O título desta notícia do Observador é trágico-cómico. E tem camadas sobre camadas de significado, embora lá tenham sido colocadas inadvertidamente.
Ana Suspiro diz-nos logo à cabeça da sua prodigiosa prosa que devemos estar gratos por sermos roubados, porque espanhóis em particular e europeus em geral são ainda mais roubados do que nós. No tom paternalista que caracteriza a imprensa convencional contemporânea, a Ana aconselha-nos assim, num esforço comparativo, o conformismo, a resignação e a passividade, mesmo quando no espaço de um semestre apenas a conta da luz aumenta 15%.
É notável o esforço aqui desenvolvido para desculpar o sector da distribuição energética, não vão os senhores da EDP ficarem zangados com a sua escriba, tanto como é evidente a manobra de poupar o governo à justa responsabilidade, crime de pena capital, no ‘jornalismo’ dos tempos que correm.
Valerá a pena, por ser o facto tão óbvio, contrapor à consolação proposta pela redactora do Observador, que os portugueses ganham muito menos que os espanhóis em geral e os europeus em particular, e que, por isso, já pagam na verdade muito mais do que deviam pela eletricidade que consomem?
Não, não vale a pena, porque a Ana Suspiro não escreve para que os seus leitores exercitem a dialéctica. Escreve para cumprir a agenda dos poderes corporativos instalados.
Valerá a pena, por ser a evidência claríssima, argumentar que os preços das energias têm disparado de forma ensandecida nos últimos anos por factores que nada têm a a ver com a sua produção e distribuição, mas por decisões políticas, excessivamente desastrosas para que a incompetência seja plausível, relacionadas com a precipitada, impensada e deficitária transição para as ‘renováveis’, mais caras e bem mais escassas, tanto como com as sanções à produção russa?
Também não, porque a rapariga será por certo uma devota da religião do apocalipse climático, e fã incondicional do artista Zelensky. Para ‘salvar o planeta’ e redimir o comediante, Ana Suspiro estará preparada para anunciar calmamente aos portugueses que a electricidade irá aumentar 100% por trimestre em 2025, vendendo a calamidade como uma boa notícia, na medida em que os suecos vão pagá-la ainda mais cara.
Isto embora a explicação que lhe deram para o aumento de preços, e que ela comeu acriticamente, como qualquer funcionário dos pravdas neo-liberais que infectam o espectro mediático ocidental, nem sequer esconda a falência das energias ditas ‘limpas’, já que lemos no texto, logo no seu início:
“Esta subida é explicada pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos com o agravamento dos custos de interesse económico geral, onde está incluída a remuneração garantida a produtores renováveis.”
As energias renováveis, como os veículos eléctricos, e como a maior parte das iniciativas geniais dos líderes globalistas que presidem aos nossos desgraçados destinos, são tão espertas e competitivas e rentáveis que não vivem sem que os produtores tenham garantidas “remunerações” pagas pelos contribuintes a jusante e pelos clientes a montante, para dobrados lucros daqueles empresários que seguem a agenda de Bruxelas como quem descobriu um filão interminável na grande mina de Midas.
A Ana Suspiro, inconscientemente, reconhece que um aumento de 15% na electricidade doméstica é uma brutalidade obscena, e é por isso que, depois de muitas horas a pensar como é que ia escrever a notícia sem irritar quem lhe paga o ordenado nem molestar os seus infelizes leitores (porque as palavras aleijam!), saiu-se com este truque de prestidigitação: consolem-se as almas com a desgraça dos outros, mesmo quando os outros são menos desgraçados que nós.
A missão profissional desta senhora não tem nada a ver com informar. Trata-se muito simplesmente de fabricar consentimento.
Mas vamos, por ser divertido, mais do que por ser instrutivo, seguir a lógica da ‘jornalista’:
Se devemos ficar felizes por sermos menos roubados do que os espanhóis, também devemos ser gratos às ‘autoridades’ lusitanas por não sermos tão pobres, por enquanto, como os Marroquinos? Por não sermos tão subdesenvolvidos como os sudaneses? Devemos agradecer a Luís Montenegro ou a António Costa, ou a todos os geniais primeiros ministros da Terceira República o facto de uma boa garrafa de vinho em Portugal custar metade do que o seu equivalente em França (por enquanto)? Será graças às sacrossantas estruturas do poder político e económico, de que o Observador é fiel guardião, que temos mais horas de sol por ano que os finlandeses? Devemos louvar o Deus-Estado por não sermos tão fascizados como os canadianos e os britânicos dos tempos que correm?
É com a infelicidade dos outros que somos felizes, ò Suspiro?
AFONSO BELISÁRIO
Oficial fuzileiro (RD) . Polemista . Português de Sagres
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As opiniões do autor não reflectem necessariamente a posição do ContraCultura.
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