O facto de a revista Time ter nomeado Donald Trump como Pessoa do Ano, sendo surpreendente, não é uma surpresa. Eu explico.
É surpreendente porque a redacção da Time representa a antítese do mandato eleitoral de Trump. A Revista é uma espécie de pináculo da imprensa corporativa contemporânea. Os seus apparatchiks devem ter esgotado todos os medicamentos para a indigestão que existiam na farmácia do bairro, no momento em que se viram condicionados a eleger o Presidente Eleito para o seu anual tributo.
Não é surpresa porque a revista concedeu esta honra a todos os presidentes dos EUA em ano de eleições neste século. Trump ganhou a Casa Branca, por isso ganhou o prémio. É tão simples quanto isso.
Acontece porém que qualquer populista que se preze teria ignorado esta ordem do mérito duvidoso, na medida em que a publicação já elegeu gente tão ilustre como Chiang Kai-Chek (1937), Adolf Hitler (1938), Joseph Estaline (por duas vezes: 1939 e 1942), o Rei Faisal (1974, em plena crise energética) e Hayatolla Khomeini (1979). Em 2015, a Time ponderou eleger, Abu Bakr Al-Bagdhadi, o líder do Estado Islâmico, que na altura seria talvez o mais vil criminoso que circulava à superfície do terceiro calhau a contar do Sol. Em 2019, a dúbia honra foi concedida a Greta Thunberg. Em 2023, o galardão foi atribuído a Taylor Swift, que como todos sabemos é uma personagem que de facto mudou o curso da civilização humana. Barak Obama, o super-herói da redacção da Time também recebeu o prémio duas vezes, quando foi eleito.
Mas Donald Trump não é um populista. Nem sequer é um conservador. É um típico liberal de Nova Iorque com um coração nacionalista. E, além de tudo o mais, não resiste à lisonja, pelo que aceitou o prémio de bom grado e foi a correr dar uma entrevista aos comissários da revista, de tal forma extensa que os seus editores calculam que leva mais de uma hora a ler (o Contra resume-a para poupar tempo aos seus estimados leitores). Chama-se a isto: privilegiar o inimigo.
Seja como for, o prémio do próximo ano será mais revelador. A Time diz que atribui a honra à pessoa que “fez mais para influenciar os acontecimentos do ano”. Como presidente, Trump terá uma oportunidade de ouro para fazer isso mesmo e tem muitos sítios por onde começar. Cito apenas alguns.
A fronteira aberta da América está a permitir que as questões sobre a soberania da nação se tornem verdadeiramente dignas de serem colocadas. Um país sem fronteiras não é de facto um país. É um bar aberto. O convite do regime Biden para que milhões de pessoas entrem ilegalmente pelo Sul da federação continua a pôr em risco a segurança, a economia e o tecido social dos Estados Unidos, transformando a nação mais poderosa do mundo a um ritmo que insustentável. Se Trump resolver esta situação, o que não deverá ser difícil, estará no bom caminho para se tornar a pessoa mais influente de 2025.
A classe dominante está a manipular deliberadamente a economia para prejudicar os americanos comuns. A dívida em cartões de crédito ultrapassa agora os 1,1 biliões de dólares, mas não existe limite para as taxas de juro. O fosso entre as classes alta e baixa continua a aumentar, mas a lacuna legislativa sobre o transporte dos juros permite que os sicofantas de Wall Street paguem taxas de imposto mais baixas do que os professores das escolas primárias. A inflação, a estonteante dívida soberana, a insana emissão de moeda e a consequente perda de protagonismo do dólar como referência monetária global são desafios imensos a superar pela nova administração. Trump deve pelo menos esforçar-se para tornar a economia funcional para todos os americanos e credível para os não americanos. Esse seria outro marco vital na tentativa do presidente eleito de repetir o prémio da Time, que aparentemente tanto preza. A sua proposta de limitar as taxas de juro dos cartões de crédito a 10% seria um excelente ponto de partida.
As guerras do Mar Negro e Mediterrâneo oriental, que estão à beira de se tornarem conflitos globais, também terão que ser abordados pela Casa Branca. O financiamento americano de ambos os conflitos não está a ajudar. Em nome da paz, Trump deveria usar a sua influência para forçar as partes beligerantes a negociar de boa-fé com o objectivo legítimo de parar o derramamento de sangue. Centenas de milhares de pessoas pereceram nos conflitos financiados pelos EUA em Israel e na Ucrânia. Acabar com essa injecção virulenta de dinheiro dos contribuintes americanos em guerras devastadoras e alheias aos seus interesses reais valeria a Trump um Prémio Nobel, até (embora este tributo seja outrossim infame).
Toda a gente sabe que o Presidente Eleito adora reconhecimento. Agora que está a entrar no seu segundo mandato, todos os elogios do mundo estão ao seu alcance. Ele só tem de fazer um bom trabalho. Só tem que respeitar o mandato eleitoral que lhe concedeu esta oportunidade de se redimir dos erros que cometeu na primeira presidência.
Acontece porém que as próprias declarações que Trump fez à Time sobre o Irão, por exemplo, e as nomeações que entretanto tem anunciado para o seu executivo, deixam no ar a suspeita de que o segundo mandato será mais parecido com o primeiro do que seria expectável. Tanto na economia como na diplomacia, a posição neoconservadora, globalista, quizilenta e imperialista do pântano de Washington está muito bem representada na nova administração.
E esse não podia ser um sinal mais preocupante de que vamos ter desilusões à farta.
Paulo Hasse Paixão
Publisher . ContraCultura
Relacionados
20 Dez 24
Estão todos de acordo.
Tu também?
Banqueiros, militares, políticos e apparatchiks da imprensa corporativa estão a seguir o mesmo guião, como sempre, num alegre e arrepiante consenso de que estamos prestes a morrer todos. Mas seria talvez apropriado sabermos porquê e em nome de quê.
19 Dez 24
Os Estados Unidos de Toda a América do Norte.
Em tom satírico, Trump sugeriu que o Canadá e o México poderiam tornar-se estados dos EUA. Mas que seria de nós se uma potência desta dimensão acabasse por cair nas mãos de liberais como Barak Obama ou Hillary Clinton? Uma crónica de Walter Biancardine.
18 Dez 24
Afinal, a mentira passa facturas.
O acordo extra-judicial de 16 milhões de dólares entre a ABC e o queixoso Donald Trump representa um castigo bem merecido por anos de desonestidade descarada e impenitente por parte dos meios de comunicação social corporativos. Uma crónica de Afonso Belisário.
17 Dez 24
Intervencionismo de Estado, aborto e psique.
As relações humanas são invalidadas pelas relações legais e um Estado interventor, que legisla sobre tudo e a propósito de nada, sempre danifica a psique humana. Uma crónica de Walter Biancardine.
17 Dez 24
Relatório sobre a COVID-19 do Congresso americano: Um documento de leitura obrigatória para o governo português.
Nem um único responsável da saúde em Portugal comentou o relatório do Congresso dos EUA sobre a pandemia COVID-19. É uma pena, porque o documento devia ser de leitura obrigatória para funcionários governamentais. Uma crónica de Nuno Matos Pereira.
15 Dez 24
Testosterona versus imigração: Quem ganhará a batalha?
A Europa trava hoje uma das mais decisivas batalhas desde os tempos das Cruzadas e o que está em jogo é sua existência, bem como a sobrevivência de toda a civilização ocidental. E esta luta deve-se à ausência do desejo de procriar. Uma crónica de Walter Biancardine.