A imprensa corporativa já rotulou Javier Milei, o candidato que venceu as primárias presidenciais da Argentina na semana passada, com as etiquetas maniqueístas do costume: é um “admirador de Trump”, “populista de direita”, “excêntrico de extrema direita”, “populista de extrema direita”, “direitista”, “libertário de extrema direita”, “anarco-capitalista” e um “radical“. De “extrema direita”.

O Contra não é de todo uma publicação especializada na política argentina, mas sempre que os media convencionais entram em pânico genuíno, é porque há boas notícias a reportar. Acontece que Milei – também conhecido como el Peluca (“A Peruca”), porque ostenta uma magnífica cabeleira própria de um tipo que foi tele-transportado directamente de 1972 para os dias de agora e ouve discos de fusão de jazz e flauta no seu apartamento coberto de veludos – é muito mais interessante do que as redacções do aparelho propagandista do Ocidente querem fazer crer.

Economista de guerrilha e pugilista retórico, Milei carrega com ele uma filosofia que pode ser apropriadamente descrita como “ultraliberal doutrinária”, como disse recentemente Andres Malamud, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. O Contra prefere classificá-lo como “libertário clássico”, mas seja como for, as ideias deste homem são excepcionalmente raras na ciência política dos últimos cem anos.

Milei ameaça derrubar o establishment de um país que está de novo à beira de um colapso económico (são incontáveis as falências técnicas da Argentina). As taxas de pobreza explodiram – algumas estimativas indicam que 43% dos argentinos vivem na miséria – enquanto a moeda continua a perder o seu valor e as taxas de juro subiram para uns surrealistas 118%. El Peluca é uma personalidade televisiva de longa data, e tem argumentado que os argentinos são “reféns” de uma política económica destrutiva que tem sobrevivido sobre as gerações, enquanto acusa os políticos – ou, como ele os chama, “ratos” ou “membros da casta política parasitária e inútil” – de terem destruído um dos países mais ricos do mundo com ideias nefastas, em troca de chorudas contrapartidas para si próprios.

Muitas dessas ideias, argumenta Milei, podem ser encontradas na economia keynesiana, que está no cerne da maioria dos males da sociedade ocidental. O candidato promete fechar o banco central, usar o dólar americano como moeda nacional, desregular os mercados, abrir o comércio, cortar impostos e reduzir o regime regulatório. Não por acaso, os seus 3 mastins ingleses têm o nome de Milton Friedman, Murray Rothbard e Robert Lucas.

Quando perguntaram a Milei se a felicidade era mais importante do que a liberdade, ele respondeu:

“As duas coisas andam de mãos dadas. Não podes ser feliz sem ser livre.” 

A colocação da liberdade pessoal como pré-requisito não apenas para uma sociedade próspera, mas virtuosa, é muitíssimo bem-vinda num mundo onde os políticos se mostram cada vez mais esfomeados por autoridade, vigilância, controlo e manipulação das massas.

Mesmo os conservadores dos regimes ocidentais gostam de afirmar que “libertários” como Milei não estão preparados ou dispostos a resolver as questões sociais. No entanto, este candidato à presidência da Argentina enquadra essas questões como um imperativo moral de um liberal clássico.

“Sou abertamente contra o aborto. Mas como liberal, acredito no respeito irrestrito pelos outros. Podes escolher sobre o teu corpo, mas não sobre o corpo dos outros.”

Questionado sobre o porquê de querer acabar com os programas de “educação sexual” do governo, Milei referiu-se a eles como

“Um mecanismo de propaganda que destrói a família com a intenção de promover de cima para baixo tudo o que a esquerda e a ideologia de género têm em agenda.”

Milei nutre um muito saudável e saboroso desdém populista pelas “elites”, mas não compartilha da adoração que, por exemplo, Donald Trump, mostra pelo poder do Estado e acredita que o livre mercado e a destatização oferecem grandes vantagens e oportunidades para as classes média e média-baixa.

Milei prometeu sortear o seu salário presidencial e 2,4 milhões de argentinos já se inscreveram para ganhar esses 3.200 dólares por mês.

“Para mim, isso é dinheiro sujo. Do meu ponto de vista filosófico, o Estado é uma organização criminosa que se financia com impostos retirados das pessoas à força. Vamos devolver o dinheiro que a casta política roubou.”

Além de rejeitar o alarmismo climático como um ataque destrutivo ao progresso económico e social, o candidato propõe um novo modelo de cidadania, baseado na liberdade, na responsabilidade, na representação e na redução do papel do estado na vida das pessoas.

Um dos sinais mais surpreendentes da popularidade de Milei é que é impulsionada pelos eleitores mais jovens, ao contrário do que se passa no Ocidente, onde parece que é nessas faixas etárias que reside o maior apoio aos diversos fascismos e paternalismos de estado a que assistimos no século XXI. É claro que é provável que parte desse apoio seja um voto de protesto contra as falhas do establishment argentino, e não uma declaração ideológica. Mas ainda assim, este detalhe pode indicar que a liberdade individual – ridicularizada como retórica antiquada e pueril tanto pela direita quanto pela esquerda nos dias de hoje – ainda pode ter futuro.

Também como acontece por todo o Ocidente, Milei está a ser vilipendiado e encostado a rótulos que nada têm a ver com as suas ideias pelo corporativismo regimental. O actual presidente Alberto Fernandez diz que o seu opositor é “uma ameaça à democracia” e invocou Adolf Hitler e o totalitarismo nazi para qualificar as ideias de el Peluca. Nada de novo, aqui.

Apesar de ter ganho as primárias, o percurso até à presidência será difícil para Milei, que vai assistir a uma união das forças políticas do sistema contra a sua candidatura. Também neste aspecto, não há novidade. Aconteceu precisamente o mesmo em França, nas últimas eleições: Macron foi eleito com votos de toda a gente à esquerda de Le Pen, apesar desta gente toda ter, ideologicamente, muito pouco em comum. Os regimes presidencialistas, com eleições “a duas mãos”, promovem muito especialmente este tipo de fenómenos eleitorais.

Mas a verdade é esta: com as ideias autoritárias a ganharem terreno a um ritmo alarmante, por todo o lado, temos sem dúvida muito uso para dar a populistas liberais, desassombrados e assertivos, como Javier Milei.