Numa manobra furtiva, ousada e surpreendente, as forças ucranianas lançaram no princípio de Agosto uma contraofensiva visando a região russa de Kursk. Os relatórios iniciais indicavam que ambas as partes mantiveram um silêncio tácito durante as primeiras horas da operação. E mesmo nos primeiros dias da ofensiva, o nevoeiro da guerra impediu a claridade da análise. Sabemos agora que as tropas ucranianas avançaram profundamente no território controlado pela Rússia, confundido as forças russas e forçando-as sucessivamente a recuar para reagrupar. É agora possível fazer um primeiro balanço da operação.

Aparentemente, a ofensiva apanhou até desprevenidos alguns aliados ocidentais de Kiev (embora seja mais que certo que foi planeada e suportada pela NATO e pelos serviços de inteligência norte-americanos e britânicos, pelo menos), obrigando os Estados Unidos, juntamente com a Alemanha e a Bélgica, a afirmarem publicamente o direito da Ucrânia à auto-defesa, o que inclui medidas ofensivas em certas áreas do solo inimigo, com a potencial utilização do seu equipamento militar.

A incerteza persiste na região de Kursk, no entanto, de acordo com o estratega australiano, general Mick Ryan, a iniciativa perturbou claramente a dinâmica no teatro das operações:

“A capacidade da Ucrânia para surpreender desta forma não só inquietou o Ocidente como também os russos.”

Numa entrevista à agência noticiosa polaca Wirtualna Polska, o General Ryan salientou os êxitos estratégicos e tácticos das forças ucranianas.

“Os ucranianos não se limitaram a surpreender o seu inimigo; obrigaram-no a reagir lentamente. É claro que a Ucrânia identificou e explorou uma vulnerabilidade significativa nas defesas russas”.

O sucesso da operação foi além dos meros ganhos territoriais. As forças ucranianas conduziram efectivamente operações paralelas que impediram os reforços russos de chegar à zona de conflito. Estas operações incluíram não só emboscadas, mas também a destruição estratégica de bases aéreas e de depósitos de munições, prejudicando significativamente as capacidades logísticas russas. A este propósito, o General Ryan afirmou:

“Estas acções ganharam tempo crucial, permitindo à Ucrânia manter a dinâmica operacional”.

Além disso, Ryan salientou as implicações mais alargadas da ofensiva.

“Esta operação não procura apenas ganhos tácticos. Os ucranianos estão também a enviar uma mensagem forte ao Presidente russo Vladimir Putin e ao Ocidente, englobando uma série de intenções políticas e estratégicas. Outro objectivo estratégico pode ser o de alterar a narrativa da guerra de uma forma mais favorável à Ucrânia. Aumentar o moral da população ucraniana é também um objectivo potencial, tendo em conta as prolongadas lutas defensivas e os danos infra-estruturais que sofreram”.

No que diz respeito à especificidade da ofensiva deste ano em comparação com as anteriores, Ryan salientou o aumento da preparação militar ucraniana e a sofisticação táctica.

“Desta vez, a operação foi conduzida por unidades experientes que utilizaram tácticas antiaéreas avançadas e guerra electrónica, o que representa uma evolução significativa em relação aos esforços do ano passado, em que foram destacadas unidades menos preparadas.”

Embora seja prematuro determinar o impacto total da ousada acção da Ucrânia em Kursk, a operação representa uma mudança significativa na dinâmica do conflito. Segundo o Presidente Zelensky, as forças armadas ucranianas controlam mais de 1.000 quilómetros quadrados e 74 povoações (incluindo a cidade de Sudzha) desde 13 de Agosto. Conseguiram também travar os reforços russos com ataques precisos de artilharia em toda a linha de contacto. Ao mesmo tempo, a Ucrânia está a realizar ataques aéreos e de drones em várias regiões próximas, incluindo Belgorod, Voronezh, Nizhny Novgorod, Volgograd, Bryansk, Oryol e Rostov.

A pressão sobre o Presidente Putin para lidar com a situação aumenta a cada dia que passa. E enquanto os comentadores pró-Moscovo acusam o Ocidente de planear e coordenar a incursão, nos bastidores do Kremlin os falcões devem estar a ferver de vontades retaliatórias. Putin prometeu que uma “resposta digna” está para breve, mas as tropas russas começaram a escavar trincheiras na frente de combate, o que pode indicar que desistiram discretamente da possibilidade de uma contraofensiva rápida.

A verdade é que a Ucrânia apostou tudo numa fragilidade histórica da Rússia: a incapacidade de reagir ágil e rapidamente a um ataque surpresa. Como aconteceu durante as invasões napoleónica e nazi, a reacção dos russos é a retirada e a lenta mobilização de uma contra-ofensiva. Também é verdade que, depois de espoletada, essa contra-ofensiva transforma-se rapidamente numa onda de devastação imparável.

Talvez por isso, uma boa parte dos analistas calculam que as forças ucranianas não permanecerão em Kursk mais do que algumas semanas, no máximo. Mas já conseguiram tornar-se o primeiro país a invadir a Rússia desde 1941 – uma enorme humilhação para o Presidente Putin. Isto pode levá-lo a recorrer a medidas drásticas e a uma maior escalada no campo de batalha, ou a reconsiderar a sua posição e a encarar Kiev de forma mais equitativa quando as negociações de paz começarem, embora esta segunda hipótese seja algo remota.

Para além do óbvio – forçar Moscovo a desviar tropas da frente do Donbas e criar pressão interna na Rússia para acabar com a guerra – o objectivo fundamental de Kiev ao levar a cabo esta operação, que vai agravar ainda mais o já de si dramático volume de baixas, será o de ganhar trunfos para jogar à mesa das negociações de paz que se avizinham.

Sabemos que Zelensky quer um acordo de cessar-fogo até ao final do ano, mas até agora não tinha muito com que negociar. Mas mil quilómetros quadrados e mil soldados russos capturados constituem agora uma moeda de troca considerável, algo tangível para obrigar a Rússia a ceder pelo menos parte dos territórios ucranianos ocupados.

No entanto, Putin não pode arriscar a sua sobrevivência política nesse negócio e vai tentar tudo para fazer recuar os ucranianos. Mas se conseguirem aguentar mais algumas semanas em Kursk, os ucranianos poderão eventualmente obrigar Moscovo a oferecer condições mais favoráveis nas próximas conversações de paz, provisoriamente marcadas para Novembro. A retirada ucraniana antes dessa hipotética cimeira poderá também dar à Rússia a vitória, em termos de relações públicas, de que necessita para poder negociar sem ter de perder mais prestígio.

Em suma, a incursão de Kursk e o pânico que causou é um símbolo poderoso, que pode ser a chave para apressar o fim da guerra após dois anos de derramamento de sangue sem sentido.

Ou não. Porque o carácter arriscado da operação pode ter um preço insustentável para os ucranianos, caso no Kremlin a decisão seja a de reduzir a cinzas um país já de si martirizado.