Messalina . Peder Severin Krøyer . 1881

 

Porque somos preguiçosos, porque somos ignorantes, porque somos crédulos, porque nos deixamos facilmente enfeitiçar por gadgets e foguetões, porque gostamos de pensar que somos mais educados ou civilizados ou inteligentes ou esclarecidos ou sensíveis ou tolerantes do que os outros, porque na verdade não somos nada disso e, pelo contrário, apresentamo-nos no Século XXI com os cérebros mais lavados do que em qualquer altura da história da humanidade, cristalizámos esta ideia de que vivemos numa era que é moralmente superior àquelas em que viveram os nossos antepassados.

Confundimos progresso tecnológico com superioridade moral, bem-estar material com sofisticação civilizacional e consideramo-nos eticamente superiores porque conseguimos tirar belas fotografias com um telefone sem fios ou porque um professor de sociologia nos convenceu que somos muito melhores pessoas do que Luís XIV porque separamos o lixo em contentores diferentes ou porque no telejornal um qualquer destituído mental nos aconselhou a colocar uma baindeirinha da Ucrânia no perfil do Twitter, gesto heroico que automaticamente nos projecta para uma condição existencial acima daquela que Pedro O Grande alguma vez poderia aspirar.

Nada há de mais falso, claro. Da mesma forma que acontece noutras manifestações do espírito humano como a arte, a filosofia ou a religião, o comportamento moral não é susceptível de upgrade nem se adequa a uma linha de pensamento darwiniano. E é fácil constatar este facto. Desafio o estimado leitor a encontrar na actualidade um estadista eticamente irrepreensível como Marco Aurélio, que há vinte séculos atrás lutava todos os dias para refrear o poder absoluto que detinha. Convido a paciente leitora a nomear um filósofo contemporâneo que seja coerente com a sua doutrina como Diógenes, que viveu grande parte da sua vida numa pobreza extrema, e voluntária. Ou um general corajoso e intrépido como Alexandre, que não por escassas vezes dizimava o inimigo na vanguarda das suas falanges. Ou um poeta abnegado como Camões, que para salvar os seus escritos ia morrendo afogado. Ou um rei íntegro como D. João II, que quando se viu na obrigação de executar um membro da família por traição à coroa optou por dispensar os carrascos e fazê-lo com as suas próprias mãos.

Não, gentil leitor, o comodoro do navio negreiro do século XVI não é moralmente inferior ao Capitão Iglo. O comodoro do navio negreiro do século XVI nasceu e foi criado num mundo muito diferente deste nosso mundo-sofá. Teve que arrancar orelhas à dentada, furar tempestades com cascas de noz, transcender a malária e a gonorreia, escapar ao caldeirão onde ia sendo cozido vivo por uma tribo na Guiné, retirar estilhaços de canhoaria holandesa dos testículos, sem anestesia para além do rum, sobreviver a pestes e às doenças das putas, travar-se de porradas com mouros e mercenários, berberes e canibais e, ainda assim, levantar marcos em nome de Cristo e do seu rei e de um princípio de civilização nos mais remotos e selváticos lugares que a geografia enigmática e abissal tinha para oferecer.

Perdoar-me-á, prezada leitora, mas a sua integridade ética poderá não ser muito distante da que julgava apropriada a senhora dona Urraca, ou a Rainha Elisabeth de Inglaterra, ou Catarina da Rússia, ou até Messalina, a mulher do imperador Cláudio que terá recebido no seu leito para lá de 70 amantes. E não é por ter gasto uma pipa de massa na aquisição de um Tesla, na singela e anedótica convicção de que vai assim salvar o planeta, que distancia a sua pegada existencial das personagens históricas de séculos passados. O Tesla de agora não é diferente da indulgência do século XV. A leitora quer salvar a sua alma perante os ditames da igreja ambientalista da mesma forma que aristocratas e burgueses pagavam o devido tributo por uma entrada VIP no céu da igreja romana. Toda a tecnologia que Elon Musk pode colocar ao seu dispor não irá redimi-la porém dos seus pecados íntimos, que são inerentes à natureza humana, inevitáveis e trans-geracionais.

No contexto da condição humana, não existe progresso moral. É verdade que vivemos hoje com cuidados de saúde universais e que qualquer imbecil pode tirar um doutoramento em ciência política. É verdade que as pessoas tristes podem tomar comprimidos para se sentirem menos tristes ou conversar com estranhos sobre os seus dilemas mais secretos a 150 euros por hora. É verdade que o estado subsidia aqueles que não podem ou não querem trabalhar e toma conta das crianças quando os pais delas têm mais que fazer. É verdade que já não precisamos de andar armados pela rua porque confiámos a segurança a pessoas a quem não confiávamos mais nada. É verdade que fazemos turismo em vez de conquista. É verdade que contamos com a ciência para nos mentir de forma mais convincente do que os padres sabem fazer. É verdade que nos disponibilizam centros comerciais e clubes de futebol para substituir a igreja. É verdade que, pelo menos aparentemente, temos a possibilidade de eleger os bandidos que nos vão depois roubar metade dos nossos rendimentos. É verdade que dispomos hoje de aspirinas, computadores, redes sociais, electrodomésticos, lojas Ikea, navegação por GPS e aplicações digitais para substituir a amizade. É verdade que podemos encontrar alguém no Tinder que esteja disponível para praticar sexo no imediato e pornografia gratuita para evitarmos a intimidade inconveniente com o sexo oposto. É verdade que gozamos de conforto material como nunca foi possível antes. É verdade que não sabemos o que é ter fome ou sede ou frio ou medo de lobos. Mas isso não faz de nós melhores pessoas. A julgar pelo espectáculo de degradação civilizacional que observamos nos dias que correm falidos, pelo contrário.

O progresso material devia até fazer de nós gente mais cuidadosa quando julgamos aqueles que não tiveram as vantagens e os privilégios e a paz e as mordomias que temos hoje. Lamentavelmente, nem é isso que acontece. Saltamos alegremente do canto da nossa insignificância para levar ao tribunal da pouca vergonha toda a gente que já morreu e que, por isso, nem sequer se pode defender. De Winston Churchill a Júlio César, ninguém se salva na grande inquisição da modernidade. São todos uns assassinos, racistas, sexistas, fascistas, esclavagistas da pior espécie. Todos, menos nós, espécie impoluta de justiceiros sociais do Facebook. Esquecemo-nos que também nós seremos assim disparatadamente julgados. E que veredicto será pronunciado sobre estes tempos que vivemos, sobre os seres humanos que nestes tempos vivem, no século vinte e cinco?

Se o critério que usamos hoje para julgar quem ontem viveu for amanhã o mesmo, a probabilidade de sermos absolvidos pelas gerações vindouras será por certo remota.