Ludwig van Beethoven . 1815 . Joseph Mahler

 

Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!” *
Ludwig van Beethoven, comentário escrito no fim da pauta do Quarteto de Cordas em F Maior, Op. 135

 

Ludwig van Beethoven (1770-1827). O nome, gordo e grandiloquente, soa génio e ele era um. Trincado pelos maus tratos de seu pai, que o queria em criança bobo da corte como Mozart (para desgraça dos dois), passado a ferro pela crueldade da vida e humilhado pelo seu próprio temperamento de touro na arena, espancado pelo desgosto de amor (ele, que só teve um amor), empalado na sua moral austera, supliciado pela surdez, garrotado pela ausência de talento do sobrinho que amava, encornado pelo irmão, vilipendiado pela doença, aprisionado em Viena, enlouquecido pela solidão; Beethoven transcendeu o desespero e gritou arte a viva voz.

Das suas nove sinfonias, o ContraCultura destaca as quatro mais sofridas, que são testemunho de um incomensurável talento, mas também das vicissitudes da vida do imortal compositor e da força das suas convicções, muitas vezes tragicamente contraditórias.

 

Entre Napoleão e Prometeu: a Eroica.

Em 1802 Beethoven começa a desbravar o caminho que o vai levar à posteridade, quando inicia a composição da Sinfonia nº 3 em Mi bemol Maior, Op.5′, a célebre “Heroica”, que seria apresentada ao mundo dois anos depois. Obra magistral, sem precedentes na história da música sinfónica, marca o início do período Romântico.

A peça é poderosa e ousada, e a partir dos impressionantes acordes de abertura é fácil perceber que estamos perante algo de grandioso. Depois desse eloquente primeiro movimento, Beethoven faz uma escolha sem precedentes: escreve uma Marcha Fúnebre em que o tema de abertura reaparece entre os diversos episódios. O final, de máxima originalidade, é também de escala gigantesca, em forma de variações livres, harmonizadas num complexo trabalho de fugas, contraponto invertido e flutuações dramáticas que conduzem a uma triunfante e épica conclusão.

Seria assim apropriado que esta magnífica sinfonia fosse dedicada a alguém de valor inegável, reconhecida bravura e proeminência social, e Ludwig dedicou-a inicialmente a Napoleão, que considerava como a encarnação dos ideais liberais e democráticos da Revolução Francesa. O figurão desempenhava, na altura, o cargo de primeiro cônsul da jovem república francesa, e Beethoven comparava-o aos mais justos e sábios cônsules romanos. A Terceira Sinfonia seria, assim, um elogio apoteótico de Bonaparte. O compositor inscreveu na folha de rosto da partitura:

Sinfonia grande intitolata Buonaparte, del Signore Louis van Beethoven” **

Em maio de 1804, porém, Napoleão fez-se proclamar imperador. Vendo os ideais revolucionários traídos pela ambição e a tirania do seu herói romântico, Beethoven teve vários acessos furibundos e crises de mau feitio. Numa cópia da partitura que chegou até nós, é perceptível que apagou o nome Bonaparte com tanta força que fez um buraco na pauta. A inscrição na primeira página passou a ser então:

“Sinfonia Eroica per festeggiare il sovvenire di un grand’ Uomo” ***

A discussão sobre a identidade deste “grand’ Uomo” alimentou dois séculos de polémicas mas é mais ou menos aceite, nos dias de hoje, que esse substituto do tirano Bonaparte é uma figura da mitologia clássica: Prometeu. E percebe-se porquê, considerando a atribulada e sofrida vida do compositor, as suas convicções libertárias e a sua obra transcendente. Beethoven revia-se no personagem iniciático que, por oferecer o fogo da liberdade intelectual ao homem, pagou com interminável tortura o preço da sua ousadia.

 

 

Quinta Sinfonia: quando a morte bate à porta.

A Sinfonia n.º 5 em Dó menor Op. 67, dita “Sinfonia do Destino” e escrita entre 1804 e 1808, é uma das composições mais populares e mais conhecidas de todo o repertório da Música Clássica.

Trata-se da primeira sinfonia que Beethoven escreveu em tonalidade menor, o que só voltaria a acontecer em 1824 com a Nona.

Monumento da criação artística humana, os seus quatro movimentos caracterizam-se pela homogeneidade orquestral, sendo em simultâneo um exemplo de alternância: o primeiro movimento, revelando grande tensão, denunciada pelas cordas e elevada a um dramatismo extremo, contrasta com a solenidade do segundo, marcha fúnebre bela e emocionante. O terceiro andamento, crispado, cria um jogo pungente de contradições com o quarto, que é de carácter triunfal e magnificente.

As quatros célebres primeiras notas foram inspiradas na ideia da morte, que ao bater à porta do infeliz condenado produz o medo e o desespero, e o obriga a últimas palavras. A reflexão sobre a mortalidade do homem e a efemeridade da sua existência foi com certeza gerada pela ideia de suicídio que recorrentemente o assombrava e que decorria do agravamento da congestão dos centros auditivos internos, que lhe tinha sido diagnosticada uns anos antes. Sobre a tenebrosa aflição que por cruel ironia recaiu num dos maiores compositores da história da música, confessava em 1802:

“Devo viver como um exilado. Se me acerco de um grupo, sinto-me preso de uma pungente angústia, pelo receio que descubram o meu triste estado. (…) Que humilhação quando ao meu lado alguém percebeu o som longínquo de uma flauta e eu nada ouvi! Ou escutou o canto de um pastor e eu nada escutei! Esses incidentes levaram-me ao desespero e pouco faltou para que, por minhas próprias mãos, eu pusesse fim à minha existência. Só a arte me amparou!”

A arte contra a morte. Eis a Quinta Sinfonia, se quisermos ser económicos com as palavras.

 

 

Ludwig van Beethove . 1820 . Joseph Karl Stieler

 

As razões da felicidade ou a Oitava Sinfonia.

Apesar do rol de padecimentos infernais a que Beethoven foi sujeito, quem ouve a Oitava Sinfonia chega facilmente à conclusão que a obra foi escrita por um homem contente com a vida. Tchaikovsky – ele mesmo, tão egoísta em elogios – escreveu sobre esta obra prima o seguinte:

“É o último e brilhante sorriso, a última resposta, dada pelo poeta do arrependimento e do desespero à voz da alegria.”

Escrita em 1812, esta sinfonia desvia-se da tradição clássica, deixando para o final o seu movimento mais intenso, e integra passagens alegres e altas, com muitas notas acentuadas. Vários segmentos são entendidos até como piadas musicais e Beethoven referia-se-lhe como “a minha pequena sinfonia em fá maior”.

Acontece porém que, à época da sua composição, o Mestre vivia, como sempre viveu, em fúria e dor e danação. Atirado para a casa do seu irmão Johann em Linz, com o propósito de curar uma feroz intoxicação alimentar, cedo descobre que o desgraçado se perde em delícias e volúpias com a criada de quarto. Beethoven desaprova o tórrido romance com unhas e dentes: faz tudo o que lhe é possível para acabar com o idílio, incluindo queixas à polícia e protestos no bispado. Contrariando a austera tirania moral do seu irmão mais velho, Johann arranja maneira de casar com a criada da noite para o dia, e é por isso que rebenta a Oitava Sinfonia. Não como uma explosão feliz, mas como um estoiro de raiva e impotência.

 

 

A vingança que reverbera na Nona Sinfonia.

A Sinfonia n.° 9 em ré menor, op. 125, Coral, é a última sinfonia completa composta por Ludwig van Beethoven. Concluída em 1824, é uma das partituras mais conhecidas do repertório ocidental, ícone primordial da música romântica, e uma das grandes obras-primas de Beethoven.

A Nona incorpora parte do poema An die Freude (“À Alegria”), uma ode escrita por Friedrich Schiller, com o texto cantado por solistas e coro, no seu último e épico movimento. Ao dar o mesmo protagonismo à voz humana que atribui aos instrumentos, Beethoven cria uma obra de grande alcance melódico e onírico que, a dado passo, parece perdoar a humanidade e os deuses, num abençoado esquecimento da cruz que nos espera a todos.

Mas esse perdão é apenas aparente. O grande mestre da história da música não perdoa ninguém e muito menos os deuses. E porque sabemos isto? Porque ele próprio o escreveu: “Muss es sein? Es muss sein! Es muss sein!” Pois tinha que ser assim e não podia ser de outra maneira. Tinha que ser surdo o génio, tinha que ser traído e insultado, tinha que ser castrado e enfurecido, injustiçado e diminuído, ignorado e humilhado. Não seria a arte imortal se fosse ausente das dores da vida. E não seria humano quem, mesmo assim, perdoasse o verdugo.

Filósofos e escritores, biógrafos e clubes de fãs andam há séculos às voltas com o imperativo categórico do Opús 135, sem perceber coisa alguma. Milan Kundera até tentou vender a história de que o estranho epigrama resultava de uma zanga entre o mestre e uma das suas criadas. Disparate enorme. O que Beethoven quis deixar claro é cristalino: o que tem que ser, tem muita força. E a força da Nona Sinfonia só resulta da angústia que nos oferece o mundo, o homem, a filosofia e a religião. Neste sentido, é de crer que a arte, para Ludwing van Beethoven, era uma espécie de vingança.

 

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* Terá que ser? Tem que ser. Tem que ser.
** Sinfonia magna, intitulada Bonaparte, do Senhor Louis van Beethoven
*** Sinfonia Heroica, composta para celebrar a memória de um grande homem.