A verdadeira história do caminho tortuoso de McCarthy até ao Speaker da Câmara dos Representantes transcende o seu ego, a agenda do Partido Republicano, e a natureza do 118º Congresso. O Capitólio sofreu uma espécie de sismo.

A esperança média de vida nos Estados Unidos está no seu nível mais baixo desde 1996. As taxas de suicídio dos adolescentes aumentaram quase 30 por cento na última década. Embora as mortes por overdose de drogas tenham diminuído de um nível recorde em 2021, continuam a ser 50% mais elevadas do que há apenas cinco anos. No segundo trimestre de 2022, a maioria dos trabalhadores perdeu cerca de 8,5% em salários reais – um máximo de 25 anos. As taxas de casamento e de fertilidade estão a cair.

A propósito da guerra na Ucrânia, surge uma ameaça nuclear acrescida. No último ano fiscal, o governo registou 2,76 milhões de travessias ilegais na fronteira com o México, enquanto dezenas de milhares de pessoas desesperadas afluíam ao país todos os meses, traficadas por cartéis. Valha o que valer, o índice de felicidade dos americanos desceu a um nível recorde. Tal como a confiança institucional.

É neste contexto sombrio que a candidatura de Kevin McCarthy para Speaker da Câmara dos Representantes sofreu, ao longo da semana passada, revés sobre revés. McCarthy finalmente assegurou o martelinho ao fim do dia de sexta-feira, ao fazer um acordo com o House Freedom Caucus (HFC). Um assessor sénior do congresso não tem receios em afirmar que:

“É a vitória mais significativa para os conservadores numa década, possivelmente a maior de uma geração. O pacote de regras, se adoptado, terá de facto impacto nos resultados políticos, forçando um processo transparente e aberto. Tudo o que os republicanos e os conservadores dizem odiar – gigantescas contas de despesas de mil páginas negociadas por um punhado de pessoas e com poucas contribuições dos representantes, comissões reservadas aos suspeitos do costume, e um processo fechado a emendas – foi agora revisto”.

Recusando o legado de elitistas como John Boehner e Paul Ryan, de que Kevin McCarthy é discípulo, os conservadores da Câmara estão gradualmente a desafiar a liderança republicana, forçando-os a representarem os seus eleitores em vez dos grupos de interesse, das redacções da imprensa mainstream e dos conselhos de administração do capitalismo corporativo. Perante os magros resultados eleitorais dos republicanos nas intercalares, os membros do Freedom Caucus fizeram as contas e perceberam que podiam, finalmente, fazer a diferença. Mesmo antes do dia das eleições, McCarthy tinha cortejado o HFC, fazendo, surpreendentemente, amigos entre representantes desalinhados como Jim Jordan e Marjorie Taylor Greene, ao prometer a inversão de certas leis da era Pelosi, a anterior Speaker democrata da Câmara.

E foi exactamente isso que frustrou membros mais conectados com o establishment e os interesses do complexo militar e industrial americano, como Dan Crenshaw. Na perspectiva deste último, o House Freedom Caucus foi para a votação do speaker já vitorioso. E isso é verdade, mas também é verdade que os populistas sabiam que podiam ir mais longe e somaram ainda mais vitórias à medida que a semana se prolongava.

Enquanto os RINOS (Republicans Only In Name) preferiram concentrar-se em ataques pessoais e melodrama, as concessões que as escassas duas dezenas de membros do HFC conseguiram arrancar de McCarthy são chocantemente consequentes. Mesmo sem um outro candidato a Speaker na manga, negociadores sérios como o representante Chip Roy sabiam que tinham trunfos para encostar à parede os poderes instituídos, apesar da pressão a que foram sujeitos. O mesmo assessor sénior do congresso não mediu as palavras:

“Conseguiram mais na última semana do que qualquer outro grupo de conservadores conseguiu em anos. Eles sabiam da importância do seu voto e mantiveram-se unidos até negociarem um acordo aceitável”.

O Representante Andrew Ogles divulgou à imprensa a lista das concessões de McCarthy, que é aqui reproduzida na íntegra:

1 – Só será preciso um único congressista, agindo no que é conhecido como Moção Jeffersonian, para propor a remoção do speaker, se este voltar atrás na sua palavra ou agenda política.
2 – Será convocado um comité para analisar as acções hostis do FBI e de outras organizações governamentais [presumivelmente a CIA] contra o povo americano.
3 – Os limites dos mandatos serão postos a votação.
4 – Os projectos de lei apresentados ao Congresso serão limitados a um único assunto, não poderão integrar legislação fora desse âmbito, e haverá um período mínimo de 72 horas para os ler.
5 – O Plano da Fronteira do Texas, que visa completar as infra-estruturas físicas das fronteiras, fixar as sua políticas orgânicas e a aplicação da lei e perseguir os cartéis e as organizações criminosas, será apresentado ao Congresso.
6 – Os mandatos Covid serão terminados, bem como todo o financiamento para os mesmos, incluindo o chamado financiamento de emergência.
7 – As leis orçamentais vão colocar um fim aos infindáveis aumentos da dívida e do seu tecto, responsabilizando o Senado por qualquer desvio.

Como já sublinhámos num outro artigo do ContraCultura sobre o mesmo assunto, estas sete resoluções têm consequências muito mais profundas do que pode parecer à primeira leitura.

Na noite de quinta-feira, Kimberley Strassel publicou uma útil panorâmica das novas regras, argumentando em favor delas nestes termos:

“Estas mudanças produzirão a primeira Câmara funcional em anos, até porque amarram as mãos dos despesistas”.

Strassel é céptico em relação à Moção Jeffersonian, mas admite que as concessões asseguradas pelo HFC irão aproximar o Congresso da sua funcionalidade. Uma forma de perceber a importância do que o House Freedom Caucus conseguiu é a de observar como o establishment do Partido Republicano se opõe amargamente ao acordo. Muitas e boas deve ter ouvido Kevin McCarthy do lado dos seus “amigos” na Câmara.

Aqueles que receiam que esta lista de exigências crie o caos estão correctos. É provável que o faça. McCarthy, graças à Moção Jeffersonian, irá liderar com a ameaça constante de remoção imediata. Os “government shutdown” estarão muitas vezes sobre a mesa. As leis propostas por um único representante terão os seus inconvenientes. Mas foi uma Câmara disfuncional e alheada dos problemas e dos interesses dos eleitores que levou a esta situação de transformação radical. Não há forma funcional de acabar com a disfunção.

Nada disto deve surpreender, e nada disto é motivo de pânico. A liderança republicana é antiga e constituída por pessoas que presidiram ao declínio recente do partido e ao descrédito do Capitólio, enquanto acumulavam mais poder e riqueza escandalosa. Na semana passada, um grupo de republicanos tentou recuperar parte desse poder e ganhou. É a democracia a funcionar. Até porque desempenhar o papel de Speaker da Câmara dos Representantes traduz uma posição de imenso poder. Será até um dos 10 empregos que mais poder atribuem a um indivíduo, a nível global.  É assim natural que o candidato a esse emprego seja escrutinado, que as suas posições políticas sejam discutidas e sujeitas a oposição, e que o aspirante tenha que suar e negociar bastante para aceder ao cargo. Nos primeiros minutos de um monólogo da semana passada, Tucker Carlson corrobora, com a sua proverbial veia, esta linha de pensamento:

 

 

O processo foi caótico, alguns dos membros do HFC são inexperientes ou incompetentes e não há qualquer garantia de que o HFC vai utilizar sabiamente estas novas ferramentas. Mas o que é garantido é que, sem estas resoluções negociadas, que retiram poder à liderança da maioria republicana, a decadência institucional e orgânica da Câmara prosseguiria no seu trilho rumo ao descrédito total e ao desastroso governo da federação.

Um atraso de quatro dias na votação do Speaker dificilmente justifica o ultraje que muitos dos analistas políticos manifestaram. O pacote de regras é, na sua maioria, institucionalmente correcto. Claro que é notável que o HFC tenha arrancado estas concessões, mas isso deve-se apenas ao facto das liderança partidárias em Washington estarem tão pouco habituadas a perder. A imprensa retratou o processo como é costume, pelo perspectiva dos poderes instituídos e ridicularizando o HFC, perdendo assim, como é também seu hábito, a verdadeira história: um punhado de dissidentes cuja luta é a de aproximar as instituições democráticas dos interesses de quem os elege, venceram sobre o carácter monolítico e omnipotente da cúpula partidária e mudaram o funcionamento da Câmara, de uma forma séria e profunda.

Perguntado em Setembro se esperava ser desafiado pelo House Freedom Caucus se os republicanos retomassem a maioria na Câmara dos Representantes, McCarthy respondeu com a soberba e a leviandade que o caracteriza:

“Já houve quem nos pressionasse a fazer as coisas de maneira diferente. Mas para concorrer a Speaker, isso significa que tudo o que fizemos foi ganhar. E em equipa que ganha não se mexe.”

Ele encontrou uma forma de ganhar na sexta-feira, sim, mas teve que mexer. E vai ter que fazer as coisas de maneira diferente. Mas a parte difícil está apenas a começar.