
Um dos marcos fundamentais na Carreira de Johnny Cash (1932-2003), que vai ficar, sem sombra da mais pequena dúvida, para a história da música popular, é aquele em que grava, nos últimos meses da sua vida, uma versão de “Hurt”, um original dos Nine Inch Nails. O tema, levado à perfeição estética e ao clímax dramático pelo trovador de Nashville, é de uma beleza transcendental. E a obra cinemática que à volta dessa ópera máxima foi montada não fica a dever nada à inspirada interpretação. O filme reforça a esmagadora onda emocional do tema, acompanhando o seu terrível crescendo, que deixa o espectador num infeliz contentamento visceral, desespero glorioso que invade o corpo todo. Trata-se, muito simplesmente, de um momento de eternidade.
Comparado com esta versão olímpica de “Hurt”, até o “My Way” de Frank Sinatra parece uma canção de ninar.
Mas, além do genial desempenho de Cash, houve várias forças criativas que se uniram para tornar possível a obra prima áudio-visual. Profissionais da indústria da música, como Trent Reznor, Rick Rubin e Mark Romanek, cumpriram papéis cruciais e esta é a história de como tudo foi possível.
O tema original dos Nine Inch Nails.
“Hurt” foi escrito por Trent Reznor, da banda de rock industrial Nine Inch Nails e foi assim descrita por ele:
“Um tema que escrevi no meu quarto num momento negro da minha vida”.
A música foi lançada primeiro como single promocional e depois integrada no álbum de 1994 “Downward Spiral”.
Foi realizado um vídeo para promover o tema, que se baseava numa performance ao vivo, encenada sob uma tela com imagens viscerais e decadentes, muito próprias do imaginário da banda. O tom deprimente e o tempo arrastado da interpretação vão chocar vivamente com a versão posterior de Johnny Cash.
Johnny Cash, Rick Rubin e uma versão que soava errada.
Cash tinha vindo a trabalhar com o produtor Rick Rubin desde o primeiro da sua série de álbuns “americanos”, de grande sucesso. Embora se tratasse de uma parceria improvável à superfície, Cash e Rubin formavam uma sólida dupla criativa, já que o produtor tinha convencido o rei do country a sair de sua área de conforto, não só nos trabalhos de estúdio como também nas actuações ao vivo, de que a memorável presença no Glastonbury Festival de 1994 será um eloquente testemunho.
Enquanto trabalhavam no quarto álbum que produziram juntos, e que seria lançado com o título “The Man Comes Around”, Rubin continuou a encorajar Cash a arriscar na selecção de material e foi sua a ideia de gravar uma versão de “Hurt”.
Trent Reznor era amigo de Rubin, mas quando o produtor lhe ligou para perguntar se Cash poderia fazer um cover do tema, Reznor sentiu-se lisonjeado, mas também se mostrou céptico quanto ao potencial artístico da ideia, embora acabasse por concordar, provavelmente porque não tinha como negar a solicitação de um personagem semi-divinho, de idade provecta, ainda por cima.
Fazendo uma pequena mudança no poema, ao substituir “coroa de merda” por “coroa de espinhos” (Reznor havia usado essa alternativa ele mesmo numa versão amigável para a rádio), Cash gravou a canção. Além de remover o palavrão, a mudança também teve o efeito de adicionar ao tema uma referência à crucificação, que seria explorada mais tarde no vídeo.
Reznor não ficou muito impressionado quando ouviu a gravação pela primeira vez e mais tarde confessou que nessa altura a versão lhe pareceu algo errada e estranha.
Um vídeo para a posteridade.
Mark Romanek foi o feliz eleito para materializar o vídeo da versão Cash. O realizador já tinha trabalhado com estrelas de primeiro firmamento como Michael Jackson, Madonna, Beck e Lenny Kravitz, e há algum tempo que implorava a Rubin por uma oportunidade de produzir um vídeo clip para o monstro sagrado do folk americano. Quando ouviu a gravação de “Hurt” ficou de tal forma siderado que se ofereceu para realizar o vídeo gratuitamente.
Mark quis capturar a essência da personalidade de Cash, usando imagens de arquivo do jovem cantor altivo e maior que a própria vida em contraste com o homem frágil e doente de 71 anos. Numa referência ao vídeo original dos Nine Inch Nails, entrecortou as sequências de Cash com imagens de naturezas mortas.
Grande parte das filmagens foram gravadas no museu “House of Cash” em Hendersonville, no Tennessee e as imagens referentes à juventude de Cash foram também encontradas pelo realizador na sala de arquivo desse espaço. O museu estava fechado há algum tempo e em avançado estado de abandono. O cenário inspirou Romanek a usar a casa como uma metáfora para o declínio da saúde e da vitalidade do intérprete. Johnny Cash concordou com o conceito, corroborando a sua reputação de artista corajoso, honesto e desassombrado.
Logo que acabou de editar o filme, Mark Romanek enviou-o para Trent Reznor. Reznor estava em gravações com Zack De La Rocha dos Rage Against the Machine e os dois ficaram de tal forma impressionados que tiveram que sair do estúdio para recuperar algum equilíbrio emocional. Sobre esse momento, que obliterou todas as reticências iniciais que mantinha sobre o projecto, Reznor confessou:
“Coloco o vídeo a tocar e uau… Comecei a chorar com aquela obra incrivelmente poderosa… Silêncio, arrepios… Uau. Senti-me como se tivesse acabado de perder uma namorada, porque a música tinha deixado de ser minha. Escrevi algumas palavras e notas no isolamento do meu quarto sobre o lugar sombrio e desesperado em que estava e de alguma forma acabaram por ser reinterpretadas por uma lenda da música, de uma geração e de um género radicalmente diferente, e ainda mantinham sinceridade e significado – diferente, mas igualmente puro.”
Morre o rei do Folk. “Hurt” fica como epitáfio.
Johnny Cash, “The Man In Black”, morreu a 12 de setembro de 2003, aos 71 anos, menos de 4 meses depois da sua mulher, June (que também surge no vídeo), ter falecido e apenas 7 meses depois de ter gravado o vídeo de “Hurt”.
Houve quem especulasse que a morte de Cash se deveu mais ao coração partido pelo desaparecimento de June do que à doença que o afligia. No entanto, June pediu ao marido que continuasse a trabalhar se ela morresse, e foi isso mesmo que ele fez nos seus últimos meses.
Foi enterrado ao lado de sua esposa em Hendersonville Memory Gardens, não muito longe de sua casa no Tennessee.
“Hurt” tornou-se, naturalmente, parte do seu legado de glórias e o seu epitáfio oficioso.
I hurt myself today
To see if I still feel
I focus on the pain
The only thing that’s real
The needle tears a hole
The old familiar sting
Try to kill it all away
But I remember, everythingWhat have I become
My sweetest friend
Everyone I know,
goes away
In the end
And you could have it all
My empire of dirt
I will let you down
I will make you hurtI wear this crown of thorns
Upon my liar’s chair
Full of broken thoughts
I cannot repair
Beneath the stains of time
The feelings disappear
You are someone else
I am still right hereWhat have I become
My sweetest friend
Everyone I know
goes away
In the end
And you could have it all
My empire of dirt
I will let you down
I will make you hurtIf I could start again
A million miles away
I would keep myself
I would find a way
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