No passado fim de semana registou-se mais uma onda de gigantescos protestos contra a agenda de Emmanuel Macron, desta vez a propósito da intenção do seu governo em prolongar a idade da reforma dos 62 para os 64 anos.
France… Massive protest against the Macron government. pic.twitter.com/hWSWslHCsi
— Pelham (@Resist_05) January 20, 2023
Independentemente da racionalidade destes protestos, que neste caso foram organizados pelos sindicatos, importa reflectir sobre a voz da rua francesa, no contexto da sua importância para a vida política europeia e da feroz oposição que lhe tem sido feita pelos poderes instituídos. O ContraCultura contribui para essa reflexão com um texto publicado em Novembro de 2018 no Blogville, a propósito do movimento “Gilets Jaunes” (coletes amarelos).
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Dos coletes amarelos à polícia do pensamento: breve elegia da Civilização Ocidental.
O movimento “Gilets Jaunes” é um dos mais sintomáticos fenómenos dos dias que correm. Enquanto as elites bem pensantes insistem nos fascismos culturais, linguísticos e ambientais – vendendo-os ainda por cima como valores virtuosos, auto-evidentes e por isso sem necessidade de discussão ou liberdade de contraditório – há cada vez mais gente que se revolta. A gente do meio. Aquele tipo de gente que não encontramos geralmente em manifestações e que não tem o glorificado hobby da cidadania e que costuma deixar a ciência política ao cuidado da inteligência dos comentadores de futebol. Esta estranha rebelião tem-se manifestado sobretudo através do voto, como aconteceu nos Estados Unidos com Trump, em Inglaterra com o Brexit, em Itália com Salvini e no Brasil com Bolsonaro, mas também chega às ruas, como agora acontece em França.
Assistimos na última década, na Europa e nos Estados Unidos, a uma divergência evidente entre as elites e as massas e esta divergência abre-se sobre vertentes civilizacionais de largo espectro como a imigração, a natureza jurídica das fronteiras e o conceito das nações; a identidade e a história dos povos; as virtudes da liberdade de expressão e os seus limites; a identidade étnica e rácica e o decorrente conflito com uma ideia de meritocracia; a sexualidade e as suas implicações nas dinâmicas sociais, no direito e na filologia. Há na verdade, nas sociedades ocidentais contemporâneas, um debate existencial, intrincado e barricado, entre as classes que medeiam e as classe que mandam.
De tal forma é vibrante e esquizofrénico este conflito, que até os polos ideológicos trocaram de lugar. Hoje, é a direita que se manifesta contra os totalitarismos das classes dirigentes. É a direita que luta pela liberdade de expressão. O se redige a seguir é do domínio do irreal, mas a verdade é esta: actualmente, a esquerda ocidental mantém muito melhores relações com o mundo empresarial e com as elites da esfera privada do que a direita. E tem mais facilidade em captar o dinheiro corporativo. Por outro lado, a direita apela agora muito mais aos segmentos sociais economicamente desfavorecidos. Os operários, os pequenos agricultores, as famílias de classe média e média-baixa, os desempregados. Este é o eleitorado típico da família Le Pen, só para citar um caso extremo, mas há mais: nas últimas intercalares dos EUA, 73 dos 100 mais ricos círculos eleitorais do congresso americano elegeram candidatos do Partido Democrata.
Uma das consequências mais nítidas desta rotação epistemológica de grande impacto é o monopólio da opinião. Enquanto a esquerda foi a frente rebelde contra o capitalismo e o mainstream industrial, constituía uma força de equilíbrio que contrariava naturais instintos humanos como a ganância, a corrupção, a insensibilidade perante o sofrimento alheio, etc. Esta posição justificava até, embora discutivelmente, a sobranceria moral que sempre presidiu à fundação das esquerdas.
Mas a partir do momento que entrou em alinhamento com as grandes estruturas do capitalismo, canonizando a globalização dos mercados, retirando à riqueza o seu cunho de pecado, alienando necessariamente a causa dos “trabalhadores” e capitalizando nas cruzadas das minorias e das políticas de identidade, a esquerda tornou-se rapidamente uma força reaccionária, na medida em que domina os media e os aparelhos do poder, sem ter perdido a arrogância ética. Vivemos hoje tempos extremamente perigosos, em que máquinas globais de esmagador poder propagandista, como a Google ou a CNN, funcionam livremente como polícias do pensamento e censores do discurso.
Ora, o que se passou no fim de semana passado em Paris é de difícil processamento para estas organizações de controlo da opinião, habituadas a ver na rua as suas vítimas eleitas (ambientalistas, chegevaristas, femininistas, independentistas, igualitaristas, marxistas, lgbtês e outros artistas do circo mediático ortodoxo) e não a tal resignada maioria silenciosa que, progressivamente, está a ter a deplorável ousadia de contrariar a resignação e quebrar o silêncio. Os motivos desta gente não são os do costume ou os da moda. Não protestam por causa do aquecimento global, nem montam barricadas nos Campos Elísios em defesa dos direitos dos homossexuais, nem levam porrada da polícia por horror da xenofobia. Ou melhor: se os franceses vieram para a rua gritar é precisamente porque estão fartinhos de viver numa república que se preocupa mais com as minorias do que com a classe média, que proteje os bilionários de todo o mundo e ignora os proletários de toda a França, que investe nas casas de banho para travestis e desinveste no combate ao crime urbano, que é ávida a taxar e avarenta a servir quem é taxado. É claro que as redacções do Le Monde ou do New York Times não sabem bem o que fazer com esta matéria. Inimigos históricos das polícias de choque (pelo menos das polícias de choque ocidentais), não podem agora abençoar as cargas sobre civis. Indefectíveis defensores dos arruaceiros das causas fracturantes da esquerda, não têm desta feita grande margem de manobra para condenar a praxis vandalizante. Estes Coletes Amarelos são um embaraço enorme. Mas também e principalmente, um símbolo vivo do caos instalado.
O caso é que andamos todos com as voltas trocadas, nesta segunda década do vigésimo primeiro século depois de Cristo. Confortavelmente instalados nos sofás de um inédito conforto material e de um longo e raro período de paz, estamos, no Ocidente, a perder rapidamente a lucidez e a coragem dos nossos avós. A civilização que construímos, com o esforço épico e o sanguinolento sacrifício de centenas de gerações, cai com velocidade vertiginosa e ruidoso espalhafato num trágico-cómico poço sem fundo. E parece ser já demasiado tarde para que o cataclismo possa ser evitado. Voltemos ao caso francês: se é mais que nítido que Macron está comprometido com as elites globalistas do neoliberalismo, a sua principal herança – ironia dos deuses da república – poderá muito bem ser a de abrir as portas do poder executivo, finalmente, à senhora Le Pen. E esta é a tragédia: dificilmente será esta senhora a salvar a França.
Até porque essa França que merece o combate pela salvação, aqui entre nós gentil leitor, já não existe para ser salva.
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