USS Liberty, adornado e danificado, a 9 de Junho de 1967, um dia após o ataque

 

No dia 8 de Junho de 1967, um torpedo israelita atravessou o costado do navio americano USS Liberty, uma unidade desarmada, a cerca de doze milhas da costa do Sinai. O navio, cuja tripulação estava sob o comando da Agência de Segurança Nacional (NSA), estava a interceptar comunicações no auge da Guerra dos Seis Dias quando foi alvo do ataque aéreo e naval israelita.

As reverberações da explosão do torpedo fizeram com que o tripulante Ernie Gallo voasse pela sala de pesquisa de rádio onde estava estacionado. Gallo, um técnico de comunicações a bordo do Liberty, viu-se a si próprio e aos seus companheiros de bordo no meio de um ataque que viria a provocar a morte de 34 americanos e ferimentos em mais 171 tripulantes.

Quase 60 anos depois do ataque ao USS Liberty e, apesar de ter sido um dos piores ataques da história contra um navio da marinha americana que não tinha uma missão de combate, a tragédia continua envolta em secretismo. A questão de saber se e quando é que as forças israelitas se aperceberam de que estavam a matar americanos tem-se revelado um ponto de particular controvérsia no debate público que tem vindo a ser travado ao longo do último meio século. Os procedimentos de investigação do Tribunal de Inquérito da Marinha após o incidente decorreram em sessões à porta fechada e os sobreviventes que se encontravam a bordo receberam ordens para não falarem sobre o que sofreram nesse dia.

Entretanto vieram a público dois documentos confidenciais fornecidos no conjunto de ficheiros divulgados pelo denunciante da NSA, Edward Snowden, relacionados com o ataque e as suas consequências. Estes ficheiros revelam o envolvimento até então desconhecido do Government Communications Headquarters (GCHQ), uma agência de inteligência do Reino Unido; comunicações internas da NSA que parecem reforçar o relato de um analista de inteligência sobre o incidente, que o enquadrou como um acidente; bem como um sistema de transliteração hebraica exclusivo da NSA que estava em uso pelo menos até 2006.

 

 

O primeiro documento, um guia de classificação da NSA que não tinha sido divulgado anteriormente, descreve em pormenor os elementos do incidente que a agência ainda considerava secretos em 2006. O segundo lista uma série de revelações não autorizadas de informações de sinais que “tiveram um efeito prejudicial na nossa capacidade de produzir informações contra alvos terroristas e outros alvos de interesse nacional”. É notável que a informação relevante para o ataque ao Liberty esteja incluída nesta categoria altamente secreta.

Embora nenhum dos documentos revele informações conclusivas sobre as causas do ataque, ambos sublinham que, na altura da sua publicação – cerca de quatro décadas após o incidente – a NSA estava determinada a manter confidenciais mesmo os pormenores aparentemente irrelevantes sobre o ataque. A agência sempre se recusou a comentar a ocorrência e o seu papel no incidente.

 

O Liberty vira para fugir aos torpedeiros israelitas

 

O guia de classificação, datado de 8 de Novembro de 2006, indica um envolvimento anteriormente desconhecido do GCHQ na recolha de informações do navio. Os pormenores deste envolvimento permanecem confidenciais, pelo que não é claro se o envolvimento foi de natureza material a bordo do navio ou através de outros meios.

O guia também revela o sistema secreto de transliteração do hebraico da NSA, cuja existência sublinha o facto de a agência ter historicamente considerado Israel como um alvo dos serviços secretos, mesmo quando a nação actuava como um parceiro-chave na recolha de inteligência. Esta tensão inerente à relação EUA-Israel também se manifestou no Liberty, onde os tradutores de hebraico trazidos para bordo do navio eram designados por linguistas “árabes especiais”, segundo o jornalista James Bamford, para ocultar a sua vigilância das comunicações israelitas.

A Guerra dos Seis Dias entre Israel e os seus vizinhos Jordânia, Síria e Egipto foi um conflito em que os Estados Unidos optaram por não participar, apesar dos pedidos de apoio militar de Israel. O Egipto e a Síria eram aliados soviéticos em desacordo com Israel, alinhado com os Estados Unidos. O conflito local poderia facilmente ter-se transformado num conflito directo entre as superpotências, o que nem os Estados Unidos nem a URSS desejavam. Os países directamente envolvidos foram deixados entregues a si próprios no que se revelou uma esmagadora vitória militar e territorial de Israel – uma vitória que duplicou a dimensão do país em menos de uma semana.

 

O navio-almirante da 6ª Frota, USS Little Rock, manobra para assistir o Liberty

 

Apesar de os Estados Unidos se terem recusado a intervir em nome do seu aliado, estavam, no entanto, a escutar as comunicações militares israelitas durante a guerra. Segundo Bamford, é aqui que reside o ponto central da questão: no decurso da notável aquisição territorial e vitória militar de Israel, este país terá cometido crimes de guerra ao massacrar prisioneiros militares egípcios na cidade de El Arish, no norte do Sinai. Bamford argumentou no seu livro de 2001, “Body of Secrets”, que a proximidade do USS Liberty ao Sinai e a sua capacidade de interceptar os motivos e as actividades de Israel durante a Guerra dos Seis Dias podem ter motivado o ataque de Israel ao navio. No entanto, outros especialistas em segurança nacional, incluindo Steve Aftergood da Federação de Cientistas Americanos, contestaram a análise de Bamford. De acordo com Aftergood, que dirige o Projecto da FAS sobre segredos governamentaisl, o assassinato dos prisioneiros de guerra egípcios nunca aconteceu.

Após a publicação de ‘Body of Secrets’, em 2001, Aftergood escreveu:

“Parece não haver provas verificáveis de que tal massacre tenha tido lugar e a descrição de Bamford dos acontecimentos em El Arish não se sustenta.”

Em última análise, tanto as investigações dos Estados Unidos como as de Israel consideraram o ataque ao Liberty um acidente que resultou do facto de Israel ter confundido o navio espião americano com um cargueiro egípcio. No entanto, Bamford considera essa conclusão um encobrimento, citando a ordem de silêncio emitida aos sobreviventes, bem como o facto de o vice-director da NSA na altura, Louis Tordella, se ter referido ao inquérito preliminar das Forças de Defesa de Israel sobre o ataque como “uma bela lavagem de roupa”. No entanto, outras fontes afirmam que qualquer noção de encobrimento é mera paranoia. De acordo com um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros israelita, o ataque ao Liberty foi

“um trágico acidente que foi resolvido entre as partes envolvidas há anos. como acontece em muitos destes assuntos, há sempre teorias da conspiração, mas que nunca se sustentam”.

O legado do USS Liberty alimentou, de facto, teorias da conspiração, e Bamford não é o único a afirmar que houve um encobrimento. A Associação dos Veteranos do Liberty, uma organização composta por sobreviventes do ataque de 1967, há décadas que pede uma investigação robusta e transparente sobre o incidente, sem sucesso.

Em declaração ao Intercept, Ernie Gallo, que actualmente é o presidente da Associação de Veteranos do Liberty, disse:

“Agora sabemos que o Tribunal de Inquérito da Marinha foi meramente para exibição, pois os oficiais foram instruídos a chegar à conclusão de que o o ataque foi acidental”.

Bamford também refere a magnitude e a duração do ataque como prova da sua deliberação: O navio foi atingido repetidamente, primeiro por aviões que lançaram bombas de mil libras e napalm, e depois por torpedeiros. As forças israelitas também bloquearam as antenas e os canais de comunicação do Liberty, destruíram as quatro metralhadoras de calibre .50 a bordo e terão disparado contra os botes salva-vidas e os membros da tripulação quando estes tentavam evacuar o navio. A este propóosito Bamford afirmou:

“Foi um ataque em plena luz do dia. Estavam a hastear uma grande bandeira dos EUA. O navio tinha a inscrição USS Liberty na parte de trás. … Quer dizer, o que é que é preciso mais?”

 

Danos do ataque no casco e na superstrutura a estibordo

 

O incidente e as suas consequências tiveram um impacto psicológico significativo nos sobreviventes, muitos dos quais sofrem de stress pós-traumático. Um sobrevivente e membro da Associação de Veteranos do Liberty, James Ennes, foi atingido no fémur durante o ataque, tendo recebido instruções para nunca falar sobre o assunto. Ernie Gallo viu um companheiro de tripulação morrer nos seus braços. Passaram décadas até que os sobreviventes começassem a partilhar as suas experiências e, por vezes, eram criticados por serem anti-semitas ou caluniarem Israel por o fazerem.

Antes, como agora, qualquer crítica que se faça à pulsão sionista de Israel é de pronto qualificada como anti-semita.

No entanto, nem todos os veteranos envolvidos acreditam num encobrimento. O ex-suboficial da Marinha Marvin Nowicki, o principal analista de língua hebraica a bordo de um avião espião EC-121 da Marinha dos EUA que estava a interceptar as comunicações dos aviões israelitas quando estes atacavam o Liberty, acredita que o ataque tenha sido um acidente. Numa carta enviada ao Wall Street Journal em 2001, declarou que, apesar de ter ouvido e registado as referências dos pilotos e capitães israelitas à bandeira dos EUA hasteada no convés do Liberty, essas observações só foram feitas depois de o ataque estar em curso, e não antes. Foi quando os operadores dos aviões e dos torpedeiros se aproximaram do Liberty, recordou Nowicki, que puderam reconhecer e, portanto, fazer referência à bandeira americana.

Na altura, sem que Nowicki soubesse, a sua carta ao editor suscitou preocupações na NSA por ele ter revelado informações confidenciais sobre o Liberty. O segundo documento de Snowden, datado de 2002, referia várias revelações na sua carta “em torno das fontes e métodos da Agência de Segurança Nacional ou da capacidade da NSA para explorar com sucesso um alvo estrangeiro”. Embora o documento não especifique que pormenores do artigo de Nowicki constituíam tais revelações, faz referência a materiais relacionados com a investigação. Nowicki, numa declaração que suscitaria aparente preocupação tanto na NSA como no Serviço de Investigação Criminal Naval, classificou o acidente como um “erro grosseiro”. “Como é que o posso provar?”, escreveu. “Não posso, a menos que as transcrições/fitas sejam encontradas e divulgadas ao público. Vi-as pela última vez numa gaveta da secretária da NSA no final dos anos 70, antes de deixar o serviço.”

Quaxe seis décadas após o ataque, e num clima geopolítico radicalmente diferente do da Guerra dos Seis Dias, a informação disponível sobre o episódio e as investigações subsequentes é extremamente limitada. Os inquéritos efectuados pelos meios de comunicação social e pelos sobreviventes produziram resultados contraditórios, apesar das tentativas consideráveis; o programa Nightline da ABC entrevistou sobreviventes décadas após o ataque, cujos resultados nunca foram para o ar. E embora James Bamford presuma que isto se deve ao facto de as partes interessadas não quererem que informações desagradáveis sobre Israel fossem transmitidas na televisão americana, o então apresentador do Nightline, Ted Koppel, disse o contrário:

“Correndo o risco de contribuir para o verniz de ‘encobrimento’ que rodeia qualquer discussão sobre a história do USS Liberty, a minha única recordação é que não fizemos nada porque não encontrámos nada de novo ou substantivo.”

E, ao que parece, mais ninguém tentou chegar à verdade, com raras excepções, como este documento do Redacted, em que o sobrevivente do USS Liberty Phil Tourney dá conta dos acontecimentos, acusando as forças militares de Israel de “assassinato a sangue frio”.