“Proust would only talk about duchesses, while I was more concerned with their chambermaids.”
James Joyce
Paris, 15 de Maio de 1922 e está-se mesmo a ver: de um lado da mesa, Marcel Proust, hirto e cordato e muito bem protegido contra os rigores da sua hipocondria, por um casaco de peles de aristocrata que lhe custou 15 mil francos do dinheiro do pai. Do outro lado, James Joyce, na arrogância burguesa de não estar minimamente vestido para aquilo.
Aquilo é um jantar que podia muito bem ser contado numa frase de seiscentas e setenta e duas palavras, maravilhosamente prosadas, do Tempo Perdido. Aquilo é um jantar que não cabia entre os dias 15 e 16 de junho de 1904, na verdade de Leopold Bloom.
O Proust pergunta-lhe se conhece o Visconde Disto e o Marquês Daquilo: o Joyce dá-se, pela negativa, ao monossílabo. É o jantar do não, não, não e não, não conheço esses.
O Joyce bebe vinho como um camelo no oásis, para calar o embaraço do fato em vez do fraque. Para esconder a irritação de não conhecer entre a aristocracia francesa, mais que a criada de quarto de um velho e obscuro duque normando.
Ainda assim – para escândalo das musas e indignação dos eruditos – é o sacana do irlandês, é o impertinente filho de comerciantes, é o mal criado da literatura que se enfia na puerilidade do taxi fidalgo, quando, no fim da equívoca soirée, o aborrecimento cede à curiosidade. Mas Proust, que convida os amigos para a célebre ceia em sua casa, apela gentilmente ao taxista que prolongue a corrida e leve o Joyce de volta até ao inferno de que é originário (o inferno é um sítio onde residem os infelizes que não conhecem o Visconde Disto e o Marquês Daquilo).
Está-se mesmo a ver: O Joyce dormiu mal essa noite. E o Proust, sempre tão atencioso com os outros, sempre tão sensível com a susceptibildiade dos outros, sempre tão interessado na vida dos outros, sempre tão preocupado em respeitar e alimentar a zona de conforto dos outros; muito simplesmente, por uma vez, deve ter considerado que o rival não merecia de todo o investimento da sua cortesia.
Afinal, o Joyce até podia ser um modernista do escafandro; um imortal. Mas por Deus, que fazer, que dizer, que conversar com alguém que não conhece o Visconde Disto? Que nunca privou com o Marquês Daquilo?
Está-se mesmo a ver: O Proust dormiu bem essa noite.
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