De uma maneira ou de outra, a tradição folk anglo-saxónica tem sobrevivido bem à voracidade das épocas e à inconstância das manias, integrando-se transversalmente e com profundidade melódica em fenómenos de vastidão antípoda como os The Magnetic Fields do fim de século XX, os Wilco do princípio do século XXI ou os Manchester Orchestra de agora.
Apóstolos desta seita prolixa e interminável, os Bear’s Den iniciaram em 2014 um encantatório percurso que já conta com 4 álbuns de estúdio. Parcimoniosos mas quase fundamentalistas na obsessão com as harmonias, carregando-as invariavelmente com um conjunto de poemas inspirados e convenientemente sorumbáticos, os Bear’s Den deixam outras bandas menos convictas da sua inerente herança folk, como os The Lumineers, a milhas de distância, no trilho da floresta.
No seu primeiro e seminal disco reside talvez o tema comercialmente mais bem sucedido da banda, “Agape”. Uma canção forte como o raio que logo no primeiro minuto presenteia o audiente com uma espécie de manifesto orquestral. Se o gentil leitor ouvir apenas estes acordes iniciais ficará razoavelmente informado sobre a odisseia que os três músicos de West London têm para lhe propor.
Em 2022, os Bear’s Den regressaram com “Blue Hours”. Romântico até dizer chega, pessoal no limite da confissão, é um disco para ninar adultos, cadeira de baloiço que embala os sentidos na direcção de um hedonismo melódico que sempre foi o objecto de estimação da banda.
Mas sendo melodramática, a formação londrina é geneticamente optimista, e mesmo quando penetramos com eles nas trevas da noite enigmática, sabemos que vamos encontrar novos caminhos para percorrer rumo à luz da alvorada.
Naquele que é um assumido retorno às origens, os Bear’s Den procuram a essência do seu som: o folk britânico, saído da penumbra – meio tímido, meio eloquente – para a dor dos dias e a melancolia das horas. Este disco é daqueles que são duros de mastigar. Mas depois de devidamente digeridos pelos tímpanos, assaltam com pungente poder lírico a sensibilidade do mais empedernido dos melómanos.
E quando as aranhas sobem pelas paredes da madrugada, abrindo feridas e fendas no estuque da alma, é deixar o Urso cantar. É deixar a caverna ecoar melodias e libertar a música para combater a praga e a escuridão.
Meio tristonho com a vida, meio confiante no futuro, o Urso sabe que vai permanecer no ouvido e na sensibilidade dos que veneram o seu totem, até que outras canções voltem a escapar da caverna para encantar a floresta.
“Blue Hours”. Um disco que empresta beleza e paz à vida. Para ouvir com a merecida e a necessária devoção.
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