“Se tiveres que violar a lei, fá-lo para conquistar o poder; em todos os outros casos, observa-a.”

Caio Júlio César

 

Esta é a segunda parte de um breve retrato biográfico de Caio Júlio César (100 a.C – 44 a.C.), que se refere aos últimos cinco anos da sua vida. A primeira parte, que retrata os primeiros 50 anos e termina na célebre travessia do Rubicão pode ser encontrada aqui.

Como todos os artigos que o Contra irá publicar sobre os primeiros imperadores romanos, este texto tem como principal fonte a obra de referência de Suetónio, “Os Doze Césares”.

 

César atravessa o Rubicão . Adolphe Yvon . 1874

 

Num só general, a energia de cem legiões.

Para se perceber a incrível determinação, energia, génio militar e brilhantismo estratégico de Júlio César, talvez seja pertinente enumerar, cronologicamente como faz Suetónio, os feitos do general logo depois de atravessar o Rubicão, onde o deixámos no texto anterior: Ocupou o Piceno, a Úmbria, a Etrúria. Subjugou Lúcio Domício, que liderava a guarnição de Corfínio. Contornou de seguida o Adriático e dirigiu-se a para a Calábria, onde procurou, sem êxito, impedir a partida de aliados de Pompeu. De seguida, dirigiu-se a Roma para convencer, com sucesso – dada a sua eloquência e o poder das legiões que o acompanhavam – o Senado da sua justa causa. Logo depois, dirige-se para a Península Ibérica para defrontar as melhores legiões de Pompeu, chefiadas não por ele, mas por três dos seus legados. À partida de Roma afirmou:

“Marcho agora contra um exército sem general, voltarei depois para marchar contra um general sem exército.”

Embora obrigado a demorar-se em Marselha, triunfando sobre um cerco que lhe fora montado, e debatendo-se com constantes dificuldades logísticas, “em pouco tempo, tudo submetia”.

Na viagem de regresso a Roma, passou pela Macedónia (e não por que ficasse muito em caminho), onde manteve Pompeu assediado durante quatro meses, apesar da solidez das suas fortificações e do seu significativo poder militar. Desbaratou o inimigo na célebre batalha de Farsália, travada na região de Tessália, no norte da Grécia. Fugindo Pompeu para Alexandria, persegue-o, só para o encontrar morto, para sua grande indignação assassinado por Ptolomeu, que usurpava na altura o poder dos faraós gregos.  Vendo que este lhe preparava também ciladas, fez-lhe a guerra, apesar do número escasso das suas forças e de condições deveras desvantajosas. Ainda assim vencedor, ofereceu o reino do Egipto a Cleópatra, tendo ainda vagar para a cortejar e lhe fazer um filho.

 

 

De Alexandria, saltou para a Síria para mais conquistas militares, e depois para o Helesponto (na actual Turquia) onde combateu o rebelde Farnaces, que tinha aproveitado a Guerra Civil para ser bem sucedido em várias batalhas contra as forças romanas. Cinco dias depois de chegar e numa batalha que durou apenas 4 horas, desbaratou a força bárbara. Esse episódio ficou marcado pela seu famosa – e sem dúvida apropriada – tirada:

“Veni, vidi, vici” (“Vim, vi e venci”).

Não contente nem cansado, desceu à costa africana para derrotar Sipião e Juba e subiu de novo à Hispânia, para esmagar as forças comandadas pelos filhos de Pompeu.

Assim, num ápice alucinante de sangue e distâncias, a república caía. E mesmo que ninguém, nem César, percebesse isso, o império conhecia a sua hora zero.

E se o leitor não está exausto, este redactor está ofegante.

 

Os Triunfos de César – Os carros Triunfais (detalhe) . Andrea Mantegna . 1480-1506

 

 

Paz romana, fúria executiva.

Em toda a balbúrdia bélica da Guerra Civil, só perdeu batalhas quando confiou as suas legiões a legados. Em Dirráqui, conheceu dificuldades e Pompeu podia ter levado a melhor e mudado o curso da história, mas abdicou de perseguir as forças de César que recuavam, levando Júlio a acusá-lo de “não saber vencer”.

Triunfou em Roma cinco vezes pelas vitórias sobre Sipião, sobre os filhos de Pompeu, na Gália, em Alexandria e no Helesponto (estranhamente recusando celebrar a vitória de Farsália). O triunfo da Gália foi o mais belo e grandioso, com 40 elefantes e Vercingetórix enfiado numa jaula. Distribuiu por ocasião destas festividades, propriedades, sestércios, privilégios, banquetes e alqueires de trigo a nobres e ao povo, a soldados e tenentes, a amigos e inimigos (que se tinham rendido entretanto). Promoveu jogos esplendorosos, representações teatrais e batalhas navais simuladas, de grandiosidade cénica sem paralelo até aí.

Uma vez alcançada a paz, dedicou-se à administração com o mesmo afinco que tinha investido na guerra. Reformou o calendário que estava em tal desordem “que as festas das colheitas já não coincidiam com o estio nem as das vindimas com o Outono”. Aumentou o número de senadores, pretores e edis e partilhou com o povo o direito de eleger metade dos magistrados de Roma. Procedeu a recenseamentos, repovoou províncias, reformulou, para ser mais severo com os criminosos – pobres ou ricos – o código penal. Mandou secar pântanos e levantar ou restaurar monumentos, encontrando ainda recursos materiais e temporais para abrir estradas e fundar bibliotecas.

 

Os Triunfos de César – Os Elefantes . Andrea Mantegna . 1480-1506

 

Virtudes e fragilidades de um super homem.

Pouco dado à bebida, a creditar Catão – seu inimigo mortal – Júlio César era “o único entre os que conspiravam contra a República que não se embebedava”. O triunfante e populista rebelde seria porém um libertino impenitente, “marido de todas as mulheres e mulher de todos os maridos”, de acordo com Caio Curião.

Orador eloquente, autor de máximas que citamos ainda hoje, mais de vinte séculos depois da sua época, com regularidade, era também um prosador dotado, merecendo até o elogio do parcimonioso Cícero, que qualificou os “Comentários” (relato de César das suas campanhas na Gália) como “elegantes e imparciais”.

Homem de armas e cavaleiro consumado, capaz de resistência incrível, marchava invariavelmente à frente das suas tropas, “umas vezes a cavalo, a mais das vezes a pé, de cabeça descoberta quer chovesse, quer fizesse sol. Percorreu os mais extensos itinerários com uma rapidez incrível, sem bagagens nem carros de aluguer, à velocidade de cem milhas diárias.” Nem rios nem montanhas, nevões ou ondas de calor detinham a sua vontade e chegava por vezes ao seu destino antes dos seus correios e emissários.

De natureza generosa e tolerante, “tratou sempre os seus amigos com bondade e indulgência” e inversamente “nunca sentiu ódios que não fosse capaz de a eles renunciar voluntariamente.” Mostrando alguma humanidade, considerando o contexto histórico, mandava estrangular os condenados antes de os crucificar.

Apesar das suas óbvias qualidades de carácter, as suas fraquezas contribuíram decisivamente para o fim trágico que conheceu. O egotismo e a arrogância, talvez compreensíveis para um homem que, destituído e perseguido quando era muito jovem, fez da sua vida um trajecto lendário de conquistas transcendentes, acabaram por trai-lo. Aceitando honras excessivas, abusando frequentemente do seu poder que já de si era imenso e exercendo um número excessivo de consulados, juntou ao título de ditador, o cargo de censor perpétuo, a concessão imperial e o cognome de ‘Pai da Pátria’. Sentava-se num trono de ouro no Senado e mandou colocar estátuas suas junto às efígies dos deuses, deu o seu nome a um mês do ano (Julho de Julius) e mostrava-se não raramente sobranceiro, sendo criticado por ter dito a um senador:

“É preciso que me falem doravante com mais circunspecção e que considerem as minhas palavras como se fossem leis.”

Demonstrando pouco respeito pelas instituições e pelos costumes republicanos, tanto como pelos rituais religiosos, deu sinais de que aspirava ser rei, o que, junto com a iniciativa de admitir estrangeiros no Senado, levou em boa parte à sua morte.

 

O Assassinato de César . Karl Theodor von Piloty . 1865

 

“A morte que sempre desejou”.

Os conjurados, mais de 60 cidadãos romanos, na sua maioria aristocratas, planearam inicialmente matá-lo no Campo de Marte, atirando-o do alto da ponte e degolando-o depois. Também equacionaram assassiná-lo na Via Sacra e à entrada do teatro – onde geralmente se apresentava sem qualquer guarda, mas acabaram por decidir que o Senado seria o melhor palco para a tragédia, talvez pelo seu simbolismo, já que se tratava do lugar que melhor representava os valores da República e que mais tinha sido profanado por César.

Prodígios, sinais e profecias avisaram-no do nefasto desfecho e o arúspice Spurina advertiu-o sobre o perigo que corria “nos idos de Março”, mas o ditador, de forma que lhe era muito característica, não quis saber de tais indícios. Tanto César como a sua mulher Calpúrnia sonharam maus auspícios na véspera do assassinato. Na manhã desse dia fatídico, sentiu-se indisposto e hesitou em dirigir-se ao Senado, mas Décimo Bruto – um dos líderes da conspiração  que César considerava como um filho apesar de ter escolhido o lado republicano da Guerra Civil – insistiu para que não privasse a assembleia da sua presença.

No caminho alguém lhe passou uma mensagem que denunciava a conjura. Voltou a ignorar o alerta e até acusou Spurina de falsa profecia, já que os idos de Março passavam sem que nada de mal lhe acontecesse. Túlio Cimber terá sido quem primeiro o imobilizou a pretexto de lhe perguntar qualquer coisa, agarrando-lhe a toga pelos ombros. “Um dos dois Cassios” ferio-o por trás, acima do pescoço. César defendeu-se trespassando-o com o seu buril, mas foi prontamente golpeado por todos os lados. Dando-se conta da conjura e que a morte era inevitável, enrolou a toga em volta da cabeça e esticou-a para cobrir todo o corpo de forma a “cair com decência”. Morreu de 23 punhaladas sem que tivesse “soltado um gemido, senão quando lhe vibraram a primeira.” Uma dos últimos golpes terá sido desferido por Décimo Bruto. 500 anos antes, Lucius Junius Brutus tinha fundado a República. O seu descendente Décimo tinha a responsabilidade de a manter. Os romanos viviam obcecados com o passado e com a necessidade de honrar os seus ascendentes e por muito próximos que Cásar e Bruto possam ter sido, o dever valeu mais que a lealdade.

 

 

As coisas começaram porém rapidamente a correr mal para os conjurados. Era sua intenção arrastar o cadáver de César até ao Tibre, num acto de dessacralização pública, confiscar-lhe os bens e anular-lhe os actos, mas receosos do cônsul Marco António e do Chefe de Cavalaria Lépido, renunciaram a esses intentos. Esta já não é a história para contar agora, mas nenhum dos assassinos de Júlio César lhe sobreviveu por mais de 3 anos e nenhum teve uma morte natural.

Aos 56 anos, “César teve a morte que desejou”. Imediatamente elevado a um patamar divino pelo povo e pelo Senado, o ditador ocupará um lugar incontornável na memória de povos e das gerações como um personagem maior que a própria vida, um relâmpago de vitalidade e génio, que alterou literalmente o percurso político e militar de uma das maiores potências da história universal.

O legado épico de Júlio César vive ainda hoje, com intensidade imperturbável, na nossa imaginação. E, mesmo apesar dos seus desvios autoritários, mesmo contabilizando o sangue que derramou, é apenas justo que assim seja.