No livro “Introdução à Ciência do Direito”, o jurista brasileiro Miguel Reale cunhou a expressão “jurisfação”, que seria o ato de tornar tudo em algo jurídico, e citava “a progressiva jurisfação da vida social”, onde as relações humanas se invalidavam perante as relações legais.
O filósofo Olavo de Carvalho – fonte deste artigo – considera tal processo avassalador, destituído de quaisquer limites, sendo a regulação legal a única verdade aceita. Ora, diz Olavo que um dos elementos fundamentais para a existência de uma democracia é um Poder Legislativo atuante e soberano perante o Executivo e Judiciário (visão a qual só concordo integralmente se o sistema de governo for parlamentarista). A instituição citada acima, entretanto, é composta no Brasil por quase seiscentos eleitos, que gastam seus dias a elaborar novas leis e regulamentações. E quantas são feitas, ao longo de um ano? Podemos estimar algo em torno de vinte a trinta mil – aprovadas ou não.
Tais leis vão, progressivamente, regulamentando coisas que anteriormente não eram regulamentadas, fazendo com que a onipresença do Estado sobre cada detalhe de nossas vidas torne-se cada vez maior e chegando às raias do paroxismo em determinações como “a proibição do uso do saleiro em mesas de restaurantes”, objetivando “proteger o povo dos males da hipertensão”.
O fato é que a realidade em que vivemos é a do Estado cada vez mais dominante, regulador, interventor e travestindo este abuso em “garantias de nossos direitos e liberdades”, expressão muito cara às facções progressistas no Congresso verde-amarelo.
O tempo traz o costume e terminamos por nos habituar ao fato real sempre sendo substituído pela lei, não mais nos importando e chegando ao ponto de não sermos legalmente “ninguém”, se um documento oficial não provar o contrário. Ora, haverá maior prova de existência além de sua própria presença em algum lugar?
Em um romance de Luigi Pirandello, “O Falecido Matias Pascal”, o personagem-título cansa-se de sua vida, abandona tudo e desaparece. Tempos depois, porém, a saudade o vence e Matias retorna à sua cidade para descobrir, chocado, que era considerado morto – inclusive com o reconhecimento de sua antiga mulher. E não havia retorno, ele era agora considerado oficialmente “falecido” e não teria como reverter a situação.
Assim, o personagem descobre que os documentos que o declaravam morto continham uma realidade superior à de sua própria presença e existência. Ele era um “nada”, pois o mundo enxergava apenas papéis e carimbos.
Esta é a nossa triste realidade cotidiana, a “jurisfação” percebida por Miguel Reale: como é possível que o Estado me diga quem eu sou, assim me defina e imponha tal condição, independente de fatos palpáveis e notórios? Como é admissível que o Estado tutele cada ato de minha vida, como se eu fosse um incapaz mental?
Se a identidade oficial prevalece sobre os dados da experiência direta (eu, aqui), somos apenas quem a sociedade – o Estado – diz que somos, através de um documento. Assim, hoje não se concebe que um ser humano seja algo de “per se”, por si mesmo, sem o devido reconhecimento estatal. E este é o argumento básico, fundamental do movimento abortista e daqueles que o defendem: só somos humanos após o Estado nos conceder tal condição. Cabe, portanto, perguntar como tais pessoas e entidades consideram um bebê, ainda na barriga da mãe – alguém que ainda não possui “existência legal” devidamente reconhecida pelo Estado (e cautelosamente deixado na área de sombra pela ciência)? Eles mesmos respondem: um “feto”.
Ideia falsa, monstruosa porém irresistível, para eles.
Se vivemos todos em uma sociedade manietada sob tais conceitos, não há como argumentar contra abortistas pelo fato de falarmos sobre seres humanos e eles, de “fetos”. São pessoas que não enxergam suas próprias identidades, em si mesmos, mas tão somente naquilo que a sociedade o definiu. Se alguém crê que sua personalidade e identidade são concessões estatais, por que raios achará que um “feto” – que não possui ainda nada disso – será uma pessoa como ele?
Não há argumentos que convençam um abortista, pois é preciso mudar a percepção que tem de si mesmo – e isto é fruto da propagação endêmica das teses epicuristas nos anos 80, no Brasil, denunciada por Olavo de Carvalho em seu livro “O Jardim das Aflições”.
O ponto focal deste epicurismo, semeado pelo sinistro José Américo Motta Peçanha em suas palestras, é a sedutora proposta de que não devemos tentar entender ou nos adaptar à realidade mas, sim, criar a nossa própria e nela nos refugiarmos – uma esquizofrenia filosófica, mas confortável fuga que abriga covardes acadêmicos e ideológicos até os dias de hoje. Não à toa, 95% das mulheres favoráveis ao aborto possuem nível universitário e são, portanto, já devidamente doutrinadas: seus pobres cérebros sofreram a “laqueadura” progressista.
Diante de tal estado de coisas, não há como negar que estamos diante de uma avassaladora realidade, a qual só poderá ser modificada à custa de muito tempo, esforços e total correção em nosso sistema educacional.
Um Estado interventor sempre danifica a psique humana; os efeitos em nosso país ainda serão sentidos e sofridos por décadas.
Pergunto: na Europa dá-se o mesmo?
WALTER BIANCARDINE
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Walter Biancardine foi aluno de Olavo de Carvalho, é analista político, jornalista (Diário Cabofriense, Rede Lagos TV, Rádio Ondas Fm) e blogger; foi funcionário da OEA – Organização dos Estados Americanos.
As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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