À partida, uma Vuelta em aberto.

Seria impossível não ficar em pulgas com a lista de participantes na Vuelta deste ano.

Como candidatos ao pódio final, tínhamos “só” Primož Roglic (detentor do título), Remco Evenepoel, Jai Hindley (que tinha ganho o Giro deste ano), Simon Yates (que já tinha ganhou a Vuelta, em 2018), Enric Mas (duas vezes segundo na Vuelta) e quatro corredores da Ineos – Richard Carapaz (campeão olímpico), Geogegan Hart (ganhou o Giro em 2020), Pavel Sivakov e Carlos Rodríguez, sendo certo que ia ser complicado para a direcção desportiva britânica gerir esta colecção de estrelas.

Com algum optimismo, ainda cabiam nesta lista João Almeida, Mikel Landa e Miguel Ángel López. Eram doze cães a um osso.

E isto já para não falar noutros grandes ciclistas que estiveram presentes nesta concorrida edição, como Vincenzo Nibali e Alejandro Valverde (que terminava aqui a sua magnífica e interminável carreira), Chris Froome e Nairo Quintana (que já ganharam a prova), Julian Alaphilippe, Brandon Mcnulty, Marc Soler, Alessandro DiMarchi, Hugh Carty e etc., porque a lista estava a abarrotar de gente que poderia animar loucamente a competição.

 

Remco faz o que gosta: atacar.

Depois de um prólogo na Holanda com um contrarrelógio por equipas e duas etapas planas, mais outras duas corridas já em território espanhol e mais ou menos mornas, a sexta etapa da Vuelta, a primeira com uma chegada em alto que permitia fazer diferenças entre os favoritos, mostrou que Remco Evenepoel assumia declaradamrnte a sua candidatura à vitória final, arrumando na última escalada com todos os adversários, à excepção de Enric Mas, que o acompanhou na jornada, apesar de nem por um momento ter passado à frente do belga (o espanhol é conhecido por recusar a filosofia de ataque ou a solidariedade com adversários).

Remco, que está apenas a fazer a segunda grande volta da sua carreira, deixou o favorito Primož Roglič, que entretanto já tinha ganho uma etapa e que era, de entre as principais figuras da competição, o melhor posicionado na tabela, a um minuto de distância e ascendeu ao topo da classificação geral.

João Almeida, que estava a fazer uma Vuelta discreta e que, como quase sempre, pareceu nem sequer deter o estatuto de líder dentro da sua equipa, geriu bem o esforço, conseguindo chegar no grupo de Roglič, depois de, nos primeiros quilómetros da derradeira escalada se ter deixado atrasar significativamente. Estava já, porém e decorridas apenas seis etapas, a quase dois minutos de Evenepoel.

Na Ineos, percebemos que Richard Carapaz não vinha a Espanha para lutar pela classificação geral e que a equipa teria que encontrar um líder entre as suas muitas estrelas.

Era muito cedo para apostar num vencedor, com vários pretendentes ao pódio a manterem as suas ambições inalteradas, Mas Remco cedo deu bons sinais da sua forma e das suas intenções.

 

 

Um primeiro balanço, ao segundo dia de descanso.

No fim da primeira semana, os ciclistas tinham o seu segundo dia de descanso, que era bem merecido, porque a prova foi desenhada para ser extenuante e os atletas não se tinham poupado a olímpicos esforços. Na nona etapa, Remco Evenepoel assumiu-se como o primeiro candidato à vitória final, depois de, pela terceira vez consecutiva, deixar os seus adversários muito para trás, na curta mas impossível subida de Les Praeres.

No dia seguinte haveria contrarrelógio e Remco iria com certeza sair dessa etapa com uma liderança reforçada sobre os seus mais directos adversários, querendo isto dizer que o seu principal obstáculo à vitória seria… ele próprio. Esta era apenas a segunda grande volta que o craque belga cumpria e a primeira, o Giro de 2021, não correu nada bem. Haveria sempre uma possibilidade de não conseguir manter este nível de forma na terceira semana e ter um daqueles dias catastróficos em que podia perder a vantagem que tinha amealhado até ali.

Na discussão dos lugares imediatos estavam Enric Mas, Carlos Rodríguez e Juan Ayuso, três espanhóis que estão a ressuscitar o ciclismo do seu país e a contribuir para o entusiasmo com que a prova foi seguida pelos espanhóis. Mas com a alta montanha que ainda estava por cumprir, a classificação geral permanecia em aberto.

Quanto a Primož Roglič, que era terceiro, dava sinais que já ultrapassou o apogeu da sua carreira e talvez seja difícil voltar aos tempos em que ganhava competições de 3 semanas. Será sempre útil à Jumbo, claro, mas em competições diferentes ou como gregário de luxo nas provas mais exigentes. Já não tem a explosividade, a resistência e até a condição psicológica para fazer frente aos Evenepoel, aos Vingegaard e aos Pogačar deste mundo. O ciclismo profissional da actualidade é dominado por jovens extraordinariamente talentosos e Primož, que ainda por cima chegou tarde aos grandes palcos da modalidade (começou por ser atleta de saltos de esqui), já não é nenhum menino. É pena, porque quem gosta de ciclismo tem que apreciar as qualidades técnicas e humanas deste grande profissional.

A João Almeida acontecia uma situação curiosa: todos os dias perdia muito tempo para o top cinco da classificação, mas também subia lugares no top 10, sendo sétimo nesta altura. Em teoria, o contrarrelógio individual iria favorecê-lo, mas a sua forma, que não era de todo a ideal e o facto de ter um companheiro de equipa – Ayuso – na luta pelo pódio, não permitiam excessos de optimismo. É claro que Ayuso estava a fazer a sua primeira prova de 3 semanas e – nesse sentido – tudo podia acontecer. Mas neste momento da competição, uma posição final dentro do top 10 já seria um bom resultado.

Por esta altura, um ciclista surpreendia o mundo: o australiano Jay Vine, que tinha ganho no entretanto duas etapas de montanha, uma a seguir a outra, e que exibia uma forma espectacular. Praticamente desconhecido até aqui (a Alpecin descobriu-o porque foi em 2020 vencedor da Zwift Academy, uma competição de ciclismo virtual), Vine é um escalador impressionante, capaz de se bater com os melhores atletas da actualidade. Um nome a seguir na época de 2023.

 

A Vuelta em suspenso.

À etapa 14, a Vuelta relançou-se e ganhou uma nova carga emocional. Na íngreme subida a La Pandera, a Jumbo Visma forçou o ritmo, Roglič atacou e Evenepoel cedeu, pela primeira vez nesta edição da prova, perdendo quase um minuto para o esloveno e cerca de vinte segundos para Enric Mas, que ocupava agora a terceira posição na classificação geral.

Com a montanha que ainda havia para cumprir na etapa 15 e nas duas etapas mais inclinadas da terceira semana, o desfecho continuava incerto, já que a vantagem do belga sobre Primož Roglič era agora de apenas 1 minuto e 49 segundos.

João Almeida fazia a sua melhor etapa até agora, terminando em 4º lugar e ganhando tempo a adversários que lutavam pelos primeiros lugares da classificação geral, como Carlos Rodriguez, Wilco Kelderman, Tao Geoghegan Hart e o seu companheiro de equipa Juan Ayuso. Tirando partido também da desistência de Yates, o João era agora sétimo classificado e sendo certo que iria ser difícil chegar dentro dos primeiros cinco a Madrid, o português mostrou que se estava a aproximar da sua melhor forma à medida que a prova chegava ao seu último terço, o que é sempre bom sinal, para um voltista.

Esta etapa mostrava que Primož Roglič ainda tinha argumentos físicos e que as dúvidas sobre a capacidade de Remco aguentar uma prova de 3 semanas não eram assim tão destituídas. Mas um dia mau pode não querer dizer mais que isso e com a vantagem que ainda conservava, nada estava realmente perdido para o belga da Quick Step.

A etapa rainha que se avizinhava, corrida na Serra Nevada e que terminava numa subida monstruosa, com 22 quilómetros de extensão, podia definir melhor as coisas e a expectativa não podia ser maior.

No entretanto, Richard Carapaz, que tinha feito uma primeira metade da prova deveras discreta e cedo ficou muito atrasado na classificação geral, já tinha ganho duas etapas, esta 14ª incluída, provando a toda a gente, se necessário fosse, que é um ciclista de eleição.

 

O belga confirma o seu estatuto.

Como se previa, a etapa da Serra Nevada, que terminou no alto de Hoya de la Mora (uma subida interminável, com dezenas de quilómetros inclinados como o diabo), decidiu o vencedor da Vuelta que seria, salvo um falecimento inusitado, uma queda ou uma invasão de extra-terrestres, Remco Evenepoel.

Graças à desastrosa táctica da Jumbo Visma, que acabou por deixar Primož Roglič completamente sozinho nos quilómetros decisivos da subida, e à boa resposta que o Belga deu aos desafios da competição ciclística em altitude, Evenepoel perdeu apenas 25 segundos para o esloveno, que só foi capaz de atacar a mil metros do fim. Resultado: Primož ficou a 1:34 do líder, quando as etapas onde seria possível ganhar tempo significativo a Remco já tinham na verdade sido corridas.

Estranhou-se porém a imaturidade do líder da prova, que aceitou o convite de Roglič para liderar o grupo onde seguiam quando a única coisa que tinha a fazer era defender-se e correr sempre atrás do esloveno. Um dos problemas de Evenepoel é precisamente o seu excesso de confiança. Se não trata desta doença vai ter muitos desgostos na sua carreira. O líder da Quick Step acha-se o melhor do mundo, nitidamente. Mas não o é. Será um dos melhores cinco ciclistas do circuito profissional, sim, acabava de garantir a vitória na sua segunda prova de 3 semanas e tem um futuro sorridente, sem dúvida. Mas não vale a pena esticar mais as credenciais. Pelo menos por enquanto.

Para além de Enric Mas ter ganho algum tempo aos dois primeiros, cimentando o seu terceiro lugar e aproximando-se bastante de Roglič, e de Carlos Rodriguez ter descido um lugar na classificação, por troca com Ayuso, nada mais de significativo aconteceu nesta etapa rainha.

João Tomás, que surpreendentemente tinha feito um mau contrarrelógio (até se enganou no caminho a cinquenta metros da linha de chegada), entrou muito atrasado na última subida e teve, mais uma vez, que recuperar, chegando em 11º, mas mantendo o seu sétimo lugar que, nesta fase, seria a melhor posição a que realisticamente podia aspirar. Isto embora Thymen Arensman, que estava em oitavo, partisse no dia seguinte a apenas 5 segundos do português. O João iria ter que lutar até ao fim para conservar esta classificação que não era boa nem má. Era o que era.

 

Almeida ataca, Remco defende-se.

Numa das mais animadas e interessantes etapas desta Vuelta, a 18ª, João Almeida atacou e atacou de longe, respeitando uma boa iniciativa táctica da sua equipa, que finalmente se mostrou interessada em trabalhar para ele. Com o apoio de Ivo Oliveira (outro português da UAE presente na prova) primeiro e, depois, contando com uma prestação valente e generosa do seu colega Marc Soler, o ciclista português, que já tinha subido um lugar na classificação geral por desistência de Primož Roglič (que foi vítima de uma violenta queda no fim da etapa 16, quando tentava ganhar algum tempo a Remco Evenepoel), conseguiu resgatar cerca de 50 segundos a Carlos Rodríguez, o seu alvo imediato para subir ao top 5 e que foi também sinistrado por um malho brutal no início desta etapa, sofrendo a bom sofrer para conseguir terminá-la com o mínimo de tempo perdido possível.

João Almeida corre de trás para em frente em todos os sentidos: nas subidas, onde começa sempre atrasado e vai depois, ao seu ritmo, ultrapassando os adversários; como nos contra-relógios, onde a sua média horária sobe nos últimos quilómetros, como na classificação geral, que geralmente melhora quando as voltas de 3 semanas entram no seu último terço. Por esta altura era um dos ciclistas em melhor forma no já exausto pelotão.

Na luta pelos lugares cimeiros, Enric Mas, que tinha, para surpresa da audiência, optado nos últimos dias por um filosofia atacante, deu tudo o que pôde para apertar com Remco, mas o belga fez mais do que resistir, acabando por vencer a etapa e, contando com a bonificação de ter chegado em primeiro, somar mais 14 segundos à vantagem de quase dois minutos que já trazia sobre o rival espanhol.

As duas etapas de competição que faltavam (a de domingo é tradicionalmente neutralizada até ao momento em que os sprinters disputam as últimas centenas de metros na Gran Via madrilena) não permitiam ainda e no entanto total tranquilidade a Remco. Principalmente porque as dificuldades da etapa de sábado, a mais complicada da última semana da prova, com cinco subidas, três delas de primeira categoria, e chegada em alto, estava lá para impedir o champanhe precoce. Mas o belga tinha tudo para sair de Espanha com o seu primeiro título de voltista.

Almeida, dada a fragilizada condição física de Rodríguez e a desistência de Roglic, podia afinal subir a quinto na calssificação geral. Mas iria precisar de correr como correu neste dia, em pelo menos uma destas duas etapas.

Fosse como fosse, o final desta animada e disputada Vuelta prometia mais competição rasgadinha.

 

A Vuelta conhece o seu lógico epílogo.

A vigésima etapa da Vuelta, última a doer, prometia muito, considerando o seu perfil brutal, que incluía 5 subidas, 3 de primeira categoria, e porque as diferenças entre os 11 primeiros não eram assim tão grandes como isso.

Porém, um pelotão exausto e a falência do pensamento táctico de equipas como a Movistar (que está para o cilcismo como a Ferrari para a Formula 1: não acertam uma), a DSM e a Astana, anularam a possibilidade de fogo de artifício e a eventualidade de grandes tumultos na classificação geral.

A única alteração significativa foi, felizmente, a que João Almeida conseguiu desencantar, ultrapassando o debilitado mas valente Carlos Rodríguez para ocupar em definitivo uma posição nos cinco primeiros lugares da extenuante prova. O João acabou por fazer uma boa Vuelta, que podia ter sido bem melhor se a sua prestação na primeira metade da prova não fosse tão discreta. O ciclista português soma um quarto, um quinto e um sexto lugar, mais a desistência no Giro deste ano, nas 4 voltas de três semanas que correu na sua carreira, o que não deixa de ser um excelente registo. Neste difícil dia de sobe e desce constante, fez uma etapa exuberante, acompanhando sempre os favoritos e atacando até as duas últimas subidas, de tal forma que asfixiou ciclistas tão poderosos como Sergio Higuita, Ben O’Connor, Riguberto Uran ou Mikel Landa.

O problema é que Juan Ayuso, o seu jovem colega de equipa, acabou no pódio. E esta surpreendente classificação do miúdo espanhol pode encostar João Almeida a uma despromoção na UAE. Se no princípio da época o líder do plantel era indiscutivelmente Pogacar e o João era também indiscutivelmente o número dois da equipa, agora, dependendo do entendimento que os seus directores desportivos fizerem da época de 2022 e do plano que têm para a época de 2023, o craque das Caldas da Rainha pode ver o seu estatuto descer um degrau.

Remco Evenepoel confirmou o favoritismo e ganhou, aos 22 anos, a sua primeira volta de 3 semanas com inteira justiça, calando os críticos que o definiam como um corredor de provas de um dia ou de uma semana. Com a vitória na classificação geral e as duas etapas ganhas, o belga soma já 35 triunfos no circuito profissional, o que, considerando a sua idade, é verdadeiramente espantoso. Em princípio, não será ainda em 2023 que a Quick Step o irá lançar no Tour de France, mas o mundo ciclístico vai ficar agora em suspenso, à espera de ver Remco competir com Pogacar e com Vingegaard para o título máximo da modalidade.

A propósito de juventude, convém sublinhar que, dos cinco primeiros classificados da Vuelta, o vencedor tem 22 anos, o terceiro classificado tem 19 anos e o quinto classificado tem 24. Isto seria impensável há coisa de cinco anos atrás. O ciclismo sofreu uma revolução etária monumental num lapso de tempo muito curto. Três dos cinco melhores ciclistas da actualidade não somam mais que 26 primaveras, quando recuando não muito tempo atrás se considerava que um atleta só atingia o seu pico performativo em alta competição a partir dos 27 anos.

Um outro sacaninha que mostrou à audiência global a sua classe e resiliência foi Richard Carapaz. Depois de uma primeira semana desastrosa, que o arredou de qualquer hipótese de lutar por um lugar honroso na classificação geral, o equatoriano, actual campeão olímpico e vencedor do Giro de 2019, cerrou os dentes e nas duas semanas seguintes foi protagonista de quase todas as etapas a subir, vencendo 3 delas e acabando por conquistar a camisola da montanha. Além disso, soube trabalhar para a equipa quando foi preciso, acabando até por salvar a prestação da INEOS nesta Vuelta, e isto apesar de estar da saída da formação britânica.

Carapaz é um ciclista admirável porque é combativo como o raio e está constantemente a transcender os seus limites físicos. E é precisamente a fazer das tripas coração que tem apresentado grandes resultados e presenteado os adeptos de ciclismo com inesquecíveis momentos de raça e irredutibilidade. Que a sua nova equipa, a Education First, lhe dê condições para somar mais sucessos ao seu já muito rico palmarés.

Esta Vuelta foi entretida, sem dúvida. E considerando a emoção e competitividade das provas de três semanas que tivemos este ano, com especial destaque para o lendário Tour corrido em Julho, 2022 foi uma época inesquecível. Os adeptos da modalidade estão com certeza de barriga cheia. Ainda por cima, 2023 guarda mais batalhas épicas, se considerarmos o batalhão de gigantes que o actual panorama ciclístico oferece.

Com gente danada para a alta performance como Tadej Pogacar, Jonas Vingegaard, Remco Evenepoel, Primoz Roglic, Mathieu van der Poel, Wout van Aert e Egan Bernal, podemos confiar que haverá espectáculo e emoção em doses industriais.