O Departamento de Estado da administração Biden, que anteriormente hesitou em criticar o processo de retirada do Afeganistão que a Casa Branca desastradamente orquestrou, divulgou um relatório na sexta-feira passada que detalha o fracasso do epílogo da presença dos EUA neste país do Médio Oriente.

Durante dois anos, Biden tentou repetidamente esquivar-se da responsabilidade pela retirada precipitada e caótica das tropas, que vai pertencer, para todo o sempre, ao anedotário da história militar da América e que levou à morte de 13 militares dos EUA e ao abandono em linhas inimigas de milhares de americanos, aliados dos EUA e suas famílias.

A revisão não classificada do Departamento de Estado, que tem menos de duas dúzias de páginas devido a extensos segmentos que foram censurados, confirma, embora timidamente, que a execução final da retirada “colocou desafios significativos ao Departamento”. A confissão, divulgada publicamente mais de um ano depois de concluída, surgiu poucas horas antes do início do fim de semana que comemora o 4 de Julho, Dia da Independência.

Entre esses “desafios” estavam as políticas rigorosas em vigor em relação à Covid, o que “significava que alguns novos funcionários da embaixada não conheciam outros nos seus gabinetes até a embaixada ser evacuada para o aeroporto de Cabul”, a “falta de funcionários confirmados pelo Senado no Departamento e nas embaixadas” e a rotatividade diplomática inoportuna.

Simplificando, a pressa de Biden “agravou as dificuldades que o Departamento enfrentou para mitigar a perda dos principais facilitadores das forças armadas”, e a sua falta de planeamento “teve consequências graves para a viabilidade do governo afegão e da sua segurança”.

Considerando que os EUA deixaram o Afeganistão nas mãos dos talibãs, precisamente o inimigo que combateram durante vinte anos, vinte, podemos considerar que estas declarações pecam por modestas.

A maioria dos americanos desaprovou a forma como a administração Biden lidou com a crise, mas uma avaliação das acções da Casa Branca divulgada pelo Conselho de Segurança Nacional no início deste ano transferiu a maior parte da culpa para o antigo Presidente Donald Trump. Claro.

 

 

A recente avaliação também tenta atribuir parte do desastre ao antecessor de Biden. No entanto, não foi o ex-presidente que prometeu uma partida “segura e ordeira”, que deixou milhares de americanos para trás enquanto os talibãs tomavam o poder e que entregou milhares de milhões de dólares em equipamento militar para ser utilizado pelo inimigo.

Foi Biden quem fez tudo isso e muito mais, incluindo acolher nos EUA centenas de afegãos que constavam da lista de observação do Pentágono, sem que os seus perfis fossem escrutinados, enquanto milhares de cidadãos americanos aguardavam resgate, atrás das linhas inimigas.

Quando a crise chegou ao auge em 2021, a administração Biden não aceitou a responsabilidade pela rápida ruína do Afeganistão. O Departamento de Estado, especificamente, afirmou repetidamente que “herdámos um prazo, mas não herdámos um plano”.

“Podia e devia ter sido feito mais”, admitiu o Secretário de Estado Antony Blinken em abril.

A revisão termina, de forma muito característica dos apparatchiks de Washington, com um parágrafo de elogios do Departamento de Estado pela forma como o Departamento de Estado lidou com a crise.

“Terminamos esta análise pós-acção onde começámos, com elogios e admiração pelos nossos colegas de todo o Departamento. Fizemos uma série de recomendações sobre as formas como pensamos que o Departamento poderia preparar-se melhor para futuras crises desta complexidades, mas, em última análise, não há substituto para os profissionais inteligentes, trabalhadores e dedicados com os quais o Departamento contou nesta crise. Devemos orgulhar-nos do que eles e os seus parceiros de uniforme realizaram durante esta evacuação e do que continuam a fazer para ajudar os cidadãos americanos e os afegãos em risco após a tomada do poder pelos talibãs.”

Surrealista.

Um detalhe curioso: muitas das fontes que são reportadas no relatório preferiram manter o anonimato. Porque será? Afinal, são profissionais “inteligentes, trabalhadores e dedicados”, dignos do orgulho do departamento.

 

 

A verdade é que depois de enviarem para a morte ou para o irrecuperável trauma centenas de milhares de seres humanos e de desperdiçarem triliões de dólares na operação lunática de engenharia social e económica que sonharam possível, os senhores de Washington e do Pentágono deixaram o Afeganistão pior do que o encontraram. E em debandada caótica, descontrolada, que é só por si uma derrota somada a outra.

Os americanos abandonaram um país em que as prisões onde tinham sido encarcerados alguns dos piores criminosos e terroristas das redondezas caíram sob domínio dos talibãs, que os libertaram aos milhares. A administração Biden chegou ao ponto de pedir – sim, pedir – encarecidamente ao inimigo que por favor poupasse a embaixada americana em Cabul e as pessoas que ainda lá estavam dentro.

Em 20 anos de guerra e entre os 18 generais que chefiaram a disfuncional máquina de guerra no Afeganistão, nenhum se demitiu. Só um foi demitido. E porque ousou desrespeitar a sagrada opinião de Barak Obama, não por qualquer razão relacionada com a infeliz realidade do teatro de operações.

Em 20 anos de guerra, 4 inquilinos da Casa Branca e milhares de locatários do Capitólio cometeram sucessivamente os mesmos erros, ignorando completamente a geografia natural, humana e política de um território que é basicamente impraticável desde que por lá passou Alexandre, há coisa de vinte e três séculos atrás.

Em 20 anos de guerra, organizações anedóticas como a CIA e a NSA e o Departamento de Estado prosseguiram alegremente rumo ao desastre, como se o projecto de fazer do Afeganistão um país uno e civilizado estivesse a correr às mil maravilhas. Como se esse projecto fosse sequer possível.

São tantos os implicados nesta conspiração de estúpidos, e durante tanto tempo conspiraram estupidamente, que não há maneira de sobrarem os inocentes necessários à boa e mais que legítima prossecução de um apuro de responsabilidades.

Até porque a história da intervenção militar dos EUA no Afeganistão não tem possibilidade de redenção. É a Odisseia ao contrário: um elíptico e interminável regresso ao inferno.

Ainda assim, o Departamento de Estado desperdiça parágrafos com elogios ao Departamento de Estado.

Não há limite para a ignomínia americana.