Com a intenção sincera de proporcionar uma leitura tendencialmente objectiva das circunstâncias que conduziram à invasão por manifestantes pró-Bolsonaro dos três centros de poder fundamentais da democracia brasileira, no passado domingo em Brasília, o Contra-Cultura faz recurso ao testemunho perito e independente de um dos poucos jornalistas de alto perfil em actividade que não envergonha a profissão: Glenn Greenwald.

Para quem nunca tenha ouvido falar neste senhor, uns quantos parágrafos prévios.

 

Greenwald está no mesmo sítio de sempre. A esquerda é que deu uma cabalhota.

 

 

Glenn é escritor, advogado especialista em direito constitucional e jornalista norte-americano, radicado no Rio de Janeiro desde 2005. Em junho de 2013, quando trabalhava para o The Guardian, foi um dos jornalistas que, em parceria com Edward Snowden, levaram a público a existência dos programas secretos de vigilância global dos Estados Unidos, efectuados pela NSA.

A série de reportagens sobre o monstruoso programa de espionagem americana deram ao The Guardian e ao The Washington Post o Prémio Pulitzer de jornalismo em 2014. No Brasil, Glenn foi agraciado com o Prémio Esso de Reportagem, por artigos publicados no jornal O Globo acerca do sistema de vigilância digital, de âmbito doméstico, implementado pelas agências de segurança norte-americanas.

Glenn Greenwald é um clássico liberal nova-iorquino, da espécie que está em vias de extinção: pacifista, tímido marxista, defensor de um escrutínio intenso dos serviços de segurança dos Estados Unidos, das decisões do Pentágono e da influência do complexo militar e industrial, luta desde sempre pela liberdade de expressão, contra abusos do estado sobre os direitos dos cidadãos, e é para todos os efeitos do senso comum um homem de esquerda, tendo ainda por cima militado activamente contra o processo de destituição de Dilma Roussef. Glenn é homossexual, casado, e pai de dois filhos adoptivos. O marido é congressista pelo PSOL, que é um partido socialista libertário, se tal é possível.

Dado este perfil, foi um herói da esquerda até que a esquerda começou a venerar as instituições que hostilizava, como por exemplo o capitalismo corporativo. Até que a esquerda começou a defender a censura, que historicamente combateu. Até que a esquerda se institucionalizou. Agora a esquerda odeia Greenwald de morte, mas a culpa não é dele. Ele continua a fazer o seu trabalho de sempre: denunciar os abusos e a corrupção dos poderes instituídos.

Eis uma recente sequência de tweets que ilustra o perfil combativo e desassombrado de Greenwald.

 

 

O ContraCultura não subscreve vários pontos de vista deste jornalista com o jota capitular. Subscreve completamente outros, como é saudável e natural. Mas sobretudo respeita a sua constante demanda pela verdade dos factos e admira a sua independência, coragem e lucidez. Ao relato do nova-iorquino acrescentaremos alguns outros factos entretanto confirmados, para um enquadramento mais amplo.

 

Um movimento sem líder, uma invasão sem baixas.

 

 

No domingo, 8 de Janeiro, multidões de bolsonaristas invadiram o Congresso, o Palácio Presidencial e o Supremo Tribunal de Justiça, as sedes máximas do poder político e judicial do Brasil. Os amotinados causaram de facto danos materiais nos edifícios. Não há no entanto vítimas mortais nem feridos graves. Nem invenções de falsos heroísmos e fabricadas violências, como aconteceu nos Estados Unidos, a 6 de Janeiro de 2021.

Quando as forças policiais chegaram ao Planalto, em número muito significativo, as multidões começaram a dispersar rapidamente sem que tenham existido confrontos significativos entre as forças de segurança e os manifestantes. A certa altura, os manifestantes refugiaram-se no perímetro do Quartel General das Forças Armadas, também localizado em Brasília, o que criou alguma tensão entre a polícia e as forças militares, mas não se registaram quaisquer incidentes de nota. Foram presas 1200 pessoas.

A reacção da imprensa americana mainstream não se fez esperar: a responsabilidade pelos incidentes em Brasília foi de… Donald Trump. Greenwald faz a crítica deste absurdo, produto até da soberba americana, com tal eloquência que nem é necessário acrescentar mais nada.

Em Portugal, o sistema caiu em peso numa apaixonada dedicação às virtudes redentoras de Lula da Silva. Com o costumeiro e profundamente perturbador uníssono que caracteriza os media ocidentais e o correspondente pensamento das elites, vendeu-se em todo o Ocidente a ideia que é um criminoso condenado que vai salvar o Brasil do fascismo. E, também como sempre, a velha dicotomia: uns podem vandalizar e incendiar e criar caos à vontade, outros não. Não depende das acções cometidas, nem da lei que cai sobre elas, mas da razão ideológica que leva a esses cometimentos.

 

 

E a propósito, é pertinente observar como o Público, que é uma autoridade em democracia financiada pela SONAE, enquadrou os acontecimentos de Brasília:

 

 

Porque é anti-democrático protestar contra Lula da Silva, claro. Porque a democracia só funciona quando Lula da Silva é eleito, claro. Quando Bolsonaro foi eleito, a democracia brasileira não funcionou de todo, claro.

O movimento popular que culminou no domingo e que resulta da desconfiança, que grassa há muitos anos no Brasil, sobre a integridade do sistema eleitoral, foi multipolarizado pelas redes sociais e não tem um líder, já que a família Bolsonaro não deu nunca quaisquer indicações de que apoiava as muitas dezenas de milhões de pessoas que protestaram na rua, desde que os resultados eleitorais foram apurados. Nem o ex-presidente nem os seus filhos fizeram qualquer declaração de carácter insurrecto, que pudesse ameaçar as instituições constitucionais brasileiras, pelo contrário, ao ponto de muitos dos bolsonaristas se sentirem traídos pela sua liderança, ou ausência dela.

 

 

Para mais, Bolsonaro auto-exilou-se em Miami e está a lidar com problemas de saúde que decorrem ainda do episódio em que foi esfaqueado por um lunático, na campanha das eleições que o levaram ao poder. Glenn especula, coerentemente, sobre a possibilidade de um acordo de cavalheiros entre Lula da Silva e Jair Bolsonaro: o novo regime não perseguirá a sua família, que tem riquezas muitas por explicar, obtidas sobretudo durante os anos da presidência, caso o líder do Partido Liberal (PL) saia do país e não faça ondas. Até porque, segundo Greenwald, a situação no campo poderia de facto descambar numa guerra civil, se Bolsonaro apelasse ao levantamento civil e tentasse coordenar um golpe militar que o mantivesse no poder. Isto na medida em que há no Brasil muitas centenas de milhar de activistas conservadores dispostos a tudo e o perigo do exército sair dos quartéis em apoio da causa dos bolsonaristas foi e continua a ser muito real; sendo essa simples hipótese realmente assustadora para toda a gente de bom senso, dado o registo histórico do país. É ainda assim importante sublinhar que a vitória de Lula foi muito estreita e que o país vive uma profunda divisão ideológica.

E por isso é estranho o desaparecimento de Bolsonaro, até porque o ex-presidente passou os últimos anos do seu mandato a proferir declarações públicas de desconfiança em relação ao processo eleitoral – o ContraCultura não sabe se justas ou despropositadas e Glenn Greenwald não comenta também – mas é verdade que, pelo menos tecnicamente, foi o mesmo sistema de recolha de contagem de votos usado agora que colocou o próprio Bolsonaro no Palácio Presidencial e que lhe deu um resultado muito favorável – surpreendentemente favorável – na primeira-volta destas últimas eleições, com importantes vitórias do seu partido na vertente municipal e estadual, por todo o país.

Por outro lado, a invasão das sedes de poder aconteceu num domingo. Ora, num domingo estes espaços apresentam forças de segurança mais reduzidas, não exercem a sua actividade regulamentar, estão esvaziados de políticos e burocratas e até Lula da Silva estava em S. Paulo. O objectivo não era, assim, o de interromper o funcionamento destas instituições ou de perseguir os seus intérpretes.

O governo de Lula está a desencadear várias investigações que procuram encontrar líderes e financiadores do movimento, mas não está a responsabilizar, senão politicamente, Bolsonaro pelos incidentes. Mas, à semelhança do que aconteceu nos Estados Unidos a propósito da invasão do Capitólio, os poderes instituídos vão certamente capitalizar os acontecimentos de Brasília para perseguirem adversários políticos e criminalizar a dissidência.

 

 

Um juiz com veia de tirano.

Um dos personagens centrais da actual vida política brasileira é o juiz do Supremo Alexandre de Moraes, que desde que assumiu o cargo tem excedido os seus poderes em cada decisão tomada, e que está a fazer do primeiro tribunal do país uma espécie de Gestapo. De tal forma que até o insuspeito New York Times, que gosta de Bolsonaro como quem gosta de pão com manteiga rançosa, se mostrou deveras apreensivo com as prácticas totalitárias deste sinistro personagem.

Na sua primeira acção, Moraes ordenou a uma revista brasileira, a Crusoé, que removesse um artigo online onde denunciava as ligações entre um outro juiz do Supremo e uma investigação de corrupção. Moraes chamou-lhe “notícia falsa”.

André Marsiglia, um advogado que representava a Crusoé, comentou a decisão espantosa:

O Supremo Tribunal sempre protegeu as organizações noticiosas de decisões de tribunais inferiores que ordenavam tais tomadas de decisão. Agora é o condutor da censura. E não temos como recorrer.”

Mais tarde e para sua infâmia, o juiz teve que levantar a ordem, depois de documentos legais provarem que o artigo estava correcto.

A seguir, Moraes ordenou às Big Tech que suspendessem dezenas de contas em redes sociais, apagando milhares dos seus posts, muitas vezes sem qualquer argumentário. Grande parte dos conteúdos obliterados não infringiam as regras dos próprios sites, mas as empresas obedeceram, para não se enfiarem em problemas com a autoridade constitucional de Brasília. E porque são quem são: sempre obedientes e entusiasmados censores.

Moraes não perseguiu apenas conservadores. Foi também atrás de personalidades da esquerda que não concordavam com o seu distorcido entender da democracia e do papel constitucional do Supremo Tribunal Federal. Quando um partido comunista brasileiro o apelidou de “skinhead” e afirmou que o Supremo deveria ser dissolvido, o juiz ordenou às tecnológicas que fechassem todas as contas desse partido, incluindo um canal YouTube com mais de 110.000 assinantes. As Big Tech voltaram a anuir.

Depois, foi ainda mais longe. Em sete casos, ordenou a prisão de activistas conservadores acusados de “ameaçar a democracia, defendendo um golpe de estado ou convocando pessoas para comícios antidemocráticos”. Pelo menos dois ainda se encontram encarcerados ou em prisão domiciliária. Alguns casos foram iniciados pelo gabinete do procurador-geral, a mando de Moraes, enquanto outros foi ele próprio que desencadeou.

No caso mais mediático, Moraes ordenou a prisão de um congressista conservador depois deste o ter criticado e a outros juízes num livestream em que afirmou:

“Tantas vezes o imaginei a levar uma tareia na rua. O que é que vai dizer? Que estou a incitar à violência?”.

Por isto, o Supremo Tribunal Federal do Brasil votou 10/1 para condenar o congressista a quase nove anos de prisão, por incitamento a um golpe de estado. Bolsonaro perdoou-o no dia seguinte.

Entretanto a tensão entre Alexandre de Morares e os conservadores do PL cresceu com o “Caso WhatsApp”, que envolveu um conjunto de empresários apoiantes de Bolsonaro. Baseado-se em conversações tidas nesta aplicação, Moraes mandou a polícia revistar as casas destes cidadãos e congelar as suas contas bancárias. Num momento de rara integridade, a imprensa mainstream brasileira condenou esta violação das garantias constitucionais mais elementares. A estação de televisão Bandeirantes, completamente pró-Lula, chegou a publicar um editorial nestes termos:

“Trocar mensagens, meras opiniões sem acção, mesmo que sejam contra a democracia, não constitui crime”.

O problema agudizou-se definitivamente quando este juiz draconiano e radical assumiu ainda mais poder, ao passar a exercer concomitantemente a presidência do Tribunal Eleitoral Federal, poucos meses antes das eleições presidenciais. Dificilmente os bolsonaristas passariam a confiar no processo eleitoral a partir daí.

 

A verdadeira ameaça à democracia brasileira reside no Supremo Tribunal Federal.

O problema central da democracia no Brasil não está assim nos acontecimentos, essencialmente extemporâneos, perpetrados por faixas da população conservadora que desconfia das instituições do seu país e que se recusa a aceitar que um criminoso condenado e depois liberto (e não ilibado), antes sequer de um décimo da pena ter sido cumprida, deva presidir aos destinos da nação.

Nem decorre de um ex-presidente que mal abandonou o palácio presidencial enfiou o rabo entre as pernas e fugiu para Miami, onde tem permanecido entre o silêncio e a convalescença.

Como o Contra-Cultura já reportou, a libertação de Lula da Silva foi muitíssimo irregular. Acusado de 12 crimes, o líder do PT foi condenado em três tribunais distintos, por 19 juízes e sempre por unanimidade. Esses juízes não foram nomeados por Bolsonaro e a condenação aconteceu anos antes da sua eleição. Os juízes do Supremo Tribunal Federal libertaram Lula há dois anos atrás, para que ele pudesse concorrer a estas eleições. Anularam as suas múltiplas sentenças, que implicavam uma pena de 12 anos, da qual cumpriu apenas 580 dias. O Brasil tem uma lei em vigor que interdita um criminoso condenado de ser eleito para o cargo de presidente.

Acresce que, depois da ideia de um Ministério da Verdade não ter ganho tracção nos Estados Unidos (o colégio de censores foi cancelado antes de ter entrado em acção), o mesmo Juiz Alexandre de Moraes encontrou uma maneira de normalizar o discurso político no Brasil e marginalizar candidatos a cargos públicos que se desviem da narrativa globalista/woke: o Supremo Tribunal Eleitoral do país resolveu decidir que qualquer candidato responsável por actos de “desinformação” será automaticamente desqualificado do sufrágio a que se submeta.

E o que é “desinformação”? O Tribunal não explica. E que critérios ideológicos presidem à definição de “desinformação”? O Tribunal não esclarece. E será a pena por “desinformação” aplicada com isenção, independentemente da cor política dos candidatos? O Tribunal garante que sim, mas percebemos claramente que não, porque esta vaga, subjectiva e perversa lei eleitoral foi desenhada para acabar de vez com qualquer expectativa de reeleição que Bolsonaro possa ter.

Neste contexto, o problema central da democracia no Brasil é que – com boas razões – metade dos brasileiros não acreditam que vivem em democracia. Porque estão convictos que foram conduzidos ao jugo de uma “ditadura de juízes”. Para eles, a verdadeira ameaça à democracia tem origem primeira no Supremo Tribunal Federal.

E o 8 de Janeiro de 2023, feitas as contas, vai ser apenas mais um 6 de Janeiro de 2021, ou seja, não mais que uma excelente justificação para que políticos e burocratas persigam a dissidência com fúria totalitária. Em nome da democracia.