma viagem à Lua, que inclui contacto com seres extra-terrestres e antecipa diversos outros temas popularizados durante o século XX pela literatura fantástica.
“Uma História Verdadeira” é um romance extravagante que procura ridicularizar mitos e fábulas antigas, a maior parte decorrente da tradição oral, particularmente aquelas que apresentavam acontecimentos fantásticos ou míticos como se fossem verdadeiros. É a mais antiga obra de ficção conhecida a incluir viagens ao espaço exterior, formas de vida alienígenas e guerras interplanetárias. Tem sido descrita como o primeiro texto que poderá ser classificado como ficção científica, embora a obra não se enquadre nos géneros literários típicos: o seu intrincado e multidimensional enredo e os seus estranhos personagens têm sido interpretados como pertencentes a vários géneros que também incluem a narrativa épica, o romance picaresco e a sátira.
O romance inicia-se com a advertência de que a história não é de todo “verdadeira”, e que tudo nela é uma mentira completa. A acção começa com Luciano e os seus companheiros de viagem passando para lá das Colunas de Hércules (hoje, Estreito de Gibraltar), que na cultura helénica da altura simbolizavam o fim do mundo conhecido. Atormentados por uma tempestade, chegam a uma ilha com um rio de vinho cheio de peixes e ursos, um marco indicando que Hércules e Dionísio viajaram até este ponto, e árvores que se parecem com mulheres. Pouco depois de deixarem a ilha são apanhados por um vórtice e transportados para a Lua, onde se vêm envolvidos numa guerra em grande escala entre Endymion, o rei da Lua, e Phaethon, o rei do Sol, que se trava pela colonização da Estrela da Manhã. Ambos os exércitos incluem bizarras formas híbridas de vida. Os exércitos do Sol ganham a guerra e ambas as partes chegam a um acordo de paz.
Após o regresso à Terra, os aventureiros são engolidos por uma baleia com 320 km de comprimento, em cuja barriga descobrem uma variedade de peixes, contra os quais fazem guerra e triunfam. Matam a baleia ao fazer deflagrar uma fogueira no seu interior e escapam-se pela boca do cetáceo. De seguida, encontram, entre outras singularidades, um mar de leite e uma ilha de queijo. Na Ilha dos Abençoados, Lucian encontra os heróis da Guerra de Tróia, entre outros seres e animais míticos, bem como Homero e Pitágoras. Encontram também os pecadores a serem castigados, sendo os piores deles aqueles que tinham escrito livros com mentiras e fantasias, incluindo Heródoto, o primeiro historiador do Ocidente. Após deixarem a Ilha do Beato, entregam uma carta endereçada por Ulisses à ninfa Calipso, em que o herói homérico confessa o seu arrependimento por não ter ficado com ela na Ilha de Ogígia, e aí viver eternamente. Mais à frente, os aventureiros descobrem um abismo no oceano, mas acabam por navegar à sua volta, acabando por encontrar um continente virgem, que decidem explorar. O livro termina abruptamente com Luciano afirmando que as suas futuras aventuras serão descritas em livros posteriores, uma promessa que é a maior mentira de todas nesta História Verdadeira, porque o autor não escreveu qualquer sequela.
Luciano pretendia que a sua narrativa fosse uma crítica a fontes do seu tempo e mais antigas que contavam histórias rocambolescas e fantasistas como verdadeiras. Como é referido pelo classicista B.P. Reardon:
“Trata-se acima de tudo, de uma paródia dirigida aos mentirosos literários como Homero e Heródoto.”
Sobre o carácter fantástico da sua própria história, Luciano afirma que:
“Escrevo sobre assuntos que não vi, nem experimentei, nem ouvi por relatos alheios, nem é possível terem alguma vez sucedido. Que nenhum homem lhes dê, por conseguinte, qualquer crédito.”
Ele justifica o título argumentando que a sua é a única história mitológica verdadeira alguma vez escrita, na medida em que admite que é tudo mentira.
São inúmeros os temas típicos de ficção científica que aparecem nesta delirante e iniciática obra: a viajem para o espaço sideral, o encontro com formas de vida alienígenas, incluindo a experiência de um primeiro contacto, a guerra interplanetária e a colonização de planetas, a atmosfera artificial e o ar líquido, os gigantismos e as diferenças de escala, a robótica, a existência de um conjunto de leis ‘físicas’ alternativas e o desejo explícito do protagonista de exploração e aventura.
Se a Utopia e os seus rivais derivam de Platão, não há um único viajante imaginário que não seja modelado por Luciano. “Uma Verdadeira História” foi, com efeito, o início de uma nova literatura. Não só a sua estrutura foi copiada, não só o seu hábito de atribuir nomes fantásticos a locais e personagens foi copiosamente imitado, como os discípulos, tal como o mestre, conduziram também as suas viagens para o propósito da sátira. Foi Rabelais quem fez a primeira adaptação, pois, enquanto a descida de Epistemon ao Inferno foi certamente sugerida por Luciano, a viagem de Pantagruel é claramente mais uma Verdadeira História; e Lanternland, o lar dos Lychnobii, é apenas Lychnopolis, a própria Cidade das Luzes de Luciano. O século XVII descobriu outro imitador em Cyrano de Bergerac, cuja “Tepid Voyage Dans La Lune” é interessante apenas porque é um elo da cadeia que une Luciano com Swift.
“As Viagens de Gulliver”, incomparavelmente o mais notável descendente de “A Verdadeira História” são transparentes na forma como Swift seguiu o seu Luciano, na improbabilidade da sua narrativa tanto como na profundidade da sua sátira. Tal como Luciano, Swift professou um desprezo incontido por filósofos e matemáticos; ao contrário de Luciano, que pretendeu apenas satirizar a literatura fantástica que se fazia passar por realista, fez da sua viagem imaginária a ocasião para uma crítica feroz a reis e políticos. Mas a narrativa é tão magistral, tão convincente sobre a realidade de Lilliput e Brobdignag, que Gulliver mantém o seu ascendente sobre a nossa imaginação, embora os alvos e o significado da sua sátira há muito que foram esquecidos.
Catorze anos depois do trabalho de Swift ter surpreendido o mundo, Holberg espantou a inteligência da Dinamarca com uma sátira construída à luz da novela de Luciano. Em “As Viagens Subterrâneas de Niels Klim” existem árvores ambulantes e muitas outras invenções que provam a dívida de Holberg para com o autor de “A Verdadeira História”. Outros equivalentes modernos, combinando ficção científica e paródia, podem ser encontrados no “Micromégas” de Voltaire e nas obras de Douglas Adams. E se o género da novela fantástica como sátira está morto hoje, é porque até os humoristas e críticos mais intrépidos dos tempos que correm hesitariam em seguir por estes caminhos criativamente arriscados.
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Ilustrações de William Strang, J. B. Clark e Aubrey Beardsley
Novela disponível em Inglês no Project Gutenberg.
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